Entrevista

“A literatura pode comover as pessoas com mais força do que uma tese”

Prosador e poeta cuja trajetória se destaca na literatura afro-brasileira desde as primeiras publicações, nos anos 1960, Oswaldo de Camargo tem agora obras relançadas por uma grande editora

TEXTO Jr. Bellé

01 de Novembro de 2022

Oswaldo de Camargo

Oswaldo de Camargo

Foto José de Holanda

[conteúdo na íntegra | ed. 263 | novembro de 2022]

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Aos 85 anos, Oswaldo de Camargo esbanja vitalidade física, criativa e intelectual. Após mais de duas dezenas de livros lançados e relançados, entre ficção e não ficção, sempre por editoras médias e pequenas, ele alcança a maior casa editorial do país. A Companhia das Letras republicou, em 2021, seu mais importante livro de contos, O carro do êxito, cuja primeira edição data de 1972 (Martins), com uma republicação, em 2016, pela Editora Córrego. Em julho deste ano, a editora lançou 30 poemas de um negro brasileiro, reunindo a primeira obra de Oswaldo, 15 poemas negros, lançado pela Associação Cultural do Negro em 1961, e algumas partes dos livros O estranho (Roswita Kempf, 1984) e Luz & breu, antologia poética que reuniu inéditos e publicados, editada em 2017 pela Ciclo Contínuo. Em 2023, a Companhia das Letras prepara o lançamento da novela A descoberta do frio, publicada em 1972 pelas Edições Populares, e republicada em 2011 pela Ateliê.

A tardia ascensão de um dos mais importantes nomes de nossa literatura e imprensa negra ilustra o descaso com que grandes editoras, e instituições difusoras de cultura no país, tratam a intelectualidade negra. A mesma indiferença pode ser verificada em outros autores de igual envergadura, como o decano da literatura afro-brasileira Carlos de Assumpção, editado pela Companhia das Letras em 2020, quanto tinha 93 anos. “Seu Oswaldo já deveria ter sido publicado há muito tempo por uma empresa grande, justamente para conseguir a visibilidade que ele merece. Para mim, é uma honra imensa fazer esse projeto”, conta Stéphanie Roque, jovem editora responsável por retrabalhar suas obras.

Ela sublinha que Oswaldo, desde o começo de sua carreira, é bastante lido, porém por poucas pessoas, normalmente vinculadas ao movimento negro. “Agora temos a chance de levar a literatura dele para um público mais amplo. Mais importante do que as vendas, é poder finalmente ceder o espaço que ele merece, para que as pessoas o vejam, o escutem e conheçam tudo que ele já fez”, destaca.

Entre as cruéis engrenagens do mercado de livros, Stéphanie vem se esforçando para inserir novas vozes e olhares periféricos em seu trabalho como editora. “É algo que fortalece esse processo em que nos encontramos hoje, de reconhecimento, identidade, de luta e resistência. Representatividade é importante, seu Oswaldo serve de inspiração para outras pessoas, e assim a gente recupera nossos ancestrais. É estranho usar essa palavra para quem está vivo, mas é isso. Eu venho de uma família negra e seu Oswaldo é quase o avô que eu não tive.”

Para a escritora Patrícia Jimin, a republicação das obras de Oswaldo de Camargo pela Companhia das Letras é motivo de orgulho. “Me sinto representada, pois sei que seu Oswaldo carrega consigo os milhares de escritores pretos que não alcançaram esse lugar. Com toda certeza essa é uma conquista coletiva”, ressalta. Apresentar para um amplo público as obras de uma lenda viva da literatura negra é uma maneira de colocar os leitores brasileiros em contato com vozes que há tempos servem de referência para toda uma comunidade. “A literatura dele me traz a sensação, nunca vivida, do colinho de vô contando histórias para seus. Suas obras devem ser, para esse país, e principalmente para o povo preto, pergaminhos manuscritos pelos nossos ancestrais, lembrando-nos em cada linha que somos a Obá do mundo, o princípio de tudo”, explica.

