Perfil

Mestre Bi, uma estrela brilhante

Criado no Engenho Teimoso, em Nazaré da Mata, Lezildo José dos Santos, hoje com 36 anos, se aproximou do baque solto ainda criança e logo se tornou mestre de “um maracatu grande e bom”

TEXTO ERIKA MUNIZ
FOTOS HUGO MUNIZ

01 de Fevereiro de 2023

Mestre Bi

Mestre Bi

Foto Hugo Muniz

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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O maracatu chegou na vida de Lezildo José dos Santos, o Mestre Bi, quase que “de repente”, como ele define. Antes de ser o mestre da Estrela Brilhante de Nazaré, ele viveu, até parte de sua juventude, no Engenho Teimoso, na zona rural da cidade, que foi também onde nasceu. Na época de carnaval, era frequente os moradores saírem de lá para ver a chegada dos caboclos no Engenho Cumbe, onde se localiza a sede do Maracatu Cambinda Brasileira. “Meu pai levava eu e meus irmãos, fui crescendo com aquilo”, conta. Dali, sua vivência com o baque solto se construía e se consolidava.

Em 2009, Josilete, com quem ele se casaria anos depois, e cujos familiares fazem parte de Cambinda Brasileira, brincava de índia no maracatu centenário. Isso contribuiria para que Bi firmasse de vez sua aproximação com o baque solto, pois uma paixão encontraria a outra. No ano seguinte, ele saiu pela primeira vez como caboclo. Dessas vivências na tradicional agremiação, conheceu Zé de Carro, mestre caboclo e personagem importantíssimo na história do baque solto. É constante a menção ao nome dele nas lembranças compartilhadas entre os mestres em atividade atualmente. Desde o início, Zé de Carro foi um dos que apoiaram Bi, chegando, inclusive, a convidar o jovem para ser o vice-presidente de Cambinda.

Na infância vivida no Engenho Teimoso, Lezildo Santos conta que saía pelas casas vestido de catita pedindo dinheiro, pois isso fazia parte das vivências culturais da região. Catita é um personagem que se apresenta com um rosto pintado, geralmente de carvão, um bisaco (bolsa de pano) pendurado e um jereré (instrumento usado para pesca). Antigamente, era responsável por “alimentar” o maracatu, pegando comidas nos fogões a lenha das casas, enchendo o bisaco e, depois, compartilhando com os integrantes do maracatu. “Esse era o dia a dia de quem vivia na zona rural (de Nazaré). Fui conhecendo a cultura do caboclo de lança. Chegou o dia em que tive que participar também. Eu me envolvi bastante e comecei (como caboclo) em 2010. Em 2011, comecei a cantar uns versinhos de maracatu que foram chamando a atenção do povo. Para quem não sabia nada de maracatu, acharam que meus versos já estavam bem-feitinhos, né?”, brinca, em entrevista à Continente.

Nazaré da Mata é conhecida como a “terra do maracatu”. A produção cultural ocupa papel relevante nas dinâmicas políticas do município e é mote de vida de muita gente por lá. Mas a história local ainda é atravessada pela monocultura canavieira que marca historicamente a economia da região. E, mesmo com mudanças sociais e políticas significativas nesses últimos anos, é possível perceber que esse passado se faz presente.


A entrada de Bi no Estrela Brilhante foi mediada por outro mestre de maracatu: Barachinha

Lezildo ganhou o apelido de Bi por conta do futebol. Desde pequeno, sempre gostou de jogar bola e, na infância, chegou a vencer dois campeonatos, tornando-se, então, bicampeão. A partir daí, as pessoas começaram a se referir a ele como Bi e o apelido acabou ficando. “Quando comecei a cantar maracatu, só foi adaptar para Mestre Bi”, emenda. Em Pernambuco, o artista torce para o Náutico, mas diz também gostar bastante do Palmeiras. Porém, quando o assunto é maracatu, Mestre Bi não se divide: é Estrela Brilhante do começo ao fim.

Em 2011, sua entrada no Estrela aconteceu através da mediação de Mestre Barachinha, uma de suas referências, figura que sempre acreditou no talento e potencial de Bi e um dos responsáveis por estimular o seu percurso. Após a saída de Bi de Cambinda Brasileira, Barachinha teria prometido ao “Caboclo Novo”, como ele o chamava, que, antes da chegada do carnaval de 2012, organizaria para Bi ser mestre de “um maracatu grande e bom”.

Em algumas semanas, Estrela Brilhante, que marca a história de Barachinha, ficaria sem mestre. E, conforme havia apalavrado, o mestre cumpriu com o prometido, mediando a entrada de Bi em um “maracatu grande e importante” para a história do baque solto de Nazaré da Mata.

– Bi, você quer mestrar um maracatu grande?
– Como assim?
– Quer mestrar Estrela?
– Como assim?
– Quer mestrar Estrela Brilhante?
– Quero.
– Pronto, a partir de agora você é mestre de Estrela Brilhante.

