Crítica

Este paraíso e outros territórios da imagem

TEXTO José Afonso Jr.

01 de Novembro de 2022

'Cicatriz I', 2019, fotografia digital, dimensões variáveis

'Cicatriz I', 2019, fotografia digital, dimensões variáveis

Foto Gilvan Barreto

[conteúdo na íntegra | ed. 263 | novembro de 2022]

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Para Mauricio Lissovsky

CENA 1. Abertura. Lembremos: é o país que nasceu com o nome de uma mercadoria.

No livro Paraíso (Cobogó, 2022, 220 pp), do fotógrafo e artista visual Gilvan Barreto, a paisagem é protagonista. Mas não se deve entendê-la como algo imutável. Muito menos sermos passivos diante dela. Sujeitos à contemplação, à admiração de algo que sempre esteve ali. As paisagens, como tudo que nos cerca, são resultados de construções, desconstruções, arranjos e, como Paraíso nos mostra, de violência.

Na superfície das fotografias e da paisagem estão acumuladas cicatrizes, nem sempre visíveis. Já na abertura do livro, um tronco de árvore manchado de vermelho dá a senha de como o percurso de leitura e observação das imagens pode ser realizado. O pau vermelho, primeiro alvo do extrativismo que submeteu uma terra ao signo encarnado da permanente exploração, do arrancar do chão as riquezas, bem como extirpar do caminho o que, ou quem, se oponha a esse projeto.

O paraíso é uma ideia concebida no livro de modo sempre ambíguo: é olhar a paisagem como o que era, o que foi feito dela e o que ela pode vir a ser. Gilvan elabora a narrativa do livro como um filme: as cenas são prospecções de trabalhos, pesquisas, performances, intervenções e obras realizadas por ele ao longo de uma década e meia, exibidas em exposições e lançadas em livros. A linha de força da narrativa percebe a paisagem de um país não com uma pretensão histórica totalizante, mas como um testemunho dos sentidos percebidos de modo descontínuo, tanto no tempo como no espaço, que age sobre o território em uma dimensão além da política, do poder.


Moscouzinho, 2012, colagens e fotografias digitais e analógicas, dimensões variadas. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação

CENA 2. Interior. Jaboatão dos Guararapes, infância, vermelho.

A visão do paraíso exuberante dissimula, na aparência, que toda história de cultura também é de tragédia e violência. Um território cercado, mas sem fronteiras. Jaboatão-Moscouzinho é um apelido de uma cidade pernambucana que foi reduto comunista cercado por ditadura por todos os lados. A criança Gilvan reaparece na narrativa, a partir de uma redação de quarta série de tema curiosamente livre: “O que falta no país”. Ao que aquela criança escreve: “Falta comida, falta escola, dinheiro, um presidente que pense no povo, governadores de oposição, emprego, baixar custo de vida, honestidade. Falta tanto dinheiro, que estamos pedindo emprestado ao FMI. Daqui a pouco vai pedir mais”. Era começo dos anos 1980.

Esse núcleo do livro se organiza a partir de colagens de documentos do Dops, recortes de jornais, álbuns de família, devaneios e pesadelos. São reminiscências que reverberam no presente traumas que hoje se respiram no ar. É um reencontro de Gilvan com ele mesmo através de fotografias que trazem do interior do artista a aparência possível do que esteve à frente da câmera. Imagens de pedaços. Moscouzinho, uma ilha-cidade que só é possível na lembrança, e no seu resgate.

Moscouzinho tem trilha sonora vermelha. Na obra/performance em vídeo O Guarani, de 2016, uma vitrola toca a ópera de Carlos Gomes, tema de abertura do programa de radiodifusão obrigatória instituído no regime militar. Um líquido vermelho-sangue começa a invadir a superfície do vinil e a perturbar a sonoridade da música. Tudo o que sai de um regime político mentiroso é algo distorcido.

Essa trilha se organiza no livro ironizando uma etnia indígena – os guaranis –, tão massacrada nesta “paisagem” durante séculos. Ecoa da memória da infância, do testemunho e da convivência, “de ouvir aquilo no carro com meu pai e lembrar a tensão do povo tentando entender nas entrelinhas o que é que estava sendo dito ali”.

É um método do livro/filme que atravessa trabalhos separados por tempos e propostas dessemelhantes. Paraíso é um lugar de acionamento do jogo de lembrança, no sentido de vencer o esquecimento, de reinterpretá-lo. É a tensão da imagem: deixar os acontecimentos em um canto para serem dissipados pelo tempo. Mas ali há algo esperando, em lenta combustão, o momento de acender o desejo de um encaixe com o presente.