É possível que a dura e produtiva vida deste grande escritor negro o torne um ancestral vivo, ou no mínimo uma fonte de inspiração e resiliência, cujo talento e sensibilidade com as palavras dotaram-no de uma literatura capaz de debater temas complexos através de histórias e poemas singelos. Mas Oswaldo talvez jamais tivesse descoberto esse talento, não fosse um evento trágico, que lhe deixou profundas cicatrizes.

Nascido em Bragança Paulista em 1936, perdeu sua mãe ainda menino, aos sete anos de idade. Para além do trauma, essa morte prematura mudou seu destino. Ele e os dois irmãos foram internados no Preventório Imaculada Conceição, “uma instituição destinada a resguardar filhos de tuberculosos pobres – naquela época tuberculose era uma espécie de peste branca, matava muita gente. Era pra pessoas pobres, entre eles, evidentemente, os negros”, lembra-se Oswaldo. Foi no preventório que ele teve acesso à cultura erudita, aprendeu latim, conheceu o trabalho de grandes compositores da música clássica e do teatro. Quando completou 10 anos, foi transferido para outra instituição religiosa, o Reino da Garotada Dom Bosco de Poá, fundada pelo padre Simon Switzar, onde Oswaldo descobriu a paixão pela literatura. Aconteceu aos poucos, nas noites após o jantar, quando aos meninos era permitida uma hora de recreação interna. “Eu sempre pegava um livro durante esse recreio, e então comecei a amar a literatura”, lembra-se.

Aos 13 anos, idade limite para permanecer no Reino da Garotada, Oswaldo precisou ser novamente transferido, desta vez para um seminário. Foi então que o racismo começou a se revelar em sua vida. “Ninguém me aceitou na época, por uma questão claramente de cor. Eu acabei indo para um seminário em São José do Rio Preto, dirigido por padres holandeses, porque o Padre Simão, que considero um santo e para quem rezo todos os dias, era holandês. Os padres brasileiros não me aceitaram”, recorda.

No seminário, Oswaldo estudou música e humanidades, aprendeu a tocar harmonium e piano, e começou a escrever seus primeiros versos. No entanto, aos 17 anos, quando novamente a idade o obrigaria a migrar para um seminário maior e continuar os estudos que o conduziriam a uma vida eclesiástica, o racismo mais uma vez cruzou seu caminho. Assim, abandonou a carreira religiosa e se jogou no mundo, no jornalismo e na literatura.

Poucos anos depois, tornou-se membro da Associação Cultural do Negro, da qual posteriormente foi diretor de cultura. Trabalhou como repórter e editor de históricos e combativos periódicos da imprensa negra, como o Niger, Ébano, Novo Horizonte e os Cadernos Negros. Ganhou a vida como revisor do Estado de S. Paulo e redator do Jornal da Tarde. Suas obras de poesia e ficção repercutiram profundamente na comunidade e nos movimentos negros, não apenas pelo viés político, mas particularmente pela qualidade literária, como sublinha Stéphanie Roque: “O carro do êxito, por exemplo, é um grande livro, literária e politicamente. Ele colocou o personagem negro, que sempre foi deixado à revelia, para ser o centro das atenções e em postos importantes, como um intelectual, um embaixador, um jornalista. Ou seja, em papéis que as pessoas não costumam ver. Ouso dizer que o que seu Oswaldo fez em O carro do êxito ninguém mais fez. É isso que as escolas precisam ter, para que os alunos e os adolescentes leiam as pessoas negras também em outros papéis, em outros lugares que não os que a gente vê o tempo todo no jornal”.

Após o relançamento de suas obras por uma grande editora, Oswaldo prepara agora um livro de memórias. Seu objetivo é não reiterar um histórico erro já detectado por ele, e exposto numa entrevista ao professor Mário Augusto Medeiros da Silva: “Negros têm péssimo hábito: morrem cedo e não deixam memórias”. A depender da sua longa biografia já escrita, e daquela ainda por escrever, este livro será um testemunho de vida, de luta, de história coletiva, e uma grande aula magna de literatura.

