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Histórias de mulheres insurgentes

Leia um dos perfis do livro 'As guerreiras da esperança', da Cepe Editora

TEXTO Aluízio Falcão

05 de Outubro de 2022

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 262 | outubro de 2022]

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A MÉDICA NISE DA SILVEIRA

A palavra razão no título é aqui tomada em seu mais forte sentido — o que expressa ordem mental e equilíbrio de pensamento. Este é um capítulo de solidariedade, pois os que não têm juízo compõem a mais discriminada e esquecida minoria em nosso tempo. A médica Nise da Silveira, personagem central da narrativa, foi a sua defensora pioneira, opondo-se a uma psiquiatria cruel e martirizante. Era uma incondicional e permanente amiga dos privados da razão.

Conheço a doutora Nise desde os meus tempos de rapaz. Logo no primeiro encontro fixei bem os seus traços: magra, rosto descorado, olhos bem abertos. Ainda moça, fios grisalhos apareciam em seus cabelos pretos. Convenci-me de que era pessoa tímida, escondendo a grande cultura que depois me disseram possuir. Quem me apresentou a ela, em 1953, foi Graciliano Ramos. Exatamente na página 224, volume 1 do livro Memórias do Cárcere. Usando outras palavras, mas dizendo o que acima registrei, o velho Graça informou a este seu leitor que a doutora Nise era uma conterrânea, de Alagoas, e, como ele, hospedava-se compulsoriamente, em 1936, na Casa de Detenção. Era uma das presas políticas da época, ao lado de Olga Benário, Eneida, Elisa Berger, Carmem Ghioldi, Maria Werneck, Rosa Meireles e outras.

Descrevendo a figura, Graciliano diz que praticamente não achou palavras naquele primeiro e breve contato, e nisso foi plenamente correspondido pela nova conhecida, tão acanhada quanto ele. Mais adiante, em ocasião propícia a uma conversa, ele cometeu tremenda gafe. Querendo agradá-la, disse-lhe que um amigo traçara dela este perfil: “mulher de grande inteligência e grande caráter”. Nise, bem séria, respondeu: “Lamento”. O escritor perguntou por que e ouviu, com todas as letras: “Porque tenho desse sujeito uma opinião oposta. Não vejo nele nenhum caráter”. (…)

Tornaram-se, muito depois, o escritor e a médica, excelentes amigos. Com ela, Graciliano jogava cartas habitualmente para vencer o tédio da cadeia. Já íntima, Nise elogiara Luis da Silva, um personagem meio doido no romance Angústia. Graciliano brincava, comparando-a ao dito cujo e citava a frase de um advogado que lhe pedira o exame de um doente: “A senhora, doutora Nise, que é uma grande psicopata...”. Riam ambos, e Nise dizia que o romancista “já era um de seus doentes mais preciosos”.

Durante décadas, quase perdi Nise de vista. Só a enxergava de relance, em notícias de jornal ou numa página de livro logo esquecida. De vez em quando, em conversas de família, seu nome era mencionado com alguma reverência por minha irmã, também psiquiatra. Tudo o que sabia dela posso resumir agora em duas ou três linhas: dissidente da psiquiatria tradicional, opositora da “camisa de força” e outros suplícios impostos aos doentes mentais. Quando preparei a lista de personagens deste livro, escrevi pela primeira vez: Nise da Silveira. Escrevi e fiquei olhando as três palavras, que igualmente me olhavam sem dizer nada. Três meses e alguns livros lidos depois, volto para mostrar o que aprendi sobre esta grande brasileira.

Depois de cumprir 16 longos meses de cadeia no chamado Estado Novo de Getúlio Vargas, Nise voltou ao seu trabalho, mas com grande sacrifício. Era impossível retornar ao serviço público, no qual ingressara em concurso e do qual foi banida por subversão. Durante dez anos possivelmente clinicou de forma precária, observando como o Brasil tratava os seus loucos. Em 1944, com a iminente redemocratização, reassumiu o cargo no Centro Psiquiátrico em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro.

Estava com 39 anos e mais do que nunca inconformada com os métodos usados em sua profissão: coma insulínico, choque cardiazólico, eletrochoque e até lobotomia. Sobre os medicamentos então disponíveis, limitava-os a surtos agudos, apenas para estabilizar os pacientes e readaptá-los à Terapia Ocupacional. Tentava, neste setor, uma ocupação não necessariamente utilitária, braçal, mas que ajudasse o doente sem exauri-lo fisicamente.

Estudando a Terapia Ocupacional (TO) e respectivos fundamentos, descartou mais uma vez os dogmas da psiquiatria clássica. Encontrou apoio teórico na Psicologia Analítica do C. G. Jung, buscando levar à prática o que a sua mente organizada planejava para ajudar os desorganizados mentais.

Novos estudos trouxeram indícios de que o doente mantinha fluente a vida interior, apesar de muitos anos portando a patologia — o que desmentia os protocolos estabelecidos. Ficou também claro para ela que a pintura e o desenho, entre as várias ocupações, eram as que mais facilitavam a compreensão deste fenômeno. Em seu livro Imagens do Inconsciente, Nise revela que a psicologia junguiana forneceu-lhe “rotas para distantes circunavegações”, tornando menos herméticas as imagens concebidas e registradas.