Em seguida, Barachinha falou com o pessoal do Estrela Brilhante. E todos abraçaram o convite. Ao tornar-se mestre de apito, Bi foi aprendendo a cada vivência e surpresa que aparecia em seu caminho. Em seu primeiro ensaio como mestre, por exemplo, o artista chegou a preparar “uns 30 sambas de 10 linhas”. Mas não demoraria muito para entender que, na quentura da prática, “cantar samba de 10 demais pode estragar um ensaio de terreiro”. Hoje, Bi prefere investir no improviso e cantar umas marchas que agradem os caboclos.

Como acontece na vida, o tempo ajuda a construir a sabedoria e é importante na construção da confiança e admiração de quem faz parte da história do maracatu há mais tempo. “Fiz o carnaval e meu nome foi destaque na região pela minha maneira de cantar, com os versos bem- elaborados e, por consequência, o Estrela foi campeão do grupo 1 no carnaval”, relembra.

Além de ganhar a confiança e admiração, um dos desafios de qualquer mestre é conseguir que o interesse e o respeito do público permaneçam acesos, fazer o seu nome como mestre ganhar uma dimensão consistente. “Aqui, na região da Mata Norte, tem um conceito que diz: ‘No carnaval, todo mundo canta. Se preparou cinco, 10 versos, canta em toda cidade. Todo mundo vai aplaudir. Agora, quer saber quem é o mestre? Tem que ir para pé de parede, que vai das 10 da noite e termina às cinco da manhã. Para mim ou para qualquer outro, isso conta muito, porque, se você for e não tiver um bom desempenho, seu nome está praticamente enterrado na cultura. A gente que samba pé de parede tem que ter cuidado. Se você chegar em um certo nível, você tem que ter um cuidado maior, porque se manter é mais difícil do que chegar”, explicou à Continente.

Para quem não sabe, o pé de parede é uma disputa de desafios entre mestres que representam duas nações de maracatu que torcem pelos respectivos mestres e vão lá assistir ao desafio que se alonga até de manhã. Foi participando de alguns deles que Mestre Bi, como tantos outros, foi escrevendo seu nome na história do baque solto.

***

Antes de chegar ao Estrela Brilhante de Nazaré, quando existia somente sua grande vontade de cantar maracatu, Bi foi em busca de quem admirava há tempos para pedir ajuda. Nesse trecho de sua trajetória, o que sobressai é a participação dos mais experientes na construção do conhecimento de quem está começando ou se dispondo a aprender. Isso se dá, aliás, em qualquer ofício que seja. Mas o inverso também é possível, pois os mais jovens também têm muito o que ensinar. Assim é em quase tudo na vida. Enquanto se aprende, também se ensina.

Cheio de vontade de cantar, Bi preparou três sambas e decidiu mostrá-los a Barachinha. De caderno na mão “que cabia bem uns 500 sambas”, relembra Barachinha brincando, o jovem caboclo levou suas primeiras criações para que o mestre visse onde poderiam melhorar. Naquele momento, embora os sentidos e temas agradassem, Barachinha diz que os sambas estavam “amarrados errados”, apontando sobre aquelas primeiras rimas. Dessa forma, Bi ia procurando entender como os já consagrados, a exemplo do próprio Barachinha, Zé Galdino, Antônio Roberto e outros, faziam, até conseguir, posteriormente, trilhar o seu próprio caminho criativo. Esses encaminhamentos dados por Barachinha no início fizeram com que eles se conhecessem e Barachinha enxergasse o potencial e talento que se construía ali. Até chegar à decisão de que Bi estaria preparado para se tornar um grande mestre de maracatu.




Bi com os pais, que moram próximo ao Loteamento Tamataúpe, no Bairro de Sertãozinho, onde o mestre reside com a esposa e as filhas

“Na época, ele perguntou se (os sambas) estavam certos. Eu disse que estava bonito, mas certo não estava, por conta de uma rima. Mas também disse que ele não desanimasse, porque muitos mestres ‘de fama’ cantavam daquele jeito. E eu, inclusive, na hora do aperto, não ia ficar calado por conta de uma rima, eu faria a mesma coisa que ele. Mas eu disse que, se ele pudesse fazer certo, não tinha por que fazer errado, não é?”, conta Barachinha. “Quando o vi arrastando da alma, puxando na hora e improvisando, digo a você com toda sinceridade do mundo: se eu tivesse duas casas, tinha coragem de apostar uma em como ele seria um grande mestre no futuro. Graças a Deus, hoje, ele é esse grande mestre. Fico feliz, porque tenho certeza que ninguém incentivou mais ele no início de carreira do que eu. E reconhecimento não falta, a cultura ganhou muito. Existe o mestre de maracatu e o cantor de maracatu, Bi não é só o cantor de maracatu, ele é o mestre de maracatu”, sintetizou Mestre Barachinha, na conversa conosco.

***

Atualmente, Mestre Bi mora com a esposa Josilete, as filhas Laryssa, de 10 anos, e Layza, de 7 meses, a sogra, Dona Maria Estevão, e o sogro, José Dionísio, numa casa localizada no Loteamento Tamataúpe, no Bairro de Sertãozinho, em Nazaré da Mata. Em uma das visitas da equipe da Continente para as fotos, Josilete estava a poucos dias de dar a luz à segunda filha do casal. Agora, Layza já se empolga ao ouvir as cirandas cantadas pelo pai. Os pais de Mestre Bi, Josefa e José Benedito, ambos aposentados, moram próximo a ele, cerca de cinco minutos de caminhada a pé separam as duas casas.