O guarani, 2016, vídeo digital HD, 6’16’’
O Guarani, 2016, vídeo digital HD. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação

CENA 3. Externa. Água, azul.

Em outro momento que invoca um sentido de cerco e isolamento, a pandemia da Covid-19, nadar no mar era uma das poucas atividades permitidas. Dias depois das Forças Armadas ganharem na Justiça o direito de comemorar o golpe de 1964, Gilvan escreve na água do mar, através do seu nado e munido de um GPS, mudando o rumo e contando braçadas. É outra carta que fura o contorno invisível da violência. O que resulta da espera entre esforço físico, justaposto com tecnologia e natureza, é a inscrição Mata dores. Uma carta náutica, um ato-de-imagem político, não percebido por quem porventura testemunhasse o nadador no mar. Um grito imenso e silencioso, no mesmíssimo 31 de março, em performance na qual a fotografia mostra o invisível.

O cerco pela água está sugerido desde 2010, de modo mais nítido na intervenção/performance Fronteiras. Uma fita vermelha desenha contornos aleatórios, resultado da flutuação nas ondas que quebram na areia do mar. A sequência dos cliques da câmera registra variações de um mapa imaginado, que se altera enquanto se move. É uma pergunta sobre os caminhos, os limites e as bordas. Um lugar incerto, marcado pelo veio vermelho que invade o território, de forma análoga ao país que foi elaborado a partir de invasões, escravidão e sangue.

Cartas náuticas, 2021, performance, imagens Google Earth Studio. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação

CENA 4. Plano Geral. O sertanejo sonha com água.

De 2010 a 2016, o semiárido nordestino sofreu a maior estiagem em mais de um século. A ideia do sol causticante revela uma paisagem aparente que é imutável. Resultado de tantas secas, tanto sofrimento, êxodos que buscam horizontes e fronteiras com mais chances. Atravessam essas imagens, feitas por Gilvan no Livro do sol em 2013, uma conexão fantástica de evocação de águas em abundância, que aparecem em sonhos, em parques aquáticos abandonados, carros-pipa, cisternas. Surgem da contradição entre estiagem e seca. Mas também do projeto político contínuo de esquecimento do território, ensinado pela palavra sertão, que significa: terra desconhecida.

São fotografias quase de outro planeta. Chegam até nós de uma cápsula do passado ou do futuro, pois sabemos que as cenas da violência da escassez se repetem. Na entrevista por telefone que fizemos para essa resenha, Gilvan recupera a experiência de uma dessas fotos, a de uma carreta transportando uma piscina de fibra de vidro: “O que faz num lugar que não tem água para beber, uma piscina nova viajando pela estrada? É a desigualdade da desigualdade. É a piscina viajando por aquele lugar seco e indo provavelmente para a casa de um prefeito (...) Essa piscina me deu raiva, nem pela realidade social. Foi porque eu olhei e achei aquilo incrível do ponto de vista da imagem. Caramba! Eu queria ter criado essa imagem. Por outro lado, se eu criasse aquela imagem tão surreal, ela não tinha a força do real, aquilo é real. Aquela era uma pauta factual”.

Fronteiras, 2010, fotografia digital, 90 x 60 cm. Foto: Gilvan Barreto/Divulgação

Se são fatos, são também agressões na direta proporção em que se percebe uma força imensa direcionada a domar a paisagem. Rebobinando a fita, já que esse livro também é um filme feito de imagens dos últimos 50 anos, temos um vídeo no qual uma série de homens brancos, generais de paletó, inauguram em Altamira, no Pará, obras da rodovia Transamazônica. Essa mesma estrada que se meteu em meio ao mato, para depois o mato tomar conta dela. Gilvan coloca o filme de trás pra frente, implora a volta, o control+z da história. Militares, nesse momento reverso, andam para trás, tratores não derrubam a floresta, mas reerguem as árvores.

Nenhuma fotografia ou imagem, Gilvan nos lembra, está livre de apropriações e ressignificações. Uma fotografia sempre é e será. É preciso esperar por isso.

O livro do sol, 2013, fotografia digital
O Livro do Sol, 2013, fotografia digital. Foto: Gilvan Barreto/Divulgação

CENA 5. Plano detalhe. Cartões-postais, fome.

