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Psicodelia nordestina

Leia trecho de ‘Tempos psicodélicos e outros tempos’, da Cepe Editora, no qual o músico Zé da Flauta traz suas memórias sobre o movimento musical que despontou em Pernambuco nos anos 1970

TEXTO Zé da Flauta

01 de Fevereiro de 2023

Zé da Flauta

Zé da Flauta

Foto Arquivo pessoal

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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Artesanato era o meu “ganha-disco”
No início dos anos 1970, assim tinha acontecido em décadas anteriores, os jovens do Recife tinham poucas opções em termos de escolha profissional. Entre elas estavam: ser médico, engenheiro, advogado, professor ou militar. Outra alternativa era entrar para um seminário e seguir o sacerdócio. Nada disso era o que eu queria. O mundo que me interessava era outro, tinha muita vontade de correr atrás dos meus sonhos, não conseguia me ver, por exemplo, exercendo funções burocráticas em uma empresa, nem tratando de doentes em um hospital. Embora reconhecesse a importância dessas atividades.

Terminei abraçando de corpo — e alma — o artesanato, até porque na minha cabeça, como aconteceu na de muitos jovens, já tinha se instalado a estética de algo chamado Movimento Hippie.

Atividade que o ser humano cultiva desde a Pré-História, o artesanato, dentro do contexto do hippismo, adquiriu novo significado: era mais uma utópica forma de tentar mudar o mundo.

No caso específico, era uma maneira de protestar contra uma das mais visíveis faces do “sistema” — a indústria, que, na sua incontrolável busca de aumentar os lucros, produz em grande escala e massifica os produtos. O artesanato, pelo contrário. Mesmo seguindo algumas técnicas e padrões, cultiva, antes de tudo, a criatividade humana.

Eu tinha jeito para a coisa e, em razão disso, quando eu estava com 14 anos mamãe me colocou na Escolinha de Arte do Recife, onde aprendi um pouco de desenho e modelagem em argila.

Já que não era um ganha-pão, pois eu morava com meus pais, o artesanato me dava condições de alimentar cada vez mais a minha coleção de discos, comprar um bom gravador, fitas k7, material para trabalhar e ainda sobrava para sair com minha namorada todo final de semana. É difícil traduzir para os dias de hoje qual era a minha renda, mas acho que ganhava semanalmente em torno de mil reais. Acredito que merecidamente, porque eu era muito dedicado ao tipo de trabalho.

Acordava cedo, partia para o meu ateliê, colocava uns discos para tocar e trabalhava até a hora do almoço, fazendo brincos, pulseiras, colares, braceletes, chaveiros... Na parte da tarde, voltava à atividade com o mesmo empenho e só parava quando a fome dizia: “Ói eu aqui de novo!”.

Foi através do artesanato que fui me chegando à rapaziada psicodélica, palavra da qual eu nunca tinha ouvido falar, mas admirava a liberdade e a rebeldia do pessoal, que vivia do próprio trabalho, um trabalho sem chefe, sem patrão e que rendia uma boa grana. O primeiro cara “amalucado” que conheci foi Jorge Tavares, quando eu tinha 17 anos e fiz um curso de férias especializado em artes. Pouco aprendi nas aulas, mas a aproximação com Jorge foi importante, porque foi através dele que conheci a feira hippie que acontecia todo sábado e domingo no calçadão da igrejinha de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife.

Foi nessa feirinha, ainda hoje existente, mas sem o espírito tipicamente hippie, que conheci Lula Côrtes e Kátia Mesel, à época também dedicados à produção e venda de peças artesanais. O trabalho deles era muito bom, pois possuíam talento para lidar com formas e cores, como demonstraria, anos depois, o fato dele ter se tornado, além de músico de projeção, um respeitado pintor e desenhista. Quanto a ela, é uma bem-sucedida cineasta.

Um dia fui com Jorge Tavares à casa de Lula e Kátia, que ficava perto da minha e eu não sabia. Eles tinham chegado de uma viagem pela Europa e a África. Durante a visita, ele nos apresentou um instrumento exótico que havia comprado no Marrocos: um tricórdio, que pretendia um dia usar na gravação de um disco. Terminou usando em várias gravações, algumas históricas, como se verá em outras páginas deste livro.

Minha fase on the road
A experiência com o artesanato ia bem obrigado, mas, para concluir o meu “estágio hippie”, estava faltando algo muito importante no currículo: uma viagem maluca.