O atelier de pintura no Centro Pedro II foi aberto em 9 de setembro de 1946. Aconteceram duas exposições entre 1947 e 1949. Um renomado crítico de arte, Mario Pedrosa, confirmou as hipóteses da pesquisadora: “Uma das funções mais poderosas da arte-descoberta da psicologia moderna — é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal”.

Psiquiatras que viram a exposição apontaram no geometrismo e na abstração dos quadros uma “desumanização” que se representava pela ausência de figurativismo. Nise discorda: “Eu não examinava as pinturas dos doentes que frequentavam nosso atelier sentada no meu gabinete. Eu os via pintar”. Ela explica que percebia isso nas faces crispadas e no ímpeto com que as mãos moviam os pincéis.

Nise reproduz, neste livro-chave de seus estudos, vários trabalhos dos pacientes. Um deles, Fernando Diniz, escolheu uma casa como tema de seus quadros. Era um jovem pobre que morava com a mãe, costureira modesta, em um cômodo de cortiço. No quadro percebe-se o seu esforço para embelezar a pequena sala com jarros de flores e pratos com frutas. Surpreendentemente, no último quadro, pinta um piano e um pianista para tocá-lo — o que desautoriza a tese da “desumanização” manifestada por psiquiatras que não acompanhavam as sessões de pintura.

Em outro quadro a janela estava fechada, mas ele resolveu abrir, sinalizando interesse pela vida lá fora. Nise anotou a ocorrência de “paralelas modificações clínicas, melhor relacionamento interpessoal e interesse pelos estudos foram verificados”. O mesmo crítico Mario Pedrosa escreveu a propósito do quadro com o pianista: “O menino pobre e rejeitado de outrora senta-se ao piano, em plena sala decorada a seu gosto e dedilha os acordes triunfais da arte sobre um velho sonho desfeito e uma realidade ingrata”. A terapeuta anota que Fernando projeta “uma casa sonhada”, mostrando que o espaço imaginário e o espaço real associaram-se por via da arte.

A grande revelação desta pesquisa, ou dizendo melhor, a confirmação entre nós das conclusões de Jung, deu-se com o surgimento nos quadros do atelier, principalmente naquele do interno Fernando, das chamadas mandalas. A propósito de um dos trabalhos deste paciente, ela escreveu: “Nesta imagem, esboça-se a tentativa de conectar o ego (representado pelo círculo com uma cruz no interior) à grande cruz central que representaria o centro ordenado da psique, o self”. Argumenta que essas imagens circulares, ou próximas ao círculo, dão forma a movimentos instintivos de defesa e aparecem na fase aguda do surto esquizofrênico, “desde que o doente tenha oportunidade de desenhar ou pintar livremente num ambiente acolhedor”.

No final de 1954, Nise teve a alegria de saber que C. G. Jung recebera as mandalas desenhadas pelos pacientes do Centro Pedro II. As fotografias dos quadros que ela enviara foram muito apreciadas pelo grande cientista, que respondeu com agradecimentos e duas perguntas: “O que os seus doentes quiseram exprimir por meio dessas mandalas?”. “Será que esses desenhos tiveram alguma influência sobre eles?”. Ele observou a prevalência do número 4 e seus múltiplos nas fotografias. E percebeu que os círculos tinham “uma notável regularidade, rara na produção dos esquizofrênicos, o que demonstra forte tendência do inconsciente para formar uma compensação à situação de caos do consciente”.

Em suas publicações, Jung usava esta palavra sânscrita (mandala) para designar imagens que surgem de forma recorrente nos sonhos “em certas situações de conflito e em casos de esquizofrenia”. “É digno de atenção o fato de que nas imagens da totalidade espontaneamente produzidas pelo inconsciente, os símbolos do self sob a forma de mandala, também têm estrutura na temática. Em regra são quaternidades ou seus múltiplos. Essas estruturas não só exprimem ordem, mas também criam ordem”. Nise explica em seu livro que o estudo das mandalas não é apenas uma especulação teórica: “A primeira indicação que trazem aos psiquiatras refere-se à intensidade das forças instintivas cuja função é compensar a desordem psíquica”.

A obra Imagens do Inconsciente revela um conteúdo extremamente complexo, mas exposto por uma autora que não se refugia no hermetismo. No capítulo em que aponta os nexos entre a psique e a sociedade, Nise recorre novamente a Jung para explicitar que as neuroses, diferentemente do que rezam os protocolos dominantes na psicoterapia, “não provêm de algum recanto do inconsciente”, e sim da vida que rodeia o doente e das contínuas pressões a que ele é submetido.

Hostilidades vindas de fora para dentro, intrigas familiares, frustrações em série, aspirações contrariadas no trabalho em geral ou nas relações de toda ordem, aprisionam o indivíduo numa cadeia onde malogram quase todas as hipóteses de defesa. Para dramatizar com mais clareza o massacre do mundo externo sobre a frágil estrutura mental de um só indivíduo, Nise lembra o poeta e dramaturgo Antonin Artaud, que esteve internado em hospital psiquiátrico. As palavras dele, referindo-se ao pintor Van Gogh, a seu ver uma grande vítima da sociedade hostil, valem por um manifesto: “(...) não é o homem, mas o mundo que se tornou anormal (...) e a consciência doente tem o maior interesse em não sair de sua doença. (...) é assim que uma sociedade tarada inventou a psiquiatria para se defender das investigações de certos indivíduos de lucidez superior, cujas faculdades de percuciência a incomodavam”.