CONTINENTE Sua experiência religiosa foi marcada por boas memórias e também por episódios de preconceito. Quais foram as cicatrizes que isso deixou na sua vida e na sua literatura?
OSWALDO DE CAMARGO Eu tive uma crise quando não me aceitaram no Seminário Maior do Ipiranga: eles não aceitavam negros. Foi minha segunda rejeição por conta da cor. Em alguns aspectos, isso marcou também o rumo da minha literatura, porque eu tive a experiência do preconceito, até mesmo do racismo. Muita gente escreve sem ter tido essa experiência. Continuei e continuo católico, toco órgão na igreja do meu bairro, mas vivi o preconceito e o racismo dentro da própria igreja. Os padres holandeses ficaram um tanto espantados porque os padres brasileiros não me aceitaram.

CONTINENTE Foi por orientação dos padres holandeses que o senhor abandonou o seminário?
OSWALDO DE CAMARGO Eu tive uma crise aos 17 anos. Deu-me um surto muito forte de tristeza, soma-se a isso o desenvolvimento da adolescência, inclusive sexualmente, porque adolescência é crise. A base do seminarista naquele tempo era castidade, e quando você está com 16, 17 anos, estão também todos os hormônios. Mas era preciso manter-se casto e aquela coisa toda. O fundamental da minha saída, no entanto, foi a rejeição por conta da cor, que me abateu muito.

CONTINENTE A religião continuou sendo um aspecto importante da sua vida?
OSWALDO DE CAMARGO Sim, até financeiramente. O primeiro dinheiro que ganhei foi tocando harmônium na Igreja do Rosário dos Homens Pretos: 30 mil réis por missa. Com esse dinheiro foi que comecei a formar minha biblioteca. Um dos primeiros livros que comprei, na Livraria Teixeira, foi Mar violento, de Daniel de Queirós, em setembro de 1954.


Oswaldo aos 10 anos de idade, quando saiu do Preventório
Imaculada Conceição, em Bragança Paulista.
Imagem: Reprodução/José de Holanda

CONTINENTE Em uma entrevista anterior, o senhor disse que há uma tríade que norteia sua vida: Deus, música e literatura. Ainda é assim?
OSWALDO DE CAMARGO Aos 85 anos, eu percebo, cada vez mais, que não fui eu que escolhi ser educado por freiras, padres… isso foi posto na minha vida. Eu poderia muito bem, como vários amigos meus, entender que Deus não faz diferença. Mas chega certo momento que você percebe: por que foi que minha mãe morreu? A morte não espanta tanto uma criança, ela vai perceber com o tempo tudo que a morte representa. Se minha mãe não tivesse morrido, eu provavelmente teria voltado para a Fazenda Sinhazinha Felix com meu pai, para apanhar café, que era o que ele fazia. Então, a morte da minha mãe, que foi teoricamente uma desgraça, me fez escritor, por incrível que pareça. Se minha mãe não tivesse morrido, eu talvez não tivesse aprendido a ler. Eu, aos 16 ou 17 anos, sob o impacto do sexo, teria feito crianças por aí, teria ficado em Bragança – mas em que situação? Não sei.

Eu acredito que existe alguém, um ser que você não conhece, que tenta conhecer, tenta ter uma noção de quem ele é, e se chama Deus. Deus não pode errar, então tudo que existe – e isso é uma concepção católica, teológica – tudo, inclusive as guerras, tudo que acontece, tem um motivo que desconhecemos: não é erro de Deus. Deus não errou. Então, eu acho que a morte da minha mãe, o racismo que eu sofri, tudo isso é para levar a algo além do nosso conhecimento. Deus é o rei da história, é o que comanda a história.

CONTINENTE Vou retomar o fio histórico: pouco depois que o senhor saiu do seminário, começou a atuar na imprensa, correto? Mas não só na grande imprensa, como revisor do Estado de S. Paulo, refiro-me especialmente à sua atuação como editor e jornalista de veículos como o Niger e o Novo Horizonte, que marcaram época como publicações independentes da imprensa negra. Como o senhor vê, atualmente, a imprensa e a participação de jovens jornalistas negros?
OSWALDO DE CAMARGO Aquilo que no meu tempo era chamado de imprensa negra praticamente não existe mais, tem muito pouco. Eu não tenho acompanhado. Naquele tempo, tinha uma imprensa diretamente voltada para o negro, como o jornal Niger e tantos outros. Levando em conta que o país tem cinquenta e tantos por cento de negros, pardos e mulatos, e a despeito de alguns homens e mulheres negras que estão na TV, a presença de negros no jornalismo ainda é irrisória. Sabe por quê? O Brasil é um país miscigenado de tal maneira, que você não consegue apontar exatamente onde está o negro: quem é o negro no Brasil? Eu sou negro, mas a questão não é apenas a cor; ser negro no Brasil, em parte, é uma questão política. Porque você, quando se vê como negro de verdade, conhece a sua história, entende o porquê de estar situado ali, o que foi que se fechou e o que foi que se abriu para você, o que se permitiu e se negou a você. Ser negro, assumir-se como negro, é uma questão política.