A vida nômade, a viagem por lugares desconhecidos, o espírito de mochileiro eram itens relevantes no ideário hippie, pois representavam, pelo menos simbolicamente, uma forma de “cair fora” do sistema, uma maneira de não ter a vida tradicionalista, conservadora, que predominava à época.

Essa tendência vinha sendo alimentada há certo tempo, tanto pela literatura como pelo cinema. Caso, por exemplo, do livro On the road, de Jack Kerouac (traduzido no Brasil por Eduardo Bueno, com o título Pé na estrada), e do filme Easy rider (Sem destino), com Peter Fonda, Dennis Hopper e Jack Nicholson.

Esperei completar 18 anos, para ter minha liberdade completa, e convidei um amigo, Bráulio Cavalcanti, para participar da aventura. Bráulio topou na hora, e 16 dias depois de colocarmos a mochila nas costas e o pé na estrada chegamos ao nosso destino.


Zé da Flauta, ainda adolescente, na época em que fazia
artesanato. Foto: Arquivo pessoal

Não, não fomos para Marrakesh, no Marrocos, Cuzco, no Peru, nem para Kathmandu, no Nepal — cidades que se tornaram verdadeiras “mecas” dos hippies —, mas fomos para um lugar que, pelo menos para nós, naquele momento, também tinha seu lado exótico e místico: o Rio de Janeiro. Como não podia ser diferente, chegamos lá pegando carona em caminhões, tocando violão pelas estradas e vendendo artesanato. Não tínhamos nenhuma preocupação material e a viagem em si era como a realização de uma utopia.

Passamos um mês no Rio, período em que assistimos a uma série de shows que dificilmente poderíamos ver no Recife da época, como os realizados pelas bandas de rock A Bolha e Módulo 1000, no Teatro João Caetano, e os Novos Baianos, na PUC, no bairro da Gávea.

Também conhecemos o Hello crazy people, programa de rádio apresentado por Big Boy, que mostrava as novidades da música alternativa e tinha uma linguagem bem diferente, irreverente, maluca. Era uma verdadeira zona, mas legal pra caramba.

Esse mesmo estilo Big Boy levou para um programa de tv, o Sábado Som, que viveu uma situação engraçada: já era produzido em cores, mas televisor com transmissão colorida ainda era muito caro e restrito à chamada elite, que não assistia ao programa, muito curtido pela malucada, que o sintonizava em preto e branco mesmo.

A volta ao Recife foi realizada em bem menos tempo. Pegamos uma carona até Maceió e, no mesmo dia, conseguimos outra para o Recife. A aventura foi maravilhosa, mas a verdade é que já estávamos cansados e loucos para chegar em casa.

Festivais: protestos ganham palco
No início da década de 1970, as instituições de ensino superior e os cursinhos preparatórios para o vestibular — exame que selecionava os estudantes para as faculdades, mais ou menos como faz hoje o Enem — começaram a investir na realização de festivais de música popular. No Recife, esses eventos viraram verdadeira moda.

Era uma eficiente estratégia de marketing, pois, desde a segunda metade dos anos 1960, os concursos musicais exerciam grande fascínio sobre os jovens, pois eram, principalmente, preciosos espaços para desabafar contra o regime militar.

Basta dizer que cerca de 90% das canções apresentadas nos festivais eram de protesto. Os estudantes eram um foco importante de mobilização social e a música sempre foi um canal de comunicação, funcionando ao mesmo tempo como meio e mensagem.

Um grande incentivo nesse sentido eram os eventos do gênero realizados no Sudeste, como o III Festival da Música Popular Brasileira, patrocinado pela TV Record em 1967, que consolidou a carreira de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Edu Lobo.

A participação do público era extremamente ativa, com as pessoas se manifestando através de aplausos ou vaias intensas, como fazem as torcidas durante os jogos de futebol. Uma das cenas mais marcantes do festival, e que expressa bem o clima reinante nesses concursos, foi protagonizada pelo compositor Sérgio Ricardo. Praticamente impedido de apresentar sua composição Beto bom de bola, devido ao alto som dos apupos, Sérgio quebrou o violão e o jogou sobre o público, gritando: “Vocês venceram. Isto é o Brasil. Isto é um país subdesenvolvido. Vocês são uns animais”.

Uma das mais politizadas músicas do ciclo dos grandes festivais foi Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, também conhecida como Caminhando, que é a primeira palavra da letra. Transformada pelos estudantes em verdadeiro hino de resistência aos militares, a canção terminou censurada e seu autor teve de se exilar. Eu tinha um compacto do selo Som Maior com essa música e fiz várias cópias em fita cassete para amigos que pediam.