Dirigindo-se aos médicos do hospital em que se encontrava, Artaud reduzia seus conselhos a uma “salada de palavras”. Referindo-se ao diálogo que os psiquiatras tentavam manter com alguns doentes era taxativo: “Quando tentarem, sem possuir vocabulário adequado, conversar com estes homens, possam reconhecer que sobre eles os senhores só têm a única superioridade da força”.

As ideias de Nise tinham seus fundamentos principais na Psicologia Analítica de Jung, mas não deixavam de se nutrir em outras searas, como a filosofia de Espinoza ou a poesia de Artaud. Deste poeta, que ela não hesitava em chamar de “mestre”, guardou a observação de que “o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos”. No Catálogo da Exposição 40 anos de experiência em terapia ocupacional ela escreveu que “Artaud referia-se a certos acontecimentos terríveis que podem ocorrer na profundeza da psique, avassalando o ser inteiro”.

Sobre os meios para identificar e trabalhar as disfunções mentais, Nise da Silveira seguiu o método junguiano: situou o simbolismo “sobre a única base científica possível, a pesquisa comparada”. Imagens verificadas nas obras de arte, associadas a paralelos mitológicos — eis o caminho que adotou. Foi necessário, para tanto, mergulhar na mitologia grega e de outras origens. As pinturas foram estudadas em séries, de modo a permitir o estudo comparado de vários quadros para compreendê-los. Ainda hoje, nos arquivos do Museu do Inconsciente, longas séries de pinturas, datadas e com identificações dos respectivos autores, permitem o trabalho de pesquisadores contemporâneos. No livro Imagens do Inconsciente vários exemplos são comentados e adaptados.

Ainda no capítulo que considera a relação Mundo externo / mundo interno, Nise da Silveira usa três parágrafos para referir-se aos sistemas políticos existentes. Posiciona-se a favor de um socialismo que ela vê definido por Che Guevara na frase “Hay que endurecer-se pero sin perder la ternura”. Deixa claro que o socialismo dito científico, operado apenas pela racionalidade e subestimando o sentimento, não fará o homem feliz, tarefa igualmente impossível no “atual modo inumano de uma sociedade dividida em classes”. Em outras palavras, defende a utopia, que será sempre o espaço do desejo.

O livro Imagens do Inconsciente, lançado em 1981, ao tempo em que era escrito foi traduzido para o inglês e enviado, capítulo após outro, para especialistas em Jung no exterior. Uma delas, Marie-Louise von Franz, assim manifestou-se: “É muito reconfortante saber que alguém compreendeu tão bem Jung, do outro lado do mundo. E eu admiro a clareza e a coragem pela qual você (Nise) diz o que deve ser dito”. Luiz Carlos Melo, escreveu uma apresentação, em 2014, informando que em 1993 fora feita uma revisão adaptando texto e imagens. Estas foram coloridas, antigo sonho da colega de trabalho e sua equipe do Museu do Inconsciente.

Nise da Silveira, pesquisadora respeitada no Brasil e no exterior, não surpreende pelo conteúdo científico. Este, sabemos, legitima a forte divergência (que ela faz questão de sublinhar) com psiquiatras daqui e de fora, hoje menos do que em seu tempo. As surpresas estão na escrita impecável desse livro e na sólida cultura que permeia suas abordagens.

Com leveza e naturalidade, Nise demonstra notável domínio da arte de Van Gogh, Chagall e Leonardo da Vinci, por exemplo, quando se refere à pintura; ao invocar, sem exibicionismo e com absoluta propriedade, Merleau-Ponty e Artaud; e, também de forma pertinente, recorrendo a Shakespeare, Flaubert, Goethe e outros numerosos escritores, não faltando o velho Machado de Assis, que povoou sua ficção de notáveis esquizofrênicos; nem Guimarães Rosa ao lembrar que as linhas do comportamento humano estão esboçadas desde o nascimento, todo homem possuindo um “rascunho de si mesmo”.

Estes laços de uma autora com o universo ficcional podem significar buscas complementares de elementos sobre a condição humana. Os grandes romancistas, na composição de suas criaturas, projetam comportamentos observados ou seus próprios estados de espírito — o que resulta, para os leitores, ganhos de conhecimento sobre a humanidade ao redor. Por que não acrescentariam alguma revelação, mínima que fosse, aos estudiosos da vida mental? Lembremo-nos sempre de Gustave Flaubert, diante do tribunal, processado por haver criado uma personagem adúltera que escandalizou a hipócrita sociedade francesa. Perguntado pelo juiz em que figura da vida real se inspirou, ele respondeu: “Emma Bovary c’est moi!”.

Nos cinco capítulos finais de sua obra, Nise da Silveira continua seguindo os passos de Jung e compartilhando com o mestre a rejeição da psiquiatria ortodoxa. Ela desenrola o fio mítico que dá sentido aos casos clínicos estudados no Atelier. Modestamente, apresenta os textos como “ensaios incompletos e insatisfatórios de uma psiquiatria humanística, vinculada às demais ciências do homem”. Devemos ponderar que a incompletude é a característica de toda verdadeira ciência. Qualquer pesquisa, em qualquer área do conhecimento, está sempre em marcha, buscando complementação ainda desconhecida, e transpondo fronteiras insuspeitadas.

