Ensaio

W. G. Sebald e a meticulosa educação dos sentidos

TEXTO Kelvin Falcão Klein

01 de Novembro de 2022

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Foto Jerry Bauer/ Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 263 | novembro de 2022]

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I

Quando chega para morar em Manchester vindo da Alemanha, em 1966, aos 22 anos de idade, W. G. Sebald encontra uma paisagem que jamais abandonará seu universo poético. Ele fica impressionado com a vastidão do cimento e dos tijolos, as ruas vazias a perder de vista no horizonte, o cinza do céu e o caráter labiríntico do mapa da cidade. A primeira pergunta que pode ser levantada: mesmo no início da vida adulta, na casa dos 20 anos, Sebald já era o autor que mais tarde se tornaria? Depois de processar a estranheza da língua e dos costumes, depois de processar o choque inicial da chegada a Manchester, ele inicia um exercício – entre a inconsciência e a deliberação – de filtragem da experiência, algo que levará décadas de trabalho paciente. Sua vivência direta da cidade é, por sua vez, atravessada pela vivência indireta das leituras, e dois livros especiais acompanham Sebald nessa época: o romance de Michel Butor sobre Manchester, O emprego do tempo (1956), e o ensaio híbrido de Theodor Adorno, Minima moralia (1951).

Manchester vai aparecer na obra de Sebald em seu romance Os emigrantes, lançado originalmente em 1992, escrito no início da década de 1990 aproveitando notas dos anos 1960. No último dos quatro capítulos do livro, dedicado ao personagem “Max Ferber” (cada capítulo é dedicado a um personagem, que dá nome à seção), o narrador de Sebald fala da “fileira de casas uniformes” que encontra ao chegar em Manchester, “que davam uma impressão de abandono tanto maior quanto mais perto chegávamos do centro”. O narrador relata que, nos primeiros meses de sua nova vida na cidade, o “abandono” do exterior acaba invadindo sua subjetividade e ele é tomado por uma sensação “avassaladora” de “desorientação e futilidade”. Como forma de combater essa angústia, ele começa a caminhar pelas ruas, onde “vagava sem rumo entre os prédios monumentais do século XIX, enegrecidos pela ação do tempo”. A equação que se forma é recorrente na obra de Sebald: da angústia se passa ao movimento, à caminhada; com o movimento se chega à elaboração da experiência e, a partir disso, a narração, a literatura, o romance.

Em vários momentos na obra de Sebald, a literatura nasce do relacionamento com a cidade, com o mapa, com a caminhada. Existem também momentos de encantamento diante da paisagem natural, diante do campo e das árvores, das nuvens e do mar; mas é no contato com o cimento e os tijolos que parece aflorar o melhor da poética de Sebald. Seria possível montar um elenco e estruturar um ensaio só a partir do comentário acerca das cidades visitadas ou referidas por seu narrador: Londres, Paris, Bruxelas, Antuérpia, Jerusalém, Nova York, Zurique…

Ainda em Os emigrantes, por exemplo, parentes do narrador vão para Nova York no início do século XX, onde “todo o Lower East Side era um huge dormitory”, em meio a destilarias clandestinas, fábricas e sinagogas. Ao atravessar o oceano para visitar os Estados Unidos e resgatar informações da família, o narrador aluga um carro e passa “por diversos vilarejos mais ou menos dispersos” com nomes “em parte familiares”: Monroe, Monticello, Middletown, Wurtsboro, Wawarsing, Colchester e Cadosia, Deposit, Delhi, Neversink e Nineveh. Ele se movia “como se guiado por um controle remoto junto com o carro através de um país de brinquedo em escala colossal”.

Em Sebald, as cidades aparecem muitas vezes divididas entre dois tempos incompletos: o passado ainda irresolvido e o futuro incerto, em vias de extinção. Por um lado, essa suspensão temporal é decorrência de sua vivência da Alemanha pós-guerra quando criança, algo que ele analisa detidamente em seu livro Guerra aérea e literatura. As ruínas do país deviam ser rapidamente eliminadas para que se pudesse construir um “futuro”, um amanhã que só podia existir – segundo a ideologia dominante, que Sebald critica – a partir do recalcamento irrestrito dos traumas e das violências. Por outro lado, essa peculiar combinação de passado e futuro que Sebald propõe em sua ficção decorre de um olhar treinado, de uma postura deliberada por parte de um artista leitor de Freud, Walter Benjamin e Elias Canetti – alguém que reconhece que a vida no presente é feita de incontáveis sobrevivências de discursos, fantasmas e projeções.