E digo mais: o êxito embranquece. Quanto mais êxito você tiver, está mais perto de ser reconhecido não como preto, mas como branco. Mesmo alguém da minha cor, a tendência é ver em Oswaldo de Camargo – veja, “ele toca piano”, “ele escreve” – mentalmente, dentro da história do Brasil, você se torna quase um branco. É uma luta para você reconhecer a importância da sua matriz negra, da sua matriz africana, que foi muito repudiada no passado e continua sendo. Quanta gente tenta fugir dela... Por outro lado, há um movimento muito grande para colocar todas as pessoas pardas e mulatas como negras. Há uma frente que quer alistar todo o pessoal que tem uma cor ensombrecida como negro. E, sejamos corretos, está crescendo também, nos mais esclarecidos, o número de pessoas que se aceitam como negros. O Brasil é um país muito complicado.

Os poetas Arnaldo Xavier, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo e Paulo Colina. Imagem: Reprodução/José de Holanda

CONTINENTE O senhor disse em algumas entrevistas anteriores que a grande reivindicação das pessoas negras era o respeito. Essa era a palavra principal. Qual palavra resume a revindicação atual?
OSWALDO DE CAMARGO A palavra que hoje está mais perto, politicamente, é igualdade. É a palavra que mais se aproxima na questão política. Para você ser igual, você tem que ter as qualificações, aquilo que te torna igual. Há pessoas que não se veem iguais, veem-se inferiorizadas – pelo que comem ou bebem, pelo que vestem, por onde moram. Essa pessoa olha gente passando em bons carros, moças bem-vestidas, brancas em geral, e não passa pela cabeça dela a palavra igualdade. Ela não se vê como uma igual. A igualdade seria uma revolução. Sem uma revolução, e não estou falando numa revolução sangrenta, não se faz igualdade, porque a própria pessoa não se vê igual. Quem está na universidade, que frequenta ambientes culturais, que sabe ler, esta pessoa consegue reivindicar igualdade, quer ser tratada com respeito. Agora, há movimentos em empresas que pretendem aumentar o número de pretos: isso é uma ideia nova, diz que rende mais. O Brasil é um país conflitante. Por um lado, há um movimento de fazer crescer os direitos, por outro, há pessoas que não têm condições de saber que têm direitos, e isso é dramático.

CONTINENTE Quando o senhor descobriu, politicamente, que era negro?
OSWALDO DE CAMARGO Eu posso dizer que descobri que era negro, sem grandes convicções, quanto tinha 10 anos. No preventório, eu era o único pretinho, aí apareceu uma pessoa parda. Lembro que havia uma brincadeira que usava uma evocação sobre São Pedro, que falava algo como “Tu es Pedrus”, e esse menino pardo falava para mim “Tu es pretus”. Ele falava como se falasse em latim, mas não existe pretus em latim. Com isso comecei a reconhecer minha presença, aquela coisa solitária, como indivíduo escuro dentro de um ambiente. No seminário, eu era o único preto também. Só depois de alguns anos é que foi aparecer um outro menino chamado José Afonso Imbá. Quando você é preto dentro de um ambiente que só tem meninos brancos, não há como não ser notado. Então, comecei a perceber isso. Mas, na verdade, a contundência de me ver como preto foi quando fui rejeitado no seminário maior.