Nos tópicos finais ela relata os meios usados para ajudar seus pacientes a conhecer fatores arcaicos atuantes em seu consciente, vindos de camadas profundas da psique. Assim, decifrando mitos simbólicos, o doente compreende melhor o seu quadro e se fortalece na caminhada para uma reestruturação psíquica.

Os especialistas Sonia Maria Marchi de Carvalho e Pedro Henrique Mendes Amparo, em sólido ensaio publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (março de 2006), assim descrevem esse itinerário e o ambiente efetivo do Atelier:

Dessa forma, os pacientes encontravam na dinâmica mítica uma imagem paralela a sua experiência e alguma compreensão se processava ainda que não o fosse pela via da racionalidade. A seu ver, esta atribuição de sentido mitológico rompia o isolamento que a experiência de afetos arcaicos impõe e os doentes podiam então se relacionar com sua própria dinâmica, sabendo-a contida no cosmos, mesmo que sua expressão acontecesse de forma caótica, intensa e aparentemente sem sentido.

(...) Outra grande intuição da psiquiatra alagoana foi quanto ao papel positivo do ambiente acolhedor, não repressor, livre, no lidar com esquizofrênicos. Fariam parte desse ‘ambiente’ pessoas, animais e objetos, tudo e todos que, enfim, fossem agentes catalisadores de afeto. Desnecessário dizer o esforço e a coragem que essa postura exigiu, se pensarmos na época em que suas iniciativas foram postas em prática.

Em 1957, com a presença de C. G. Jung, que a inaugurou, realizou-se em Küsnacht, Zurique, a exposição dos pacientes de Nise da Silveira. A mostra A esquizofrenia em imagens ocupou cinco salas e fez parte do II Congresso Internacional de Psiquiatria. Jung percorreu todos estas dependências e demorou-se um pouco mais adiante dos quadros que exibiam mandalas apontando estas imagens e formulando interpretações.

No já referido artigo Nise da Silveira: a mãe da humana-idade, seus autores Carvalho e Amparo informam que o Museu do Inconsciente já dispunha de um acervo com 350 mil obras — o que nos autoriza a dizer que é o maior de todos os museus instalados no Brasil. Conviria que as autoridades culturais programassem identificar, neste impressionante volume quantitativo, a sua importância qualitativa, mediante abalizada avaliação estética. A julgar por algumas imagens reproduzidas no livro Imagens do Inconsciente, há certamente quadros potencialmente comparáveis às peças de Bispo do Rosário e obras de alguns pintores amplamente reconhecidos.

Cabe ainda decidir sobre a blindagem do acervo ao mercado de arte ou flexibilizar este acesso no exclusivo interesse de apoiar e preservar o Museu. No caso de Arthur Bispo do Rosário, segundo notas agregadas ao ensaio aqui comentado, “não dispunha de monitores ou ateliê e compôs movido por uma necessidade vital na obra de reconstrução do mundo (Hidalgo, 1996). Do ponto de vista estético seus trabalhos eram atualíssimos, a ponto de serem comparados aos de Marcel Duchamp, artista que desconhecia”. Uma nota de rodapé esclarece que “Henri-Robert-Marcel Duchamp (1887–1968) foi artista plástico francês que influenciou a arte na segunda metade do século XX, associado ao dadaísmo e ao niilismo”.

Quando terminei o parágrafo anterior, dispunha-me a retomar a busca, em livrarias e sebos, de outras obras de e sobre Nise da Silveira, em grande parte esgotados. Neste ponto, a minha irmã psiquiatra, Auxiliadora, honrando seu nome de batismo veio em meu auxílio. Entregou-me a fonte definitiva, que acabo de consultar: Nise da Silveira — caminhos de uma psiquiatra rebelde, de Luiz Carlos Mello, assistente da doutora por décadas e citado por ela, destacando a sua “colaboração inteligente na investigação sobre imagens, discussões, leituras e releituras, buscas bibliográficas, constante paciência”. Que outro autor eu poderia ler? Tudo o que se vai seguir será, no máximo, um resumo das 300 e tantas páginas em que meus olhos míopes se fixaram, durante um dia inteiro, desde o prefácio ao ponto final. Neste exato momento, vagando entre dezenas de anotações, acho quase impossível filtrar o essencial. Tudo é relevante. Tentarei amanhã.

Digo agora, logo no início, que além do depoimento altamente esclarecedor de Luiz Carlos, que vivenciou a experiência pioneira na seção de Terapia Ocupacional, o livro traz parte de uma autobiografia da doutora Nise, interrompida por seus múltiplos afazeres e depois talvez pelo cansaço da idade. Ela faleceu aos 94 anos, em 1999. De tudo, porém, extrairei o que couber no espaço mínimo deste capítulo.

