Resenha

Militares no banco dos réus

'Argentina, 1985', com Ricardo Darín, é um filme de tribunal direto e bem-feito, eficaz ao entendimento sobre a ditadura no país, sobretudo para as novas gerações

TEXTO Mariane Morisawa

05 de Outubro de 2022

Os atores Peter Lanzani e Ricardo Darín em cena

Os atores Peter Lanzani e Ricardo Darín em cena

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 262 | outubro de 2022]

Assine a Continente

Enquanto brasileira, assistindo à Argentina, 1985, no 79º Festival de Veneza, foi impossível não pensar: que inveja. O longa-metragem de Santiago Mitre conta a história do Julgamento das Juntas, em 1985, pouco depois do fim da última ditadura no país (1976-1983), com as feridas ainda abertas. Ele levou ao banco dos réus as três primeiras Juntas Militares que governaram o país: Jorge Videla, Emilio Massera, Roberto Viola, Armando Lambruschini, Orlando Agosti, Omar Graffigna, Leopoldo Galtieri, Jorge Anaya e Basilio Lami Dozo. Os comandantes foram responsáveis por milhares de sequestros, torturas, mortes e desaparecimentos.

O Brasil, afinal, não passou por processo parecido, e o resultado é um pouco-caso com a democracia, um desconhecimento sobre a nossa ditadura, que durou de 1964 a 1985, e até um enaltecimento dela e de seus executores.

Mas logo ficou claro que essa inveja não é só brasileira. Uma jornalista espanhola disse o mesmo na coletiva de imprensa que se seguiu à exibição para a imprensa. A Espanha, como o Brasil, não lidou com seus criminosos, com seus coniventes, nem com seus mortos da ditadura de Francisco Franco, entre 1939 e 1975. Na realidade, poucos países passaram por um processo como a Argentina. “É uma história que reflete um dos julgamentos mais importantes da Argentina e que serviu como exemplo para o resto do mundo”, disse Ricardo Darín, ator principal do filme. O Julgamento das Juntas é considerado o maior do tipo desde o de Nuremberg, que lidou com os crimes nazistas. “Apesar de estarmos falando do passado recente, ele tem conotações e ressonâncias na atualidade em todas as partes do mundo”, completou o ator.

O maior nome do cinema e do teatro argentinos e um dos grandes atores do mundo, Darín interpreta Julio Strassera, o promotor-chefe do caso. É uma figura controversa, um tanto apagada, que viu muita coisa errada durante a ditadura, mas não conseguiu, quis ou teve coragem de fazer muito. Pouco antes de convocar eleições e entregar o poder para autoridades democráticas, a quarta junta militar fez uma Lei de Autoanistia, além de um decreto secreto para a destruição de arquivos e outras evidências. Por isso, quando o governo de Raúl Alfonsín, o primeiro após os anos de terror, anunciou que queria julgar os crimes cometidos pelos militares, ninguém achou que realmente ia acontecer. Alfonsín assinou o decreto três dias após a posse. Ou seja, muitos militares participantes ativos desses atos criminosos ainda estavam no poder ou em suas adjacências, assim como seus parceiros civis. Ninguém queria mexer nisso.

Tanto que, em princípio, os militares forçaram um julgamento em corte militar. Mas o governo continuou pressionando, e o processo foi em frente, liderado por Strassera. Como ele tinha pouco tempo, precisava de uma equipe. Seu braço direito foi o jovem Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), que tinha tios militares e cuja mãe ia à missa na mesma igreja que Jorge Rafael Videla, comandante-em-chefe do Exército e líder do golpe militar contra Isabel Perón. Foi de Ocampo a ideia de reunir um time jovem e inexperiente, dada a dificuldade de recrutar promotores mais tarimbados, que não queriam se comprometer.

A estratégia deu certo. Durante cinco meses de julgamento, a equipe conseguiu ouvir 833 testemunhas, de diversas regiões diferentes, e mapear dezenas de centros de tortura e aprisionamento. Dessa forma, eles conseguiram deixar bem claro que as ações fora da lei não eram excessos cometidos por agentes, mas, sim, por uma política das Forças Armadas em conjunto e do Estado, portanto.

Argentina, 1985 é um filme convencional, clássico, um thriller de tribunal. Mesmo assim, ele evita os tropos das produções americanas do tipo, como o promotor ou advogado carismático, que dá show, a prova que chega no último segundo. Pelo contrário: na principal ação do promotor, sua conclusão, ele lê sentado. Strassera é um personagem curioso, com um senso de humor particular, o que quebra um pouco a seriedade que obviamente o tema traz. A produção saiu sem prêmios do júri oficial do 79º Festival de Veneza, mas foi eleito o melhor filme da competição pela Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema).

O longa-metragem tem uma direção sem invenção, mas competente. Mas seus trunfos são o roteiro bem-resolvido, de autoria de Mitre e Mariano Llinás, como o cinema argentino está acostumado a entregar. E, claro, um elenco mais do que afinado, começando por Darín, que pode ler rótulo de leite condensado de maneira interessante. Aqui, não é diferente. O tal discurso que ele lê de um papel, sentado, é das coisas mais emocionantes a passar por Veneza.

O objetivo de Argentina, 1985, claramente, é atingir aquele público que se esqueceu ou que não viveu aquela época. Os jovens que não existiam ainda quando o julgamento aconteceu, como o próprio Peter Lanzani, que nasceu em 1990. E também aquela sua tia que achava que a coisa não foi tão ruim assim.