Além da vivência na arte, aos 36 anos de idade, Mestre Bi também exerce a função de diretor de Turismo e Cultura de Nazaré da Mata. Antes disso, o artista fez diversos outros trabalhos. Começou a trabalhar muito cedo, aos 14 anos já limpava o açude de uma usina dentro do Engenho Teimoso, onde morou. Também chegou a cortar cana por um curto tempo, foi frentista em um posto de gasolina, em Carpina, fez serviço de construção pela região e trabalhou também como vigia na Prefeitura. Recentemente, Bi deu início à faculdade, cursando Licenciatura em Educação Física, na Faculdade Santíssima Trindade (Fast).

“Estou no cargo que exerço hoje por causa da música. Se eu não cantasse maracatu lá atrás para aparecer para o público, ninguém ia me dar oportunidade para ser ‘da cultura’, não. O maracatu e a ciranda me proporcionaram isso, me fizeram ser conhecido, fizeram alguém abrir os olhos de que eu tinha que ter uma atenção especial. A música abriu todas as portas para mim, para eu exercer um cargo político, para fazer parte de, inclusive, uma viagem internacional”, situa.

Outra forma de expressar sua vivência artística é a ciranda. Em 2015, a Ciranda Bela Rosa teve início, como uma maneira de complementar sua renda, só que fazendo o que gosta: compondo e cantando. “Pensei: ‘se eu fundar uma ciranda, vou fazer o que eu gosto – já admirava Zé Galdino e João Limoeiro – e era uma maneira de ganhar um trocado extra”, explica.

Em abril de 2022, o mestre realizou outro sonho: lançou seu primeiro álbum com composições autorais, O mundo de um cirandeiro (2022). Gravado no estúdio Fábrica, no Recife, o disco traz 12 faixas, que mesclam a ciranda ao maracatu de baque solto e também ao coco de roda. A produção musical é assinada por Filipe Silva. “Em O mundo de um cirandeiro, a gente foi cantar o meu mundo dentro do CD. Maracatu, ciranda e tem até coco de roda. Então, juntou tudo isso nesse trabalho que foi lançado no Parque dos Lanceiros, em Nazaré da Mata. Foi a realização de um sonho que eu sonhei lá atrás no passado e nem imaginava que se tornaria realidade”, afirma.

Detalhe, com estandarte, da sede do Maracatu Estrela Brilhante, em Nazaré da Mata

A banda que acompanha a Ciranda Bela Rosa é composta pelos músicos Filipe e Nailson (trombone); Luciano (sax); Tarcísio e Justino (trompete); Leandro Gervásio (tuba); Josiel, Fábio Júnior e Everton (percussão); Edilson e Carlinhos (roadie).

Em maio do ano passado, Mestre Bi fez sua primeira viagem internacional em uma turnê junto a outros artistas, como Ricco Serafim, Josivaldo Caboclo, e produção de Joana D’arc, por cidades de Portugal e Espanha. A música oriunda da Mata Norte de Pernambuco foi levada através de apresentações “inesquecíveis” a esses locais.

De sonho em sonho concretizado, aos poucos, Mestre Bi não guarda segredo sobre o que vem preparando para o futuro. Em suas redes sociais, novas apresentações e datas são divulgadas com frequência. Nos últimos meses, a Ciranda Bela Rosa circulou por vários locais, a exemplo das cidades do Recife, Buenos Aires, Vicência e Lagoa de Itaenga.

Os preparativos para o carnaval de 2023 – que acumula a saudade dos que não puderam acontecer por conta da pandemia – estão a todo vapor, tanto no Estrela Brilhante como em outros grupos do baque solto.

“Essa pandemia gerou muita expectativa em alguns maracatus. A maioria deles se preparou como se fosse ter um carnaval. Gastaram, vestiram, prepararam fantasias, outros, não. Mas agora a gente vê possibilidades reais. Os maracatus, em geral, estão trabalhando a todo vapor. Acho que está para ser um dos maiores carnavais dos últimos tempos. Pela espera, pela ansiedade que se criou e pelo investimento que se teve nesses anos parados. Acho que vai ser um carnaval histórico, principalmente pelo nível das agremiações. Vai estar tudo muito bonito, com fantasias novas”, conta Mestre Bi, e complementa: “Quando o carnaval chega, não tem preço. A brincância, a essência da cultura está ali, naqueles três dias. Então, é difícil até de explicar”.

ERIKA MUNIZ, jornalista com formação também em Letras.

HUGO MUNIZ, fotógrafo, vive em Olinda, é grande amante das brincadeiras populares de Pernambuco. Registra e acompanha a rotina e os festejos das pessoas que constroem e vivenciam esses folguedos. Tem atuação em maracatu de baque solto e de baque virado, cavalo-marinho, frevo, coco e ciranda.

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