CONTINENTE Então imagino que quando o senhor descobriu a Associação Cultural do Negro tudo mudou, a vida ganhou outro sentido.
OSWALDO DE CAMARGO Foi um deslumbramento. Foi muito importante. Porque eu vi, aliada à palavra negro, a palavra cultura. Foi o que me fez procurar pela associação na hora. Eu descobri a associação num anúncio de jornal, e era sobre uma coisa que eu nunca fiz, nem farei, na vida: dança. Era um anúncio de uma festa, um baile promovido pela Associação Cultural do Negro. O baile passou despercebido, mas a expressão associação cultural, não. E lá eu fiquei, tornei-me diretor de cultura e tudo.


Foto: José de Holanda

CONTINENTE O senhor lembra a primeira vez que foi lá?
OSWALDO DE CAMARGO Era 1955, no Prédio Martinelli, 16° andar. Até esse momento, minha experiência literária era a experiência de um seminarista. O que eu escrevia era moldado por essa experiência. Quando eu entro na associação, começo a viver num mundo explicitamente negro, o que não era o seminário, nem era o preventório. Eu vou conviver com pessoas históricas: fui privilegiado. Ali estavam: José Cunha Leite, da imprensa negra, Solano Trindade, um poeta já conhecido; Florestan Fernandes, professor da USP; Colombina, fundadora da Casa do Poeta, um reduto neoparnasiano.

CONTINENTE No prefácio do livro O carro do êxito, é citada uma história vivida pelo Cuti, outro grande poeta negro: ele ainda era jovem e estava andando pelas ruas de Santos quando viu, na vitrine de uma livraria, um livro seu. Ver o livro escrito por um poeta negro exposto, em destaque, transformou a vida dele e foi marcante para a literatura que produzia. Estamos falando aqui de representatividade. Como o senhor vê, a partir desse eixo, o relançamento das suas obras pela maior casa editorial do país?
OSWALDO DE CAMARGO Acho que a reedição dos meus livros, também os do Carlos de Assumpção e da Carolina Maria de Jesus, são passos importantíssimos para quem escreve literatura negra, mas não só para nós. É pra que essa literatura que nós escrevemos hoje chegue, afinal, a um ponto de ser respeitada como literatura. O escritor negro está sendo respeitado. Porque uma editora como a Companhia das Letras publicar negros é algo inédito. Ninguém tinha essa crença, ninguém esperava isso. É claro, ela está se dedicando porque houve, no mundo todo, uma reviravolta. Mas ela começou a olhar melhor e percebeu a importância de juntar a literatura negra, o negrismo, às temáticas várias, como o indianismo e tantas outras. Por que é importante? Porque os problemas fundamentais do negro brasileiro não foram resolvidos até hoje.

CONTINENTE Os problemas enfrentados pela sua geração e pela atual são os mesmos?
OSWALDO DE CAMARGO São semelhantes, mas com uma diferença fundamental: a despeito de tudo, hoje o negro tem muito mais armas para enfrentá-los. E isso também porque nós lutamos, a Frente Negra, a Imprensa Negra, gente como o Lino Guedes, na sua poesia humilde, tudo isso foi criando um rosto de respeito para o negro. Naquela época, não se conhecia a África, ninguém tinha visto a África, a África era uma imaginação, e em grande medida, dos brancos. Hoje, não, hoje há pessoas que vão à África com a maior tranquilidade, conhecem a África, veem a diferença entre o que a África e os africanos querem e o que nós queremos. Literariamente falando, não bate. O africano se vê como africano e nós nos vemos como negros. Não se pode falar de uma literatura negra na África. Lá é literatura africana.

CONTINENTE Seu Oswaldo, vou entrar na seara dos livros relançados. O carro do êxito é um livro cheio de personagens e situações que dialogam diretamente com sua biografia. Em que profundidade essa contaminação entre real e ficcional acontece nessa obra?
OSWALDO DE CAMARGO Apesar de eu fazer uma autoficção, não quer dizer que todos os personagens que estão ali sejam eu. No conto Maralinga, por exemplo, alguém pode imaginar que meu pai me entregou para um senhor, mas não, isso é pura ficção. Meu pai morre quando eu tenho oito anos. Aliás, ele morreu quando foi me visitar: teve um ataque de epilepsia e daí foi embora. Lembro muito bem quando ele caiu, tinha ido me visitar no preventório. Mas, misturada com os personagens criados, estão as minhas experiências numa cidade como São Paulo, isso é verdadeiro. Todo ambiente que eu descrevo não é minha autobiografia, é minha interpretação de personagens com quem eu convivo.