Em termos de festivais recifenses realizados fora da esfera estudantil, lembro de dois, voltados para promover os valores da cultura pernambucana e que revelaram artistas que depois ganhariam grande projeção e muito concorreriam para a evolução da música local. O primeiro foi Uma Canção para o Recife, organizado pela Prefeitura da cidade e vencido por J. Michilles com o frevo de bloco Recife, manhã de sol. Realizado em 1966, o concurso teve participação de nomes como Capiba e Nelson Ferreira.

O outro foi conquistado por Geraldo Azevedo e Carlos Fernando com o também frevo de bloco Aquela rosa, gravado originalmente por Teca Calazans. Um dado curioso é que foi a primeira composição dos dois.

A minha primeira participação em um festival de música se deu em 1973, pouco depois da viagem ao Rio de Janeiro, e de forma bem casual. Nessa época, minha mãe era diretora e professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia do Recife, a Fafire, e me pediu para ir lá levar umas provas que ela havia corrigido em casa.

Por coincidência, naquele mesmo dia ia acontecer um festival na faculdade. Fui até o auditório e vi músicos e vocalistas no palco, ensaiando. Alguns deles eu já conhecia, como Agrício Noya, que depois se tornaria percussionista do Ave Sangria e do Batalha Cerrada, primeira banda de Alceu Valença.

Agrício me apresentou ao pessoal dizendo que eu tocava flauta e surgiu um convite para participar da apresentação deles. Não ganhamos nenhum prêmio, mas terminei conquistando e sendo conquistado por uma das cantoras do grupo, Gláucia, com quem eu casaria três anos depois.


Numa época em que a Guerra do Vietnã manchava o mundo de sangue, 500 mil pessoas, de diferentes lugares, valorizavam o amor. Foto: James M. Shelley/Wikimedia

Woodstock: não estive lá, mas participei
Por várias e óbvias razões, tipo eu tinha apenas 14 anos e morava na longínqua cidade do Recife, não fui ao festival Woodstock, realizado nos Estados Unidos, em 1969. Mas, em 1973, quando fui para o Rio de Janeiro, posso dizer que não apenas estive no evento, como participei dele ativamente. Até pelo conjunto de ensinamentos que extraí. Essa confusão de datas, lugares e experiências pode ser facilmente explicada pelo seguinte fato: o monumental documentário sobre o festival, dirigido por Michael Wadleigh e ganhador do Oscar de 1971, estava sendo exibido no Cinema Rox, localizado na Avenida Atlântica, em Copacabana. E foi lá que estive, pela primeira vez (friso primeira vez), em Woodstock.

Com três horas e meia de duração, o filme — que reassisti no dia seguinte — proporcionou uma viagem tão intensa, rica e mágica que me deu a impressão de ter durado até mais do que os 16 dias em que eu e Bráulio estivemos na estrada.

Nele estava, da forma mais impactante e envolvente, tudo que, no caminho até o Rio, havíamos vivido e conversado sobre a importância da arte para o bem-estar e o desenvolvimento da humanidade e sobre um mundo em que a ideologia dominante estivesse expressa em frases como “Paz e amor”, “Faça amor, não faça a guerra”, “É proibido proibir”.

Era impressionante olhar as cenas e ver que, num momento em que o planeta estava cada vez mais manchado pelo sangue derramado na Guerra do Vietnã, cerca de 500 mil pessoas se reuniram em um lugar sem a mínima estrutura, expostas a uma chuva que não parava, e se comportaram como se estivessem no meio de uma querida e grande família. Dados da polícia norte-americana, famosa pela forma violenta como costuma reprimir todo tipo de iniciativa que pareça conspirar contra o sistema, não registram nenhuma briga ou coisa parecida. Pelo contrário, documentos demonstram que os policiais até procuraram, de várias maneiras, colaborar com a produção do festival e o público, no meio do qual, conforme se divulgou, teriam acontecido até partos. Dois, pelo menos.

Claro que, para o establishment, ou seja, para as forças que controlavam o mundo nos planos ideológico, político e econômico, o  comportamento dos jovens rebeldes se resumiu ao consumo de drogas, às longas cabeleiras, às roupas extravagantemente coloridas e à prática do sexo livre, muito facilitado com o surgimento da pílula anticoncepcional.