Durante os anos em que Nise esteve afastada do serviço público, quase oito anos, emergiram procedimentos médicos e remédios novos que ela não conhecia, mas logo rejeitou os métodos por sua óbvia crueldade com os pacientes. Ela própria relatou que, depois de reintegrada em 1944, foi trabalhar numa enfermaria com um médico adaptado a essas inovações: “Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar um eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Ele então mandou levar aquele paciente e pediu que trouxessem outro. Quando o novo paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse: ‘Aperte o botão’, e eu respondi: ‘Não aperto’ — aí começou a rebeldia”.

Voltemos aos motivos que a levaram à prisão, onde Nise ficou de 26 de março de 1936 a 21 de julho de 1937. Folheando o livro de Luiz Carlos Mello, vejo na página 74 a reprodução de manchetes nos jornais da época. Duas delas: “A doutora vermelha” e “Comunista perigosa! — a doutora Nise da Silveira foi presa” — assim mesmo com exclamação. Nise não militava no Partido Comunista. Relacionava-se com pessoas que se opunham ao fascismo, algumas ligadas ao PC. E em sua estante, no hospital, havia livros científicos e outros de ciências sociais, denunciados à polícia como subversivos por uma enfermeira dedo-duro.

Em 1949, Léon Degand, um crítico de arte francês que dirigia o Museu de Arte Moderna de São Paulo, visitou o atelier organizado por nossa personagem e sugeriu, entusiasmado, uma exposição lá com os quadros de seus pacientes. Durante o evento, que não despertou o mínimo interesse dos psiquiatras de então, houve polêmica entre Mário Pedrosa, apreciador dos quadros, e Quirino Campofiorito, um critico inconformado com a mostra. Este escreveu: (...) “A nossa opinião sobre esses desenhos e essas pinturas é de que são demonstrações artísticas que trazem as fraquezas de obras casuais, improvisações inconsistentes, deficientes todos de inteligência e razão que devem marcar a criação artística”. Mário Pedrosa, de sua parte, reiterou seu apoio à iniciativa e seu conteúdo artístico:

Todo o trabalho da Dra. Nise da Silveira constituiu precisamente em demonstrar a razão pela qual é possível ser-se louco e artista, ao mesmo tempo. (...) desafiamos quem, diante de algumas daquelas telas, nos prove o contrário. Estamos mesmo dispostos a comparecer a um tribunal de críticos e especialistas, para aí sustentar, de pés juntos, ser Raphael um artista de sensibilidade de um Matisse ou de um Klee, e que o Municipal, de Emygdio, por exemplo é uma tela que, pela força de expressão, o sopro criador, a atmosfera especial e o arranco da imaginação, não tem talvez segunda na pintura brasileira.

A lobotomia, cirurgia discutível e sem eficácia, foi duramente combatida por Nise da Silveira. Um paciente dela, Lúcio, escultor extraordinário que participou da Exposição do Masp, foi lobotimizado, contrariando todos os apelos: “Vão decapitar um artista” — ela protestou. Consumado este cruel procedimento, Nise publicou na revista Medicina, Cirurgia e Farmácia fotos de trabalhos do Lúcio antes e depois da lobotomia. As esculturas pós-cirurgia eram irreconhecíveis. Nise fez igual denúncia no Primeiro Congresso Mundial de Psiquiatria, em Paris. Luiz Carlos Mello afirmou em seu livro que esta operação continuava a ser feita no Brasil no início do século XXI.

Um exemplo da inércia da máquina pública em ações modernizadoras no tratamento de doentes mentais aconteceu em 1961, quando o então presidente Jânio Quadros, tomando conhecimento do trabalho de Nise, enviou um de seus famosos bilhetinhos ao ministro da Saúde:

Ajudar no que for possível o Serviço de Terapêutica Ocupacional da doutora Nise da Silveira, bem como o Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro, a que pertence. Recomendo que esse serviço deva expandir-se, e determino, finalmente, que convoque ao gabinete a doutora Nise da Silveira, e que a mesma traga, na oportunidade, plano de trabalho para o exercício e de ampliação para o futuro.

Nise elaborou um detalhado projeto que foi entregue ao presidente e aprovado. Na mesma semana, porém, Jânio Quadros renunciou e as autoridades seguintes não tomaram conhecimento do decreto presidencial.

As hostilidades ao trabalho do Atelier de Pintura por parte da direção do Centro Hospitalar continuaram até o ano da aposentadoria da psiquiatra, em 1975. A porta que dava acesso ao Museu do Inconsciente foi fechada com tijolos e o espaço do atelier significativamente reduzido. Nise foi à imprensa denunciar a sabotagem e conseguiu revertê-la. O artista Fernando Diniz, que fora removido para a Colônia Juliano Moreira foi reintegrado no Atelier.

Quando o livro de Luiz Carlos Mello foi publicado, o balanço das atividades do Museu do Inconsciente apontava, no curso de 62 anos, mais de cem exposições artísticas no Brasil e em outros países. A instituição participou de três congressos mundiais de psiquiatria em Paris, Zurique e Rio de Janeiro. Foi constituída uma Sociedade de Amigos do Museu que obteve do Iphan o tombamento de suas principais coleções.