Em Austerlitz, seu último romance, várias passagens falam dessa complexidade na convivência entre as temporalidades no tecido das cidades. Circulando por Londres, o narrador relembra os cemitérios que costumavam existir “no local onde foi construída em 1865 a Broad Street Station”. Nesse ponto da cidade, “escavações realizadas durante as obras de demolição em 1984 trouxeram à luz mais quatrocentos esqueletos sob um ponto de táxi”. O narrador está em contato com seu amigo e informante, Jacques Austerlitz, o homem que dá título ao romance, e ele afirma que estava no local e que tirou fotos das ossadas – é justamente isso que o leitor encontra quando vira a página, a reprodução de uma fotografia que mostra quatro crânios dentro de um buraco cheio de lama. Austerlitz conta que, no curso dos séculos XVII e XVIII, a cidade crescera acima dos “estratos de terra misturada com pó e ossos de corpos decompostos”, formando um emaranhado de “ruas e casas pútridas erguidas com vigas, torrões de argila e qualquer outro material à disposição para os moradores mais pobres de Londres”.

Depois disso, o leitor acompanha o desenvolvimento de uma longa passagem detalhando o processo de sobreposição de camadas na cidade, o modo como distintas ocupações ao longo dos anos vão formando o “vaivém peculiarmente lento e incessante” da vida comunitária. Sebald faz uso da conversa entre Austerlitz e o narrador para mostrar a complexidade da vida urbana, em qualquer cidade, em qualquer momento – basta saber escutar, observar, ler os indícios e os sinais. Vista por essa perspectiva, a obra de Sebald surge como uma meticulosa educação dos sentidos: trata-se de aprender a olhar aquilo que é, frequentemente, pouco visto ou observado; trata-se, ainda, de apreender os discursos do passado naquilo que tem de heterogêneo e por vezes contraditório; trata-se, por fim, de aprender o valor da digressão e do percurso acidentado, levando em consideração não apenas a linha reta, mas também a rota que leva mais tempo e que não necessariamente leva ao lugar imaginado.

Livro
Obras de Sebald. Imagens: Divulgação

II

“Vivo me perguntando que relações invisíveis são essas que determinam nossas vidas, e que fio as une”, escreve Sebald no ensaio Uma tentativa de reparação, do livro Campo santo. Eis o cerne da poética de Sebald, expresso em suas próprias palavras – investigação das relações invisíveis e de seus fios (os fios das vidas, dos textos, das imagens). Essa decifração do invisível ocorre sempre a partir de casos concretos, de exemplos, de análises de eventos e trajetórias, nunca a partir de panoramas abstratos ou de considerações vagas e pretensamente universais. No caso de Uma tentativa de reparação, originalmente o texto de uma conferência apresentada em novembro de 2001, um mês antes de morrer, Sebald está falando do poeta Friedrich Hölderlin e da relação dele com outra cidade, Stuttgart.

Na época de Hölderlin, o gado era levado de manhã cedo “até a praça do mercado”, onde bebia água “na fonte de mármore preto, a joia de sua terra natal”. Em breve, porém, a época passa a ser “marcada pela violência”, e com ela “advém o infortúnio pessoal do poeta”. As tropas francesas invadem a Alemanha e “os passos gigantescos da revolução fornecem um tenebroso espetáculo”, escreve Hölderlin, que decide abandonar seu trabalho como preceptor e voltar à estrada: “sobe sozinho as montanhas e desce pelo outro lado, tomando a estrada solitária que leva a Sigmaringen; de lá até o lago, são doze horas de caminhada”. Um ano depois, “em pleno janeiro”, cruza “as planícies do alto Loire, atravessando os temidos planaltos cobertos de neve da Auvergne, enfrentando tempestades e selvas até finalmente chegar a Bordeaux”.