Foto: José de Holanda

Um exemplo disso é o conto Negricia, o protagonista tem muito de mim. Outro exemplo é um dos contos que é considerado um dos meus melhores, o que não cabe, a mim, dizer: Civilização, nesse conto tem muito de mim como músico, assim como Oboé. Eu nunca toquei oboé, nunca peguei um oboé na mão. Isso é importante: o oboé é uma transfiguração do meu conhecimento de organista e pianista, eu jogo isso para o oboé, um instrumento altamente simbólico, ele mostra a busca de conhecimento e saber, algo que vai abrir meu caminho. Mas o oboé, na verdade, pode significar educação, cultura, religiosidade, tudo que me deu rumos: é isso que o oboé simboliza.

CONTINENTE Outra característica marcante do livro é que vários personagens se repetem e reaparecem em diferentes contos.
OSWALDO DE CAMARGO Ah, sim, eu sou repetitivo.

CONTINENTE Minha sensação sobre essas repetições é que estou lendo sobre uma comunidade, cada conto fala de um dos personagens desse mesmo lugar.
OSWALDO DE CAMARGO A intenção é essa. Mário de Andrade diz “sou trezentos ou trezentos-e-cinquenta”. Eu também. Sou o Oswaldo, sou o Teobaldo, o Paulinho…

CONTINENTE Qual a dificuldade e a responsabilidade, como homem e escritor negro, de fazer uma literatura engajada e, ao mesmo tempo, inventiva e original?
OSWALDO DE CAMARGO É muito difícil. Alguns autores negros acham que o essencial é transmitir aquilo que você sente como negro. Mas para ser um escritor negro é importante ter aquilo que Drummond pergunta muito bem: “Trouxe a chave?”. Ela só pode ser literatura se você usa a chave, que é a técnica, é a transfiguração de uma realidade em literatura. Pra mim, literatura é transfiguração, por isso ela pode comover as pessoas com mais força do que uma tese. Se for falar da realidade do negro, tem muita tese. Mas a literatura tem o poder de, com beleza estética, dizer verdades. A pessoa, às vezes, nem percebe que está diante de algumas verdades, que são descritas com certa estética: é isso que eu chamo de literatura negra. Não é porque a minha mão preta está escrevendo uma receita de remédio que se torna literatura negra. Para chegar a isso, há um trabalho.


Companhia das Letras editou estes dois títulos
do escritor 
e, em 2023, prepara-se para publicar
A descoberta do frio. Imagens: Reprodução

CONTINENTE O título O carro do êxito faz alguma referência ou crítica ao livro Carro da miséria, do Mário de Andrade, ou é só uma coincidência?
OSWALDO DE CAMARGO Não, não faz nenhuma referência. Quando eu escrevo O carro do êxito já está havendo algumas mudanças na coletividade negra. Já estão surgindo alguns meninos estudando na USP, algumas pessoas melhor empregadas do que no passado. O êxito a que eu me refiro é o negro se reunindo na casa de outro negro, que tem uma bela casa. Esse é um exemplo que, aliás, narro num conto: é sobre um personagem que tem um casarão e todo ano ele reúne um pessoal. Nesse mesmo conto tem um fator fundamental, que é a adoção que um branco faz de um menininho preto, como aconteceu com Lino Guedes, com Cruz e Sousa – e esse preto vai, às vezes, ter êxito porque ele foi adotado. A família não teria condições de dar a ele o que ele conseguiu.