Logo após a sua aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade, Nise da Silveira apresentou-se ao Grupo de Estudos do Museu como “estagiária voluntária”. Passou a dedicar-se ao registro da grande experiência em livros, filmes, audiovisuais, cursos e exposições. Uma de suas últimas publicações, em 1990, foi Cartas a Spinoza. Uma destas missivas assim termina: (...) “Agora você vai me permitir que eu me detenha, com sua ajuda, diante do emocionante tema da morte. (...) Impressiona-me que você não demarque fronteiras entre a vida e a morte. O que importa, na sua visão, será a amplitude da eternidade conquistada e com ela o gozo da beatitude. Spinoza, você me faz lembrar o poema de Kabir, o persa: ” Ô amigo! Busca-o durante a vida, conhece enquanto vives, compreende enquanto vives: pois na vida está a libertação. Se teu cativeiro não se romper enquanto viveres, que esperança de libertação haverá na morte?”.

Na autobiografia que deixou incompleta e foi anexada ao livro de Luiz Carlos Mello, com vários comentários, Nise deixa um precioso depoimento sobre a sua amizade com Graciliano Ramos, cujas referências a ela foram registradas na abertura deste capítulo. As palavras dela, por sua beleza e perfeição formal, seriam bem recebidas por esse grande e exigente mestre da escrita, falecido antes das declarações da amiga:

Sim, Graciliano e eu fomos muito amigos. Era uma dessas especialíssimas, raras amizades, nas quais as pessoas se comunicam de verdade, íntimo a íntimo. Nas nossas conversas, as palavras acabavam sobrando, desnecessárias, porque nos entendíamos quase de imediato, embora uma ou outra vez tivéssemos opiniões diferentes. Mas opiniões e entendimento são duas coisas bem diversas. Quando as opiniões divergem e o entendimento persiste, então a amizade é segura e tranquila. Sendo assim, está claro que nunca achei Graciliano um sujeito esquisito, como diziam alguns. Impressionava-me ver tão transparente, por trás das suas sobrancelhas arrepiadas, constante maravilhamento diante de todas as manifestações de bondade. Mesmo procurando decifrar-lhes a motivação, não conseguia desmontá-las a ponto de esgotar a surpresa e o encanto que lhe traziam. Sabia reconhecê-las de longe, por pequenas que fossem, recolhia-as como quem guarda pedaços de ouro.

(...) Na Casa de Correção, onde o conheci de perto, Graciliano vivia a cadeia arbitrária na maior serenidade. Nunca o vi inquietar-se sobre a possível hora da liberdade. Não se assemelhava a esses viajantes que, no trem ou no avião, agitam-se em incessantes movimentos improdutivos e perguntam a cada instante: ‘Quando chegaremos’? Graciliano parecia um velho embarcadiço que não se importasse se o porto de desembarque estava perto ou longe. Foi por isso um companheiro ideal de prisão. A mim ajudou muito, e deve também ter ajudado a outros.

Sobre a sua prisão, Nise declarou ter sido uma “grande experiência humana”. Expôs, nestas declarações, com ironia ou seriedade, a sugestão de que todo psicanalista fizesse estágio de pelo menos um ano dentro de uma prisão para conhecer a alma dos indivíduos em toda a sua essência. Acrescentou que juízes e promotores também deviam passar não apenas um, mas dois anos de cadeia “para avaliar ao que condenam seus semelhantes”.

Ela também se refere ao veto da direção do Engenho de Dentro para que representasse o Centro no Congresso Internacional em Paris, no ano de 1949. Esperou sete anos, preparando-se para comparecer no Congresso de 1957, em Zurique, a convite firmado pelo próprio C. G. Jung em nome do seu Instituto.

Nise juntou as licenças prêmio vencidas a que tinha direito e obteve uma bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ) com duração de um ano. Na Suíça, desenvolveu estudos com a Dra. Maria Louise von Franz e fez duas visitas memoráveis ao próprio Jung.

Em quase três páginas, Luiz Carlos Mello transcreve o relato de Nise da Silveira sobre o seu encontro com C.G.Jung em sua residência de Kusnacht (Suíça), no dia 14 de junho de 1957. Para este momento crucial de sua carreira ela se preparou durante quase sete anos de leituras e apreciações de conceitos da obra do grande psicólogo. Começou descrevendo, em detalhes, o ambiente da casa: móveis, quadros, estatuetas de decoração.

Na hora marcada, pontualmente, o mestre aparece, levando-a até a imensa biblioteca, onde se sentam os dois junto a uma janela com vista agradável e pacificadora para um lago. Jung conta que, durante longos 30 anos, foi um combatente solitário na defesa de suas ideias. Impossível não refletir sobre o impacto desta solidão na sensibilidade de um cientista.

Mesmo naqueles dias, acrescentou Jung, ele sabia que poucos, no vasto mundo, compartilhavam seus conceitos e sua avançada psicologia. E diz, para a satisfação da visitante, que as mandalas pintadas pelos doentes brasileiros foram confirmações muito bem-vindas, acrescidas pelo valor artístico em todos os quadros. Nise confessa que não conteve algumas lágrimas e murmurou “que alegria!” — expressão repetida pelo mestre.