O que foi dito anteriormente sobre os festivais e mostras musicais realizados no Recife e no Brasil como um todo, isto é, sobre a natureza política e libertária desse tipo de evento no contexto dos anos 1960, pode ser aplicado numa escala bem mais ampla a Woodstock. E o festival tinha outro aspecto para lá de importante: o artístico, o musical. Numa época em que, no Recife e outras cidades, ainda era difícil encontrar discos de Jimi Hendrix, The Who, Janis Joplin, Santana e outros artistas e grupos, era simplesmente maravilhoso vê-los no telão em performances que ficaram na história do rock e da contracultura.

Sobre a natureza de um show de rock — ritmo que foi muito além do aspecto puramente musical, ditando comportamentos e servindo como potente instrumento de mobilização social —, disse o baterista Billy Mundi, companheiro de Frank Zappa na banda The Mothers of Invention:

No espetáculo convencional, o artista procura fazer que o público se identifique com ele e nele se anule. É uma técnica reacionária.  No rock são os músicos que devem se identificar com o público e nele se anulam. É um sentimento revolucionário. (...) O homem se encontra consigo mesmo e ao mesmo tempo se confunde com uma multidão infinita de outros homens. Não fazemos espetáculo. Somos apenas provocadores de um rito.

Outra figura de destaque em Woodstock era Ravi Shankar, que fortaleceu a ponte que ligava a contracultura à filosofia oriental, assim como tinha acontecido na sua apresentação no festival Monterey Pop, em 1967, durante o Verão do Amor, em São Francisco, Califórnia, um dos eventos que mais difundiram o movimento hippie pelo mundo.

Abrindo um rápido parêntese, é interessante ressaltar a afinidade entre a psicodelia (palavra criada pelo psicólogo britânico Humphry Osmond, com o significado de “manifestação da mente”) e o misticismo do Oriente. O próprio Timothy Leary, conhecido como o “papa do psicodelismo”, professava: “A viagem de lsd é uma peregrinação religiosa”.

Tempos atrás, li o livro Aconteceu em Woodstok, de Elliot Tiber, que traz detalhes até então pouco conhecidos do festival. A obra de Tiber, que termina exatamente quando o evento começa, conta uma série de coisas que aconteceram na cidadezinha de Bethel um mês antes da histórica mostra musical. Revela, por exemplo, que, ainda na fase de organização do festival, chegaram produtores com malas e malas cheias de dinheiro para comprar o que fosse necessário para a viabilização do evento. Deram “presentinhos” a todos os políticos e autoridades de outros segmentos da cidade, até aos ligados à área da indústria, do comércio e da igreja.

Um dia me chegou a informação de que haviam produzido um filme sobre o livro. Corri para internet, a fim de me informar mais, e descobri, por acaso, o e-mail de Elliot Tiber. Arrisquei uma mensagem dizendo que tinha adorado o livro e queria ver a versão cinematográfica de sua obra. Ele respondeu agradecendo, mandou o link do filme e disse que se eu gostei do livro iria me decepcionar muito com o que tinham feito. Perguntei o porquê e ele me disse: “Você sabe como é Hollywood... estragam tudo!”.

Uma coisa é verdade: o livro levanta uma tese que o filme não mostra. A possibilidade de Woodstock ter sido uma estratégia do governo norte-americano, num momento tenso da Guerra Fria, para passar uma mensagem positiva aos jovens norte-americanos e de outros países.

E qual seria a mensagem? A de que, apesar das guerras, ainda existia paz, amor e esperança no mundo. Se foi verdade — ideologia e política à parte —, eu agradeço pela iniciativa, pois tocou milhões de almas com sua utopia psicodélica de liberdade, igualdade e a convicção de que o mundo, apesar de tudo, um dia poderia ser melhor.

Entre os vários ensinamentos que absorvi do documentário sobre Woodstock — que me influenciou bem mais que os filmes sobre os Beatles, por já estar um pouco mais maduro e crescentemente ligado ao mundo da música —, está o fato de não apenas mostrar os artistas tocando e sendo reverenciados pelos fãs, mas todo o processo de produção de um festival daquele porte, com muitos detalhes técnicos até então pouco conhecidos.

Quando voltei para o Recife, o documentário estava passando no Cinema Coliseu, que ficava na Vila dos Comerciários, bairro da Tamarineira, bem defronte à casa de Ivinho e Almir Oliveira, que dentro em breve seriam integrantes do Ave Sangria, ou melhor, do Tamarineira Village, primeiro nome da banda.

Woodstock virou uma espécie de diversão obrigatória, pois todo pessoal que vibrava nessa frequência passou a se encontrar no domingo à tarde para, ritualmente, ver o filme e, depois, ir para um bar comentá-lo, ao mesmo tempo em que se tomava cerveja e jogava conversa fora.