Porque o filme tem uma grande sacada, que era a estratégia dos promotores, mas funciona para o público de hoje descrente dos crimes de ditaduras América Latina afora. Argentina, 1985 deixa claro que não importa que crimes aquelas pessoas presas teriam cometido. Se elas eram culpadas, tinham de ter passado pelo processo legal, sendo detidas, investigadas, julgadas, condenadas e presas, se fosse o caso. Não há espaço, em uma sociedade desenvolvida, democrática, para julgamentos sumários, execuções, torturas, sequestros, desaparecimentos de corpos. A maior prova é que, assim que a democracia foi restaurada na Argentina, a maioria dos criminosos que ordenaram essas ações extrajudiciais foi julgada, condenada e presa, sem tortura, sem sequestro, sem desaparecimento. Eles tiveram o direito a um processo legal que não concederam àqueles que consideravam seus inimigos. E, só por isso, fica bem clara a diferença entre o regime que impuseram e o regime democrático que se seguiu, com todos os problemas que ele pode ter tido.

Ao ouvir o depoimento da mulher que foi presa grávida, passou por torturas e deu à luz vendada e algemada, sem poder segurar seu bebê depois, não dá para achar que isso é o normal. Porque não é. E mesmo a pior assassina ou terrorista do mundo merecia ser julgada respeitando as normas e os direitos humanos.

Para quem viveu essa época, como é o caso de Ricardo Darín, fazer o filme é de extrema importância. Tanto que ele topou na hora, sem nem ler o roteiro ou saber que papel faria. “Nós passamos por muitas ditaduras, e as últimas foram não só cruéis, mas difíceis de entender. Isso nos marcou muito”, disse o ator argentino na entrevista coletiva em Veneza. “Por muito tempo, não podíamos contar essas histórias. Quando as portas se abriram, era de se esperar que todos quisessem dar suas versões desse período, cercado de tanta dor.”


Ricardo Darín e o diretor do filme, Santiago Mitre, durante o 79º Festival de Veneza.
Foto: Giorgio Zucchiatti/Bienal de Veneza/Divulgação

O ator, nascido em 1957, era bastante jovem quando a ditadura começou. “É muito difícil escapar da possibilidade que alguém próximo não tenha algum caso de dor. Todos passamos por isso. Só depende da idade”, ele disse na coletiva. “Quando se instala em uma sociedade o terrorismo de Estado, o primeiro que a inteligência faz é tentar anular os cidadãos. É proibir a comunicação, o encontro, o cara a cara, para que as conversas não aconteçam. Estávamos vedados da informação.”

Victoria Alonso, presidente de produção física, pós-produção, efeitos visuais e animação nos Estúdios Marvel e mais conhecida por assinar como produtora-executiva filmes como Pantera Negra: Wakanda para sempre, Homem-Aranha: Sem volta para casa e Vingadores: Ultimato, é produtora de Argentina, 1985, junto com Santiago Mitre, Ricardo e Chino Darín, Axel Kuschevatzky, Federico Posternak, Agustina Llambi-Campbell e Santiago Carabante. Nascida em La Plata, em 1965, ela diz que a ditadura é parte do DNA dos argentinos. “Podemos reprimir, esquecer, não querer ver. Mas é quem somos. A violência que vivemos não vai embora nunca”, disse. “A morte não se pode romantizar. Uma coisa é a violência psicológica que todos vivemos, porque é parte da repressão. Mas a morte é um fato. As 30 mil pessoas que morreram são um fato. Os 3 milhões que se exilaram são um fato. Essa é nossa bandeira também, não só aquela azul e branca.”

Para ela, lançar esse filme em um momento de fragilidade na democracia mundial é importantíssimo. “Esse filme não poderia chegar em melhor momento. Nós, que vivemos a violência, vivemos a morte, podemos dizer que a violência não leva a nada. Para nossos filhos, como artistas, temos a responsabilidade de contar essa história. É um momento de genocídio, de violência selvagem, então a raiva existe dentro de nós, sim.”

O trauma está lá, mas, pelo menos, os argentinos lidaram com isso – ou estão lidando. O Julgamento das Juntas terminou com a condenação do General Jorge Videla e do Almirante Emilio Massera, sentenciados à prisão perpétua, do General Roberto Viola, que pegou 17 anos, do Almirante Armando Lambruschini, oito anos, e o General Orlando Agosti, quatro anos e meio. Quatro militares foram inocentados.

Depois disso, o presidente Carlos Menem perdoou os condenados, mas o presidente Nestor Kirchner conseguiu autorização da Suprema Corte para obter extradições relacionadas a crimes contra a humanidade. O Congresso também barrou uma lei para parar as investigações de outros crimes da ditadura. E a Suprema Corte decidiu que era inconstitucional proteger oficiais acusados de crimes. Até hoje, os militares envolvidos em sequestros, aprisionamentos ilegais, torturas, desaparecimentos, mortes e roubo de bebês continuam sendo investigados e julgados.

O dia do golpe, 24 de março, hoje é o Dia Nacional da Memória pela Verdade e pela Justiça. Tudo por causa daquele Julgamento das Juntas, lá em 1985. Como disse Strassera em sua conclusão: “Eu gostaria de renunciar a qualquer pretensão de originalidade no encerramento dessa acusação. Quero usar uma frase que não é minha, pois ela já pertence ao povo argentino. Meritíssimos: Nunca mais!”.

Argentina, 1985 estreia no Amazon Prime Video no dia 21 de outubro, mas há planos de lançá-lo por alguns dias em cinemas brasileiros.

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo planeta.

veja também

Falas curtas

Cecília Ramos

A geografia afetiva de Morgana e Paulo