Ele perguntou como a brasileira encontrou os seus livros, sendo informado de que as livrarias do Rio já começavam a expor suas obras em francês e inglês, e surgiam algumas traduções para o português. Entre os psiquiatras brasileiros, complementou, crescia o número de interessados pelos estudos junguianos. Ele declarou-se muito feliz com este começo de aceitação. Nise disse que se aproximara de sua psicologia porque encontrara nela esclarecimentos para problemas pessoais e, de contra parte, por ver na produção artística de seus pacientes claros sinais de endosso às teses que ele sustentava: “Digo-lhe que me sinto rasgada em opostos”. Jung diz que, nas mulheres que estudam, o animus toma uma grande força em oposição à sua própria natureza feminina”. Brincou, em seguida, que podia ver o quanto o animus de Nise era forte. Comparou-a a um “galo de briga”.

Quando Nise contou um sonho em que ele aparece junto à pequena mesa coberta por uma toalha salpicada de estrelas, Jung disse: “É sempre assim!”. Discorreu sobre a relação de estrelas com o psiquismo. Cada indivíduo, explicou, é como uma estrela, sem janelas, como uma môneda, citando Leibniz. Os acontecimentos entre essas mônedas operam por sincronicidade.

As ideias fluem na conversa. Nise comenta que “o nosso plano de desenvolvimento está dentro de nós e se nos desviarmos dele — e esses desvios (égarements) são sempre trabalhos do consciente — sobrevém a neurose. Reencontrar o seu plano pessoal é a cura. Quem segue o seu próprio caminho não pode tornar-se neurótico”. Ele acrescentou, vivamente: “Hélas, je suis égarée!”.

Trocam opiniões descontraídas sobre a filosofia e seu estreito vínculo com a psicologia. Nise comenta que as conclusões dele vivificaram concepções esquecidas pelos racionalistas do século XIX. A verdadeira filosofia, converge, ensina a viver, e é também um aprendizado para a morte. “Porque a morte não é o fim. La mort est un bat. O marco de um recomeço”.

Ao tomar conhecimento das origens familiares da visitante e da cultura de seus pais, Jung observa que antes do seu nascimento já estavam preformadas suas possibilidades de compreensão da psicologia. Ele diz que descende, também ele, de antepassados estudiosos — o que de algum modo configura arquétipos em sua atividade de psicóloga.

Nise, a seu pedido, relatou o trabalho que desenvolvia no Brasil e falou de sua análise com a doutora Van Franz, em Zurique. Pediu-lhe um autógrafo no livro Resposta a Job, cujo conteúdo lhe proporcionou muitas respostas. Ele, espontaneamente, propôs novo encontro antes que ela regressasse ao Brasil — o que aconteceu e voltou a ser um grande momento de fruição intelectual.

O texto autobiográfico de Nise descreve outra ousadia em suas atividades no Rio de Janeiro, que foi a abertura da Casa das Palmeiras, com regime de externato e portas abertas. Cada paciente entra às 13h e sai às 18h: “O primeiro doente que apareceu tinha 13 internações, e nunca mais precisou de nenhuma, sendo hoje monitor da instituição”. Em 2020, o índice de reinternação de visitantes da Casa era de apenas 4,7%. Ali, num ambiente acolhedor, desenvolvem-se atividades de pintura, música, canto coral, artesanato, tapeçaria, cinema, teatro e outros que resgatem os potenciais de seus frequentadores.

A Casa das Palmeiras existe até hoje, na Rua Sorocaba, em Botafogo. Um beneficiário de seus serviços, poeta, que ali encontrou os caminhos de volta à lucidez escreveu belos versos para descrevê-la: “Não sabia que existias/ Casa das Palmeiras/ na Pátria dos sabiás/ Se a doença voltar/ Se a loucura voltar/ não me feches tuas portas/ ó casa materna/ útero alcatifado de minha mãe/ Acolhe-me carinhosamente/ deixa-me viver os últimos dias/ na companhia/ dos meus irmãos mais simples/ Os renegados/ Os bem-aventurados/ Que eu fique com eles/ em convívio amoroso/ até que chegue o sono/ em que a poesia acaba”.

Nas proximidades do final deste capítulo, creio necessário um aporte didático, ainda que breve. É uma definição de Esquizofrenia deixada por Nise da Silveira. Só peço ao leitor que leia até a última linha este curto diagnóstico e reflita sobre a conclusão: “A esquizofrenia resulta de cisões internas e rupturas com o mundo exterior, causadas por situações extremas, demasiado fortes para certos indivíduos. São eles, na maioria, frágeis para suportar o que nós outros suportamos — talvez até por serem melhores que nós”.

Nise deixou um livro importante sobre o grande dramaturgo Antonin Artaud, revelando os grandes sofrimentos a ele impostos pelo “poder médico”, inclusive o eletrochoque. Eis as palavras dele que a autora reproduziu sobre essa tortura como forma de tratamento: “O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca do seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, eu fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser...”.

Luiz Carlos Mello reproduz um trecho da autobiografia incompleta de Nise em que ela descreve lances da “guerra” contra os seus métodos, movida pelos psiquiatras ortodoxos. Chegaram a dizer que as pinturas de seus doentes eram feitas por pintores famosos, seus amigos. No começo irritou-se com este absurdo, mas depois que o contou a Di Cavalcanti e ele deu uma gargalhada, passou também a considerar a calúnia um tanto engraçada. Aproveitou para contar que o milionário Ciccillo Matarazzo, apreciador da arte, quis comprar a peso de ouro o quadro Capela Mayrink, de Emygdio, um dos pintores do Museu do Inconsciente. Oferta recusada. “Matarazzo fazia oferta sempre maiores”. Ela respondeu: “Nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de Aragão” — um dito ibérico.