Sebald utiliza a biografia de Hölderlin para falar da cidade que o recebe – Stuttgart, local da conferência – e, no percurso, fala também de si, da situação da literatura diante das turbulências históricas, da relação entre ética e estética. A trajetória do pensamento, contudo, é sempre marcada por detalhes, por pontos específicos no mapa das cidades e das mentes: Napoleão e Hölderlin, a relação entre França e Alemanha nos últimos anos do século XVIII, as horas de caminhada necessárias para ir de um ponto a outro. Hölderlin, de resto, faz parte de um conjunto de autores que Sebald sempre manteve por perto, figuras representativas de um modo “antiquado” de fazer literatura, mas que revitalizam o cenário contemporâneo com seus retornos eventuais: Eduard Mörike, Gottfried Keller, Adalbert Stifter, Jean-Jacques Rousseau, François-René de Chateaubriand, Theodor Fontane, entre outros.

Hölderlin retorna em Os anéis de Saturno, terceiro romance publicado por Sebald, em 1995, com o subtítulo “uma peregrinação inglesa”. O narrador faz uma longa caminhada pelo leste da Inglaterra, dividindo seu relato em 10 partes, encontrando pessoas, paisagens e histórias das mais variadas. No sétimo capítulo, o narrador de Sebald chega aos arredores de Middleton, onde visita a casa de um amigo de longa data, o escritor e tradutor Michael Hamburger. “Michael trouxera um bule de chá do qual subia de vez em quando um bafo de vapor como de uma locomotiva de brinquedo”, escreve ele, acrescentando: “Conversamos sobre o mês vazio e silencioso de agosto. Quebramos a cabeça em vão, dias e semanas a fio, e, se nos perguntassem, não saberíamos dizer se continuamos a escrever por hábito ou por vaidade, ou porque não sabemos fazer outra coisa da vida”.

O narrador nota um elemento quase mágico na casa de Hamburger: uma bomba-d’água de ferro no jardim, com o número “1770” gravado no alto, “o ano de nascimento de Hölderlin”. O fato do narrador e de Hamburger terem nascido no mesmo dia é outro traço perturbador ligado a Hölderlin: “Seguimos a vida inteira os passos de Hölderlin simplesmente porque fazemos aniversário dois dias depois dele? E Hölderlin não dedicou seu hino de Patmos ao landegrave de Homburg, e Homburg não era o nome de solteira de minha mãe? Ao longo de que distâncias no tempo vigoram as afinidades eletivas e as correspondências?”. Se, no ensaio Uma tentativa de reparação, Hölderlin funcionava como o elo que ligava o presente ao passado, tornando possível também o comentário de Sebald acerca de sua presença em Stuttgart, em Os anéis de Saturno, Hölderlin funciona como elo entre dois personagens, o narrador e seu amigo, ambos exilados alemães vivendo na Inglaterra. “Hölderlin” é uma espécie de senha que condensa temas como amizade, nostalgia e língua materna, permitindo que essas noções abstratas sejam absorvidas harmonicamente pelo tecido narrativo.

Repare também no mês em que ocorre o encontro entre o narrador e Hamburger, agosto, que volta algumas vezes ao longo da obra de Sebald, como na frase inicial de Os anéis de Saturno: “Em agosto de 1992, quando os dias de canícula chegavam ao fim, pus-me a caminhar pelo condado de Suffolk, no leste da Inglaterra, na esperança de escapar ao vazio que se alastra em mim sempre que termino um longo trabalho”. A localização precisa dentro da estrutura do calendário faz parte da minuciosa construção ficcional de Sebald, e “agosto” representa também um período de suspensão das atividades regulares do trabalho (ao menos no Hemisfério Norte) e de possibilidade de dedicação a atividades “laterais”.

