Curtas

Ørgia

Álbum visual é o terceiro disco de Johnny Hooker

TEXTO Antonio Lira

01 de Dezembro de 2022

Johnny Hooker adicionou a cada música um vídeo que pode ser assistido em sequência

Johnny Hooker adicionou a cada música um vídeo que pode ser assistido em sequência

Foto Carlos Sales/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

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Da capa vermelha estilizada, que remete a um vinil antigo de uma diva do pop latino-americana. Das 13 faixas que navegam entre releituras de antigas composições e parcerias com novos compositores e performers variados. Dos clipes com referências bem-feitas ao estado da arte da música pop internacional. Tudo grita conceito em Ørgia (2022), terceiro disco de Johnny Hooker, lançado em junho. Produzido por Arthur Marques, Barro, DJ Thai, Felipe Puperi, Guilherme Assis, João Inácio da Silva e Tiago Bizani Abrahão, o álbum visual – ou álbum-filme, como foi chamado, pois cada música é acompanhada de um vídeo que pode ser assistido em sequência – é novamente permeado pelo desejo, tema central na obra do artista. Desejo de existir, de amar, de sentir prazer, de viver a vida em sua intensidade, sinceridade e pulsação dos corpos. Sobre as delícias, mas também sobre as dores de amar livremente num mundo que controla os corpos e os desejos, em especial de pessoas vulnerabilizadas.

Em seu primeiro disco, Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar maldito (2015), essa já era uma temática que circunscrevia todas as faixas. Johnny Hooker cantava, através de várias perspectivas diferentes, histórias de amores e desilusões que aconteciam no Recife, culminando na faixa Desbunde geral, que traz a chegada do carnaval quase como um momento de redenção. Essa diversidade de amores também se manifestava nos vários gêneros musicais que o artista aporta na sua criação, passando pelo rock, brega, frevo e até mesmo axé music. Mas nele ainda havia, tanto na identidade visual – quase toda preta – quanto na construção instrumental das canções, uma ligação forte com o rock, presente desde quando Hooker se apresentava com grupos como o Candeias Rock City.

Em seu segundo disco, o Coração (2017), ele continuou com essas temáticas, mas se afastou mais do rock, ao mesmo tempo que composições como Flutua, em parceria com a cantora paulista Liniker, traziam uma pegada mais pessoal e declaradamente política. Em paralelo a esses acontecimentos, o artista pernambucano foi consolidando sua carreira até chegar ao reconhecimento fora do Brasil. Agora, nesse novo disco, a influência da música pop internacional é mais latente, tanto nos arranjos eletrônicos quanto nas performances do artista e nas referências à música latina.


Imagem: Divulgação

Na faixa de abertura, o monólogo Cap 1 A cidade do desejo, Johnny narra, como se estivesse lendo um diário, um sonho. O Recife, cidade do desejo, entrou pelos sete buracos de sua cabeça. Ele sonha com uma sala rodeada de homens e mulheres nus, uma janela com grades de onde se observa um mar com tubarões. Com todo desejo, vem também a violência, “como uma dor que renasce a todo instante anunciada por um calafrio na espinha”. Dessa dor, que lhe aparta de seu país, o Brasil renasce dentro dele. Cada memória de cada amor permanece como um lembrete de que esse corpo ainda está vivo. A primeira faixa, estilizada enquanto um primeiro capítulo de um livro, lembra a cantora Rosalía. Mas a referência maior de Ørgia não é catalã, e, sim, argentina.

No início dos anos 1960, o escritor argentino Tulio Carella veio morar no Recife, a convite de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, para dar aulas de teatro na UFPE. Entre os intervalos das aulas, Carella mergulhou na noite do Recife e escreveu em seus diários as inúmeras aventuras sexuais que viveu na cidade. Preso pelos militares, que suspeitavam ser ele um agente de Cuba enviado para auxiliar as Ligas Camponesas, Tulio foi torturado, deportado e obrigado a silenciar sobre sua própria tortura, sob a ameaça de ter seus diários expostos na Argentina, sua homossexualidade revelada e sua reputação arruinada – na época ele era casado. Em 1968, encorajado pelo próprio Hermilo Borba Filho, Carella publicou, numa coleção de literatura erótica, Orgia, tornado um clássico cult da literatura brasileira, relançado em 2011 pela Opera Prima.

As similaridades entre a trajetória de Carella e a do próprio Johnny Hooker, persona criada por John Donovan, são um pano de fundo interessantíssimo, que permite a construção de uma obra que não é uma adaptação, mas, sim, uma inspiração para contar histórias recorrentes. Uma possibilidade para pensar a construção de masculinidades desviantes em um território inventado junto a uma identidade cultural patriarcal. Ao se apropriar dessa obra para construir sua narrativa, o artista, de algum modo, repete o que já havia feito em seus dois discos anteriores. Ao mesmo tempo em que ele fala da própria experiência, utiliza seu corpo para dar vazão às histórias dos que vivem seus amores pelas ruas do Recife.

A potencialidade queer de sua figura, desde a época da banda Candeias Rock City, contrasta com uma ideia de rock, de indie e mesmo de “música pernambucana”, cuja construção se dá marcadamente em torno de masculinidades heteronormativas. De lá pra cá, tanto sua sonoridade – agora mais pop – quanto a performance que apresenta em seus clipes parecem intensificar os resultados que entrega ao seu público a partir de seu fazer artístico. Johnny agora está menos glam rock e tropicalista e mais próximo às divas pop.

Para quem conhece a carreira e a trajetória do artista, é quase impossível assistir ao clipe do hit Amante de aluguel sem lembrar a “mulher em fúria no corpo de um homem com os olhos marejados de lágrimas”, frase com a qual o próprio Hooker já se definiu muitas vezes. Nessa canção, com forte influência da música brega, ele interpreta uma amante de aluguel que se apaixona por um rapaz que está preso às estruturas de heteronormatividade. A poética aqui, porém, não é a da mulher traída ou iludida, mas da mulher ciente de que, mesmo que seu amante a negue, é seu corpo desejante que fala a verdade. A temática da redenção através da festa e do prazer, que já aparecia no primeiro disco de Johnny com seu desbunde geral, também está aqui.

A segunda faixa do disco, CUBA, começa com um piano bem caribenho que se mistura às vozes do cantor, numa espécie de reggaeton mais lento, que poderia também ser um bolero. Depois ter sido mandado pra Cuba tantas vezes esses anos todos, graças aos seus posicionamentos políticos à esquerda, ele agora quer largar tudo e fugir para lá com o “menino da Aurora”, que poderia ser o mesmo que ele procurara pelos “bares da Aurora” em Volta (2015). O clipe é filmado em Itamaracá, que serve de metáfora para essa ilha paradisíaca, e, nele, Johnny faz parte de um trisal com um homem e uma mulher negros. Essa presença latina e tropical está no disco inteiro, e mesmo canções como Só pra ser teu homem, que já fazia parte do repertório do artista, surge num arranjo mais próximo ao flamenco que ao rock. O piseiro e o forró também marcam presença, na faixa Larga esse boy, em parceria com Jáder, uma indicação de que o artista acompanha as novidades instigantes da música pernambucana.

Após o lançamento de CUBA, Johnny declarou que pensava em desistir de sua carreira, porque a resposta do seu público, no número de visualizações, não era a mesma de outros tempos. Para a nossa sorte, isso não aconteceu e nem foi um impedimento que lançasse seu álbum mais complexo, cheio de nuances e com gostinho de clássicos do pop cheios de referências.

ANTONIO LIRA é jornalista, músico, pesquisador e mestre em comunicação pela UFPE.

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