Comprei o disco do filme e ouvia sem parar, principalmente a música cantada por Joe Cocker, With a little help from my friends, dos Beatles, que a lançaram em 1967 no disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band — um dos grandes marcos da música popular contemporânea —, mas com o arranjo completamente diferente, quase outra música com a mesma letra.

Na minha visão, Joe Cocker imortalizou essa música e roubou a cena em Woodstock, com uma interpretação perfeita, embora, em todo o festival, o que não faltou foram manifestações de genialidade. Obviamente, fora dos tradicionais padrões estéticos e artísticos. Crescia em mim a vontade de ser músico, de encarar de vez esse tipo de arte e deixar o artesanato

Woodstock com cara
e jeito do Nordeste

No Recife do início dos anos 1970, não era apenas o tamanho dos cabelos que crescia nos jovens, mas também o desejo de se envolver com projetos revolucionários no campo da arte, com várias manifestações na literatura, no teatro, na pintura e noutros setores artísticos.

Na esfera musical, um dos grandes marcos foi a Feira Experimental de Música — Do pôr ao nascer do sol, batizada pelo jornalista e crítico de arte Celso Marconi de “Woodstock cabra da peste”. Trazendo no dna o evento que aconteceu em 1969 nos eua, e cujo documentário havia se tornado verdadeira “coqueluche” junto aos segmentos da juventude mais interessados em construir um mundo que colocasse “a imaginação no poder”. A Feira Experimental foi realizada em 11 de novembro de 1972.

Seu palco foi Nova Jerusalém, distrito de Brejo da Madre de Deus (município localizado a cerca de 70 quilômetros de Caruaru), hoje internacionalmente conhecido por abrigar aquele que é considerado o “maior teatro a céu aberto do mundo” e no qual durante a Semana Santa se encena a Paixão de Cristo.


Nuvem 33 na Feira Experimental de Música, que foi o pontapé
inicial do movimento que ficou conhecido como Psicodelia nordestina.
Foto: Arquivo pessoal

Idealizada por Marcelo Mesel, com o apoio dos Diretórios Acadêmicos de Medicina, Arquitetura, Engenharia e Geologia da Universidade Federal de Pernambuco e também da Sociedade Teatral de Fazenda Nova, a Feira Experimental teve coordenação do músico e chargista Lailson de Holanda.

O objetivo do festival era divulgar artistas e bandas da região que faziam música alternativa, ou seja, fora do chamado circuito comercial. Uma matéria publicada no Diario de Pernambuco tinha como título “Hippies invadem Nova Jerusalém e realizam festival”. Já o Jornal do Commercio publicou um texto intitulado “Uma feira aberta a todos os sons”.

Lembro que a abertura do evento foi feita por uma banda de pífanos de Fazenda Nova e nele se apresentaram Marconi Notaro, Flaviola, a paraibana Cátia de França e as bandas Nuvem 33 e Tamarineira Village, Lula Cortês e Lailson, que no ano seguinte lançariam o lp Satwa, que, assim como a Feira, foi o pontapé inicial de um movimento que viria a ser conhecido como Psicodelia Nordestina e mais tarde como Udigrudi.

Iniciado no fim da tarde de 11 de novembro e estendido até o amanhecer do dia seguinte — como anunciava o subtítulo do cartaz: Do pôr ao nascer do sol —, o festival teve acesso gratuito, atraindo a moçada de vários municípios e até de outros estados, e, por isso, é difícil quantificar o público, mas estima-se que foi formado por cerca de três mil pessoas. Se tinha muitas coisas semelhantes ao Woodstock original, num certo sentido a Feira foi bem diferente. Era quase tudo “feito nas coxas”. O som era insuficiente e falhava o tempo todo e o palco era aberto a qualquer artista ou banda que, mesmo não constando da programação, estivesse a fim de tirar um som.

Uma das áreas mais legais do festival era a do camping, onde, no intervalo de uma apresentação e outra, rolavam rodas de violão, bebidas e paqueras.

Um evento desse tipo não poderia deixar de produzir suas lendas. Uma das mais conhecidas diz que, já de madrugada, começou a circular um balde cheio de vinho no meio da multidão, o que provocou uma imensa sede em muita gente. Depois se descobriu o porquê: alguém havia “fermentado” a bebida de uma forma bem diferente, colocando ácido.

