Na faixa de abertura, o monólogo Cap 1 A cidade do desejo, Johnny narra, como se estivesse lendo um diário, um sonho. O Recife, cidade do desejo, entrou pelos sete buracos de sua cabeça. Ele sonha com uma sala rodeada de homens e mulheres nus, uma janela com grades de onde se observa um mar com tubarões. Com todo desejo, vem também a violência, “como uma dor que renasce a todo instante anunciada por um calafrio na espinha”. Dessa dor, que lhe aparta de seu país, o Brasil renasce dentro dele. Cada memória de cada amor permanece como um lembrete de que esse corpo ainda está vivo. A primeira faixa, estilizada enquanto um primeiro capítulo de um livro, lembra a cantora Rosalía. Mas a referência maior de Ørgia não é catalã, e, sim, argentina.
No início dos anos 1960, o escritor argentino Tulio Carella veio morar no Recife, a convite de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, para dar aulas de teatro na UFPE. Entre os intervalos das aulas, Carella mergulhou na noite do Recife e escreveu em seus diários as inúmeras aventuras sexuais que viveu na cidade. Preso pelos militares, que suspeitavam ser ele um agente de Cuba enviado para auxiliar as Ligas Camponesas, Tulio foi torturado, deportado e obrigado a silenciar sobre sua própria tortura, sob a ameaça de ter seus diários expostos na Argentina, sua homossexualidade revelada e sua reputação arruinada – na época ele era casado. Em 1968, encorajado pelo próprio Hermilo Borba Filho, Carella publicou, numa coleção de literatura erótica, Orgia, tornado um clássico cult da literatura brasileira, relançado em 2011 pela Opera Prima.
As similaridades entre a trajetória de Carella e a do próprio Johnny Hooker, persona criada por John Donovan, são um pano de fundo interessantíssimo, que permite a construção de uma obra que não é uma adaptação, mas, sim, uma inspiração para contar histórias recorrentes. Uma possibilidade para pensar a construção de masculinidades desviantes em um território inventado junto a uma identidade cultural patriarcal. Ao se apropriar dessa obra para construir sua narrativa, o artista, de algum modo, repete o que já havia feito em seus dois discos anteriores. Ao mesmo tempo em que ele fala da própria experiência, utiliza seu corpo para dar vazão às histórias dos que vivem seus amores pelas ruas do Recife.
A potencialidade queer de sua figura, desde a época da banda Candeias Rock City, contrasta com uma ideia de rock, de indie e mesmo de “música pernambucana”, cuja construção se dá marcadamente em torno de masculinidades heteronormativas. De lá pra cá, tanto sua sonoridade – agora mais pop – quanto a performance que apresenta em seus clipes parecem intensificar os resultados que entrega ao seu público a partir de seu fazer artístico. Johnny agora está menos glam rock e tropicalista e mais próximo às divas pop.
Para quem conhece a carreira e a trajetória do artista, é quase impossível assistir ao clipe do hit Amante de aluguel sem lembrar a “mulher em fúria no corpo de um homem com os olhos marejados de lágrimas”, frase com a qual o próprio Hooker já se definiu muitas vezes. Nessa canção, com forte influência da música brega, ele interpreta uma amante de aluguel que se apaixona por um rapaz que está preso às estruturas de heteronormatividade. A poética aqui, porém, não é a da mulher traída ou iludida, mas da mulher ciente de que, mesmo que seu amante a negue, é seu corpo desejante que fala a verdade. A temática da redenção através da festa e do prazer, que já aparecia no primeiro disco de Johnny com seu desbunde geral, também está aqui.
A segunda faixa do disco, CUBA, começa com um piano bem caribenho que se mistura às vozes do cantor, numa espécie de reggaeton mais lento, que poderia também ser um bolero. Depois ter sido mandado pra Cuba tantas vezes esses anos todos, graças aos seus posicionamentos políticos à esquerda, ele agora quer largar tudo e fugir para lá com o “menino da Aurora”, que poderia ser o mesmo que ele procurara pelos “bares da Aurora” em Volta (2015). O clipe é filmado em Itamaracá, que serve de metáfora para essa ilha paradisíaca, e, nele, Johnny faz parte de um trisal com um homem e uma mulher negros. Essa presença latina e tropical está no disco inteiro, e mesmo canções como Só pra ser teu homem, que já fazia parte do repertório do artista, surge num arranjo mais próximo ao flamenco que ao rock. O piseiro e o forró também marcam presença, na faixa Larga esse boy, em parceria com Jáder, uma indicação de que o artista acompanha as novidades instigantes da música pernambucana.
Após o lançamento de CUBA, Johnny declarou que pensava em desistir de sua carreira, porque a resposta do seu público, no número de visualizações, não era a mesma de outros tempos. Para a nossa sorte, isso não aconteceu e nem foi um impedimento que lançasse seu álbum mais complexo, cheio de nuances e com gostinho de clássicos do pop cheios de referências.
ANTONIO LIRA é jornalista, músico, pesquisador e mestre em comunicação pela UFPE.