A velha ideia que coloca o homem e a natureza em um duelo é revisitada em meio à ditadura militar, quando criada a Embratur. Uma agência de promoção do turismo, em terras tropicais, exuberante em praias, matas, povo, fauna, flora, pouca roupa e futebol. Nesse esforço, uma coleção de cartões-postais exultava as paisagens. Fotografias ufanam planos gerais de rios, bichos, cachoeiras, o Rio de Janeiro que continuava lindo. Décadas depois, a paisagem dessas fotos é violada por recortes abertos no visual dos cartões-postais. É Gilvan perfurando a paisagem, denunciando que nesses mesmos paraísos houve assassinatos, executados como política de Estado dos governos militares. Como em todo cartão-postal, no verso há mensagens. Nesses cartões, os escritos são trechos do relatório da Comissão da Verdade.

Umberto Eco, em A obra aberta, trata disso: a indeterminação das poéticas. Na literatura, nas artes visuais e na música. Nesse teorema, convida-se o observador a ser intérprete e a participar ativamente na construção final da experiência artística. Logo, um encontro. E todo encontro tem espera.

Prelúdio da fúria, 2017, vídeo digital HD, 60’. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação

Entre os furos nos cartões-postais e os limites das fronteiras da paisagem, os sentidos da imagem explodem numa obra aberta. Alcançam a parcela de dor. Como no cartão- postal da Base Aérea do Galeão, onde foi assassinado Stuart Angel, retratando o galpão de tortura batizado de “paraíso”.

O reencontro desse desencaixe com o presente se imprime, décadas depois, nos Mapinhas da fome. Carimbos com o contorno do país e a inscrição: já podemos falar da fome? Aqui se reagrupa o território que tinha saído do mapa da fome no mundo. Agora se contrai, encolhe-se e cabe sobreposto em embalagens de comida. Aparece combinado a estranhos desejos impressos: “açaí”, “amo muito tudo isso”, “agradecemos à preferência” e “volte sempre”.

Postcards from Brazil, 2016-2020, arte postal, dimensões variadas. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação

CENA 6. Plano americano. Gilvan Barreto dialoga com Mauricio Lissovsky.

No período da redação deste texto, em finais de agosto, faleceu o professor e pesquisador Maurício Lissovsky. Uma perda incalculável como amigo e intelectual. Este, dono de uma teoria inusitada e original sobre a fotografia, em que sua singularidade reside na espera. Maurício escapa de teorias da foto como prova, do formalismo contido nas imagens e da tentação do isso foi.

Um pensamento marcante de Maurício é perguntar o que uma fotografia pode ser, ao invés do que ela foi, tentando entender o passado contido na imagem. O que pode ser reside na espera. Não no tempo congelado, mas no tempo como refúgio, esperando o reencontro com alguém. Nessa duração, guardadas, esquecidas, amareladas, as fotos continuam fazendo coisas enquanto não olhamos para elas. Estão repletas de sentidos. Exatamente como o país costurado pelo percurso de Gilvan Barreto, que atribui sentidos às imagens das paisagens, refugiadas no tempo.


Mapinhas da fome, 2021, carimbo sobre embalagens de alimentos, 9 x 19 x 3,5 cm. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação

A outra palavra necessária é resgate. No livro /filme de Gilvan, essas imagens recuperam sentidos. Essa comunicação entre o trabalho de Gilvan Barreto e o pensamento de Maurício Lissovsky os coloca como passageiros dentro de um mesmo vagão de trem. Onde um está sentado à esquerda, e o outro ao contrário da esquerda. Cada um olha por sua janela e mira paisagens diferentes. Porém, o destino dos dois é o mesmo: a espera, o que pode ser.

Neste texto, omitimos outra palavra: Brasil. Inclusive quando escrevíamos sobre trabalhos que o tinham no seu nome no título, como postcards from Brazil, pra frente Brasil e Saudade do Brasil. É um exercício deduzível proposto nesta resenha para provocar, em você, leitor, a elaboração entre o que está escrito e o lugar que inspira, inquieta, assombra e se incorpora na trajetória de Gilvan. O que buscamos não foi falar do livro todo, mas um fio de percurso, diante de vários e intermináveis fios possíveis desses dois labirintos: o Brasil e o Paraíso.

Há outros trabalhos no livro que redundam em sobreposição dos labirintos. Mas lá no fim dele surge, de modo azul, branco e delicado, a bandeira/obra Saudade do Brasil. Esta palavra e este sentimento tão único, tão português e brasileiro, que fala a partir do íntimo; daquilo que foi, do que falta, da perda e da esperança.

Saudade do Brasil, 2021, bandeira com bordado sobre tecido
Saudades do Brasil, 2021/ Gilvan Barreto

Cena 7. Epílogo.4.

Entre a esperança e a espera: o que o Brasil e a fotografia podem ser?


JOSÉ AFONSO JR., professor e pesquisador.

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