CONTINENTE Falando em Lino Guedes: o senhor escreveu um ensaio sobre ele, que depois foi transformado em livro. Da mesma forma, escreveu um ensaio sobre o Mário de Andrade, com o título de Negro drama – Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade. Ou seja, o senhor trabalha a biografia e as obras desses autores a partir de uma perspectiva racial. Qual a relevância disso?
OSWALDO DE CAMARGO É importantíssimo. Eu agrego uma coisa que foi rejeitada. A matriz africana e a África foram desprezadas, vilipendiadas na história do Brasil. Quando eu pego um personagem indubitavelmente de êxito, como o Mário de Andrade, e mostro que ele tinha uma origem africana pelos dois lados, do pai e da mãe, já se torna para todos os negros um motivo de orgulho e vaidade. Porque se tentou esconder isso. Quando Mário frequentava a casa lá na Avenida Paulista, da Dona Olivia Penteado, uma das ricaças da época, ninguém via no Mário um negro, nem um mulato, porque o êxito embranquece, sobretudo se a pessoa é mulata ou parda, é mais fácil despi-lo da africanidade. O Mário não era visto como negro, nunca foi, seria uma ofensa para ele. Por outro lado, as pessoas da coletividade negra olhavam o Mário e diziam: ele é negro. Olha que coisa terrível isso: que coisa terrível para ele. Muitos cobravam dele, sim, que ele fosse negro. Mas o ambiente em que ele vivia, com Olivia, com Menotti Del Picchia, com Oswald, que se casou com Tarsila do Amaral, nesse ambiente não poderia haver um negro.

CONTINENTE Machado de Assis é um caso semelhante?
OSWALDO DE CAMARGO Machado não era exatamente negro, isso infelizmente eu sou obrigado a dizer. Ele era um pardo, pelo lado do pai, José Francisco, e ele era neto de um negro forro: tinha as marcas no cabelo e tudo. Ele podia ser visto muito bem como um negro, mas na época o mulato não era visto como negro: o negro era o escravo, eu seria o negro, o retinto. O pardo, como o Machado, e que teve êxito, jamais seria visto como negro.

CONTINENTE Agora vou pular para outra seara, a poesia, e o relançamento de 30 poemas de um negro brasileiro. Começo perguntando sobre algo muito presente no livro: a angústia. Ela está presente reiteradamente como palavra e como sentimento, é uma marca muito profunda. Por que a angústia fala tão alto nesses poemas?
OSWALDO DE CAMARGO Eu acho que essa angústia fala alto porque sou católico, e a palavra angústia está muito dentro do catolicismo. Um negro católico percebe suas limitações, como homem, como cumpridor de uma meta, que seria a meta da santidade. Ser católico, no fundo, seria isso: você tem que ser santo. Piora quando você soma essa angústia ao fato de ser negro, um negro que biblicamente é condenado pelo Gênesis: “Maldito seja Canaã”. Isso é fundamental: dentro do catolicismo, Cam era o maldito. Quando rejeitavam um menino negro para ser padre, estava aí latente o mito de Cam. Angústia quer dizer o quê? Quer dizer estreiteza, você percebe a estreiteza do seu caminho devido a alguns fatos históricos. Você está fechado por contingências históricas, religiosas e um monte de coisa. E soberano a tudo isso está o branco, que é a Europa: a Europa que comanda a santidade, a Europa que comanda a beleza, a Europa que comanda o futuro. Isso dá a você uma sensação de estreiteza, que é a palavra angústia.

Foto: José de Holanda

CONTINENTE O senhor contou numa entrevista ao poeta Edson Cruz que o poema Grito de angústia, provavelmente seu poema mais conhecido, foi escrito aos 23 anos, mas que o senhor tinha um problema com o último verso. Quando o senhor fez as pazes com ele?
OSWALDO DE CAMARGO Eu fiz as pazes com esse último verso quando percebi que, sem querer, estava traduzindo o sentimento de muitos negros. Um sentimento que eles não sabem expressar, mas eu consegui. Imagine nos morros, essas mortes, essas balas perdidas, essa miséria, um negro lá que às vezes nem tem uma refeição, pensa: poxa vida, quem sou eu, sou um negro, um preto, mais um preto, sou um nada. A palavra correta aqui seria: sou um preto fodido. Aliás, eu uso esse termo no conto Civilização. Essa angústia já não é muito minha, porque me aposentei, virei jornalista, mas é de um negro apertado naquela miserabilidade que ele não consegue sair. Isso gera angústia.