Caroneiros inveterados, na volta para o Recife vários músicos e parte do público conseguiram viajar de graça até Caruaru. Só que não surgiu nenhuma carona que levasse até à capital. Éramos umas 50 pessoas. A tarde já vinha caindo quando tive a ideia de irmos até à casa do deputado federal e futuro ministro da Justiça Fernando Lyra, cuja família era proprietária da empresa de ônibus Caruaruense. Ele foi muito gentil e prontamente cedeu um ônibus novinho.

Desnecessário dizer que, durante a viagem, criamos um grande diferencial em relação ao festival que tanto nos havia inspirado: produzimos um Woodstock ambulante.


Cartaz produzido pelo artista Lula Wanderley para a Feira
Experimental de Música. Imagem: Arquivo pessoal

Música: espiritualidade em tom maior

Logo após Woodstock, passou outro filme que fez o maior sucesso junto à rapaziada, tanto pela grandiosidade artístico-musical e o espírito libertário, como por demonstrar, de forma expressiva, que o ideário dos “jovens rebeldes” não se restringia a transgredir as convenções; era, isso sim, também composto de muita solidariedade e consciência social.

Dirigido por Saul Swimmer, Concerto para Bangladesh documentava um evento homônimo organizado por George Harrison e Ravi Shankar e realizado em 1971, no Madison Square Garden, em Nova York.

A renda, proporcionada por um público superior a 40 mil pessoas, foi toda destinada para Bangladesh, país asiático, vizinho da Índia, cuja população estava sendo devastada pela fome, decorrente, entre outras coisas, de uma longa guerra civil. O concerto passou para a história como o primeiro evento beneficente que contou com grande participação de estrelas do rock.

Nesse aspecto, o filme foi também uma excelente oportunidade de “ver de perto” um time de artistas internacionalmente consagrados que não tinham participado de Woodstock, como Bob Dylan, Eric Clapton, Billy Preston, Leon Russell, Klaus Voormann, Ringo Starr, além dos dois organizadores, George Harrison e Ravi Shankar.

Este último, que já há havia conquistado o público ocidental desde sua participação no Monterey Pop e em Woodstock, depois do Concerto para Bangladesh fortaleceu ainda mais tanto sua popularidade quanto o fascínio pelo Oriente, muito forte desde o tempo áureo dos hippies e que se manifestava através do uso de túnicas muito coloridas, incensos e vários outros elementos.

Como o de Woodstock, o filme de Concerto para Bangladesh mostrava os detalhes dos artistas tocando, o que para os estudantes de música era muito importante. Eu mesmo prestava atenção a tudo, aos músicos, à postura deles no palco, percebia e analisava a diferença entre os arranjos gravados e os tocados ao vivo na mesma música. À época, não existiam o videoclipe, a mtv, a internet e era muito difícil ver grande número de artistas, vê-los tocar, dar entrevista. Quando se tinha acesso a isso era através das revistas, com imagens paradas, fotos, o que era bem diferente.

O filme mexeu muito com minha cabeça em todos os sentidos, inclusive com a minha espiritualidade. Numa atitude ainda medrosa e solitária, comecei a ler sobre religiões, a procurar respostas para várias perguntas que eu fazia, pelo fato de ter uma dificuldade muito grande de aceitar as doutrinas e as práticas religiosas da forma como eram apresentadas em casa e no colégio. Os ídolos que eu queria adorar não eram aqueles, eu não queria santos, eu preferia os artistas, os rebeldes de uma nova era. Uma forma mais fácil e objetiva de entender a mensagem de paz, amor, fraternidade e gratidão, coisas que a religião e seus dogmas complicavam muito.

Existe uma espiritualidade enorme no processo de ouvir, compor, vivenciar a música. Ela atua fortemente em nossos sentidos, em nossas emoções, elevando os nossos sentimentos. Às vezes nos transporta de um lugar para outro sem que percebamos. Nessa época, meu irmão Gil Vicente, que também fazia artesanato, parou com as atividades nessa área e se dedicou completamente ao desenho e à pintura. Isso me pressionava a também deixar de ser artesão para me dedicar exclusivamente à música, que cada vez mais compunha a melodia, o ritmo, o compasso e a harmonia de minha vida.

ZÉ DA FLAUTA, José Vasconcelos de Oliveira, nasceu no Recife, em 1954. É instrumentista, flautista, compositor e produtor musical. No início da década de 1970, formou com Laílson (baixo), Bira Total (bateria) e Paulo Rafael (guitarra), a banda Phetus. É uma das influências seminais na criação e na elaboração do som da psicodelia de Pernambuco.

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