Tanto escrevi aqui sobre a personagem principal, que deixei de lado a figura de Mario Magalhães, o seu marido, grande e respeitado médico sanitarista, que muito apoiava o trabalho da ilustre companheira. Segundo Luiz Carlos Mello “ele tinha uma inteligência extraordinária, um senso crítico fora do comum”. E conta que numa das exposições do Museu do Inconsciente, Mário, que se vestia com despojamento e simplicidade, foi abordado por uma senhora: “O senhor é um dos expositores?”. Ele respondeu que sim, e a moça perguntou qual era o nome dele. Mário, com o seu habitual senso de humor, respondeu calmamente: “Miguel Ângelo!”. Este breve flagrante explica tudo.

A capacidade de trabalho da Nise da Silveira impressionava seus auxiliares a ponto de comovê-los. Luiz Carlos conta que ela, aos 85 anos, dedicando-se ainda intensamente aos seus afazeres na Casa das Palmeiras e outras realizações, declarou: “Eu não paro de sonhar nem de fazer projeto. Muita gente pode dizer que, nesta altura da vida, em termos de tempo, você sonha ainda projetos? Posso sonhar para o ano quatro mil. Posso sonhar”.

A propósito da religiosidade, ela inclinava-se pela concepção de Deus do filósofo Spinoza: não um Deus ao qual se pede isso e aquilo, mas aquele presente numa relação forte com a espiritualidade. Nise adorava Cristo e lia sobre o budismo atraída pelo empenho de seus intérpretes em favor da unidade do mundo.

Pouco antes de seu último dia, ela comentava: “Você tem que cair nas mãos dos médicos, os médicos querendo fazer coisas pra prolongar a vida que já acabou, praticamente. Horrível. Tenho muito medo. Eu digo: pelo amor de Deus, nunca me levem para o CTI, mas eles levam...”. Levaram. Luiz Carlos conta: “aconteceu o que ela temia... Nise morreu de insuficiência respiratória no CTI do Hospital da Lagoa, lúcida, 40 dias depois de internada. Fui visitá-la pouco antes de sua transferência e disse — Vamos sair dessa!”. Ela respondeu: — “Desta vez eu não escapo. Vou para outras galáxias”.

O professor João A. Frayze-Pereira, do Instituto de Psicologia da USP, em vigoroso ensaio na revista Estudos Avançados, daquela instituição, destaca uma trilogia fílmica de Leon Hirszman como fonte essencial na documentação biográfica sobre Nise da Silveira. O primeiro filme, Em busca do espaço cotidiano, centra-se no paciente Fernando Diniz, talvez o mais talentoso pintor do Museu de Imagens do Inconsciente. A segunda película, No reino das mães, tem Adelina Gomes, outra paciente de Nise, como personagem principal. O terceiro filme, A Barca do Sol, baseia-se na obra de Carlos Pertius, também tratado pela nossa personagem e falecido em 1977. Frayze-Pereira sublinha em seu artigo que, no falecimento de Nise, em 30 de outubro de 1999, todos os seus pacientes, em cinco décadas, já estavam mortos. Secundando longa e convincente argumentação do professor da USP, recomenda-se esse trabalho de Leon Hirszman como referência para a visualização cinematográfica de uma obra imortal de psicologia.

O livro que estávamos comentando antes deste parêntese tem nos seus Anexos depoimentos sobre Nise da Silveira de grandes intelectuais e cientistas de toda parte: suíços, ingleses, americanos, brasileiros, escoceses e alemães. Chamou-me a atenção, entre estas sumidades, o nome da compositora popular Ivone Lara. Ela foi enfermeira e assistente social. Escreveu: “A doutora Nise inovou, introduzindo a terapia ocupacional. O doente ficava à vontade, não tinha quarto forte, choque. Eu já era assistente social, buscando informações com familiares do paciente e com ele próprio para ajudá-la. Ela modificou o tratamento e o doente melhorava bem. A doutora Nise descobriu doentes que eram músicos, escritores, pintores e viviam naquela catatonia. Voltaram a produzir e muitos se curaram”. Mais adiante, na cronologia da obra, leio que o samba-enredo da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, em 1997, foi uma homenagem a Nise da Silveira. Dois anos antes de sua morte.

Duas décadas além dessa viagem sem volta a outras galáxias, lembrando Camões, desejo que lá na etérea plaga se consinta memórias desta vida e Nise fique sabendo que o Brasil não a esqueceu. Ela está presente nos sambas, nos livros, na ciência escrita. A cada momento em que regridem as práticas denunciadas neste capítulo, Nise da Silveira renasce na consciência dos psiquiatras do Brasil.

ALUÍZIO FALCÃO é jornalista e atuou na imprensa recifense de 1955 a 1964. Integrou o Conselho de Direção do Movimento de Cultura Popular na gestão de Miguel Arraes. É autor dos livros Crônicas da vida boêmia (Ateliê Editorial), Contos da era das canções, Pernambucanos mortais e imortais e Memorial de grandes ausências (Cepe Editora).

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