CONTINENTE O senhor conta, na introdução da obra, que o poema Fragmentos em prosa foi escrito logo depois de uma visita a Hilda Hilst. O senhor percebeu um abismo entre o mundo dela e o seu. O abismo foi a inspiração?
OSWALDO DE CAMARGO Sim. E a admiração pela poesia dela. A Hilda teve uma influência muito grande na minha primeira fase, no meu estilo, em tudo. Imagine só: eu vou, como revisor de um jornal, à casa de uma poetisa admirada, ela me recebe e fala de cor um poema do Jorge de Lima, que eu também apreciava. Quando eu saio de lá estou um pouco estonteado com o encontro. Em casa, meu subconsciente traduz todo meu sentimento de opressão, de angústia: eu percebo o ambiente em que eu vivo, da minha casa na Alameda Northman, onde em cima morava a dona da casa, penso no meu irmão que estava alcoólatra, e eu percebo um abismo que existe entre a minha realidade e a da Hilda: branca, bonita, elogiada, mora na Alameda Jaú, lá em cima, na Avenida Paulista, num ambiente de uma classe média para cima. Na hora isso explode e já no primeiro verso veio tudo, quase sem retoques depois.

CONTINENTE O prefácio da edição original do 15 poemas negros foi escrito pelo Florestan Fernandes e mantido nessa reedição. Nele, Florestan destaca que um negro, produtor de cultura, já é por si só uma aberração num mundo organizado por e para brancos. Na sua introdução à obra, como uma resposta ao Florestan, o senhor fala que se aceitou como aberração. Por quê?
OSWALDO DE CAMARGO Sim, eu aceitei o fato de eu me dedicar tanto à literatura, mesmo sendo muito pobre, pagando aluguel da casa, sendo praticamente o único esteio econômico da família – eu entrar na literatura, comprar livros, doar horas e horas a isso era, na verdade, um desvio do meu caminho normal, que seria a não literatura. Então, para mim, ser escritor era uma aberração, era um desvio do meu rumo natural. Para levar uma vida natural eu deveria me dedicar apenas a ganhar algum dinheiro, no entanto, estou me desviando com compra de livros e tanta coisa que não tem um fim prático. Eu me aceitei como uma pessoa que está em aberração, fora do rumo.

CONTINENTE O senhor tem uma trajetória importante no movimento negro, na intelectualidade e na literatura negra, e o Sérgio Camargo, seu filho, também seguiu um caminho de militância, no caso dele, na política, mas também se posicionando como um homem negro, ainda que numa postura bastante diferente da do senhor.
OSWALDO DE CAMARGO Abissalmente diferente.

CONTINENTE Isso é uma dor para o senhor? Como é essa relação?
OSWALDO DE CAMARGO Quando ele foi exonerado, eu me senti aliviado. Porque nosso relacionamento é muito bom. Ele sabe muito bem que eu não compactuo com o que ele pensa. Até fico admirado, você veja minha casa: é uma casa negra, dentro do meu tipo de vida. Um exemplo do por que fiquei aliviado: se ele ficasse e levasse adiante alguns projetos que ele tinha, como trocar o nome da Fundação Palmares para Princesa Isabel, desmobilizar a figura do Zumbi, tirar o feriado do 20 de novembro – aí eu seria moralmente obrigado a confrontar-me com ele. Eu estava evitando isso. Todo mundo sabia. Eu só dizia o seguinte: as ideias dele não são minhas, ele está usando a liberdade dele. Mas, a partir do momento em que ele fosse mais adiante, eu seria obrigado a tomar, clara e publicamente, uma posição frontal contra ele. Quando ele foi exonerado, esse perigo acabou. Agora ele vai sair candidato a deputado federal. Ele vem aqui, me trata muito bem, somos amigos, mas ele sabe que eu jamais vou mudar o rumo do que eu penso. E o que penso é que há uma desigualdade e ela tem que ser combatida, o mais desigual ainda é o negro, que é desigual por motivos históricos.

JR. BELLÉ, jornalista e poeta, doutorando em Estudos Literários pela UFPR. Autor de Trato de levante e amorte chama semhora, ambos pela Editora Patuá. Vencedor dos prêmios Amaré-Flipoços e Variações de Literatura LGBTQI+. Acaba de lançar seu primeiro romance, Mesmo sem saber pra onde, pela Editora Folheando.

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