Em Vertigem, o primeiro romance de Sebald, de 1990, uma parte importante do segundo capítulo se passa em agosto. “Dois de agosto foi um dia tranquilo”, escreve o narrador, e continua: “Sentei-me a uma mesa perto da porta aberta do terraço, papéis e notas espalhados ao meu redor, traçando correspondências entre acontecimentos muito distantes entre si, mas que me pareciam parte da mesma ordem”. Mais uma vez o tempo tradicional é suspenso no interior de uma cena, de uma situação – um evento que marca a própria possibilidade da literatura acontecer (as correspondências, as notas e os papéis).

obra de Sebald publicada no Brasil e comentadas neste ensaio
Obras de Sebald. Imagens: Divulgação

III

Desde sua morte prematura em 2001, Sebald tem sido objeto de intenso escrutínio da crítica, que o tinha como um garantido vencedor do Nobel de Literatura. Em paralelo, sua obra foi comentada e resenhada por grandes artistas e críticos, começando com Susan Sontag – espécie de embaixadora da obra de Sebald no mundo anglófono –, mas também nomes como J. M. Coetzee e James Wood. Esse interesse alcançou uma espécie de clímax em 2021, com a publicação de uma biografia escrita por Carole Angier, Speak, silence: In search of W. G. Sebald.

A recepção do livro de Angier, contudo, foi em grande medida negativa, o que deixa ainda em aberto o trabalho de uma análise exaustiva da vida de Sebald. O principal problema de Speak, silence diz respeito ao acesso às fontes, já que uma série de pessoas próximas a Sebald decidiram não falar com Angier, como foi o caso de Jan Peter Tripp, artista visual e amigo de infância do escritor, e, ainda mais importante, a viúva Ute Sebald, que tem controle sobre os papéis, o arquivo e os materiais ainda inéditos. Por conta disso, Angier se vê diante de uma série de lacunas, que tenta preencher com uma narrativa em primeira pessoa acerca das dificuldades da própria investigação biográfica – muitas vezes desviando totalmente o foco de Sebald.

Um dos principais pontos negativos da biografia de Angier é sua insistência em tomar Sebald como um escritor distante de seu contexto imediato, chegando ao ponto de escrever que o trabalho de Sebald “não é sobre a sociedade, e é por isso que seus livros não têm diálogos”. Em Sebald, o diálogo não é apresentado formalmente como em um típico romance realista – com as intervenções individuais indicadas com aspas, por exemplo. Seu modo de apresentação dos diálogos é, de certa forma, indireto e devedor do estilo de Joseph Conrad, com um narrador que apresenta em um fluxo único aquilo que ouviu de outras pessoas. Para além da dimensão técnico-formal dos diálogos, a obra de Sebald é irremediavelmente ancorada no social e no contexto imediato de sua emergência. Sebald registra de forma insistente os efeitos da atomização social, do esgotamento de recursos no planeta e da financeirização das relações. Ele tinha plena consciência de escrever em uma época e lugar, a Grã-Bretanha neoliberal, em que todos os laços sociais não econômicos estavam sendo subordinados aos interesses da acumulação de capital.

É possível pensar, por exemplo, nos terrenos baldios das chamadas “zonas de desenvolvimento” na área do antigo porto de Manchester, onde o narrador de Sebald encontra o pintor Max Ferber em seu estúdio, em Os emigrantes. Nessa região, “as construções que haviam sido erguidas para conter o processo geral de ruína já estavam elas próprias ameaçadas de ruína”. Ou resgatar as várias pequenas cidades interioranas despovoadas e as propriedades rurais arruinadas que o narrador encontra em seu caminho em Os anéis de Saturno, reflexos das políticas de austeridade de Margareth Thatcher ao longo dos anos 1980. “Hoje”, escreve Sebald sobre Lowestoft, “em muitas das ruas da cidade, quase que a cada duas casas, uma está à venda; empresários, comerciantes e pessoas físicas afundam cada vez mais em suas dívidas; semana a semana algum desempregado ou falido se enforca”. Em Austerlitz, muitas vezes a paisagem urbana é descrita como algo hostil ao humano, “a moagem surda da cidade” em consonância com “o zumbido dos grandes aviões que a intervalos de pouco mais de um minuto chegavam do nordeste planando baixo”.

Apesar das inconsistências, o trabalho de Angier oferece muitas informações preciosas acerca dos métodos de trabalho de Sebald. Como parte de sua pesquisa, Angier examinou os papéis de trabalho deixados por Sebald e hoje conservados em Marbach, na Alemanha, no Arquivo de Literatura Alemã. Segundo a biógrafa, a análise do material revela um homem de concentração obsessiva para cada detalhe de seus livros, um escritor que revisou e reescreveu com afinco tudo que fez.

O material preparatório para Os anéis de Saturno, por exemplo, chega a um volume de 2.000 páginas, das quais ele filtrou as 400 que hoje lemos. De certa forma, o acesso de Angier aos arquivos permite que ela tente dar conta do funcionamento da mente de Sebald, especialmente no que diz respeito aos seus procedimentos de corte, expansão, empréstimos e transposições – de outros textos e também da realidade. Essa mesma preocupação minuciosa foi transferida para as traduções de seus livros, que também tiveram muitos rascunhos, e nas quais ele restaurou e reescreveu passagens. Sebald passou 350 horas com o tradutor de Os Anéis de Saturno, Michael Hulse, uma proximidade que não ajudou nas relações entre os dois (Sebald, mesmo com todo o trabalho, ainda guardava reservas com relação às traduções de Hulse).

Essa intensidade no confronto com o tradutor mostra um traço da personalidade de Sebald que Angier destaca em vários momentos – sua tendência ao controle. Desde criança, o escritor se mostrou uma pessoa ansiosa, intensa e inteligente, com momentos de melancolia e humor sombrio, às vezes buscando o protagonismo nas dinâmicas familiares, às vezes buscando o confronto. Muitas vezes o desejo de Sebald de ter o controle das situações intensificava outro traço importante, sua predisposição ao isolamento e à solidão, aquilo que mais tarde ele colocará na conta da “melancolia”, ao escrever em um poema que nasceu “sob o signo de Saturno”.

Ao mesmo tempo que era muito apegado aos amigos, Sebald também tinha a tendência a não refrear comentários sardônicos e irônicos, que muitas vezes estremeciam relações. Testemunhos colhidos por Angier falam de um Sebald em convivência intermitente com a depressão, com crises nas quais ele temia cruzar “a linha da melancolia para a loucura”. A convivência cotidiana, contudo, era marcada por piadas e uma memória excepcional dedicada à escuta das histórias alheias. É possível encontrar mais detalhes acerca dessa dimensão de Sebald em livros como os de Philippa Comber (Ariadne’s thread: In memory of W. G. Sebald) e Uwe Schütte (W. G. Sebald).

O ponto mais polêmico da biografia de Sebald, contudo, diz respeito ao seu hábito de absorver discursos alheios em sua obra sem dar referências ou indicar fontes. Sebald pegou trechos emprestados de muitas obras e autores, desde Rousseau, Kafka e Wittgenstein, até Canetti, Thomas Bernhard e Samuel Beckett. Nesse sentido, ele é um continuador de Montaigne, que também trabalhava no limite dos gêneros e no exercício da apropriação. Vários momentos de seus romances são retirados das vidas de pessoas que ele conheceu – Angier conta que isso gerou uma série de problemas de família, fazendo com que amigos da mãe de Sebald se afastassem, enfurecidos.

Essa tendência ganha repercussões éticas mais sérias quando Angier fala da apropriação, por parte de Sebald, das histórias de imigrantes e perseguidos de origem judaica na Alemanha. Para criar o personagem de Jacques Austerlitz, por exemplo, que descobre já adulto que é, na verdade, judeu, e que foi enviado para Londres com quatro anos de idade pela família para escapar da perseguição nazista, Sebald pegou muitos detalhes importantes de um livro de memórias de Susi Bechhöfer, intitulado A filha de Rosa (Rosa’s child). Ela escreveu um artigo denunciando a situação, Sebald a procurou e disse que faria algo a respeito, mas morreu antes de resolver a questão.

Mais de 20 anos depois da sua morte, a vida de Sebald ainda está em questão, e permanecerá desse modo enquanto sua obra continuar sendo lida. Poucos autores das últimas décadas conseguiram alcançar o nível de unanimidade atingido por Sebald, e as revelações de suas vacilações éticas ao longo da realização de seus romances certamente contribuirão para uma revisão do processo um pouco apressado de sua “canonização”. As zonas de sombra fazem parte de qualquer retrato, sobretudo quando se trata de um artista complexo e incontornável como Sebald.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de O olho Sebald (2021).

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