Crônica

Grosserias generalizadas e delicadezas sutis

TEXTO Samarone Lima

05 de Outubro de 2022

Ilustração Vitor Fujita

[conteúdo na íntegra | ed. 262 | outubro de 2022]

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Nos quase 10 anos em que vivi no Poço da Panela, minha casa tinha vista para o bar de Seu Vital. Era o ponto de encontro de artistas maravilhosos, gente da comunidade, pessoas que passavam para tomar umas cervejas. Tínhamos também o privilégio de assistir, das mesinhas na calçada de Vital, aos muitos casamentos. Não sei como estão os casamentos na igrejinha de Nossa Senhora da Saúde, mas a média era de quase um por semana.

Num desses muitos encontros, a poeta Adriana Perrucci, que apelidei de “Grão”, e que sempre tinha um poema novo na ponta da língua, aproveitou um brinde e soltou sua mais nova criação:

“Estou sentido e percebendo
uma grosseria generalizada”

“Aêêêê”, puxou Maurício Silva, que adorava soltar esta saudação, por qualquer motivo.

Grão olhou para todos da mesa e completou:

“Mesmo entre os mais próximos…”

O poema foi a sensação da noite, porque pegou todos de surpresa. Nós, que celebrávamos o encontro e a amizade, poderíamos estar levando, no cotidiano, um pouco (ou muito) das grosserias da vida.

Faz tempo que não vejo a querida Grão. Na verdade, faz tempo que não vejo o Poço da Panela, que foi minha pátria espiritual e emocional, quando retornei de uma temporada em São Paulo.

Desde a morte do gorducho Naná, em março de 2020, não voltei mais ao Poço da Panela. Veio a pandemia, a vida ganhou outros caminhos, e fui deixando para depois. Foi meu grande amigo, irmão, vizinho. Víamos-nos todos os dias, exceto quando eu estava viajando. Para falar de Naná, seria preciso mudar o poema:

“Estou sentindo e percebendo
uma delicadeza generalizada
com este ser que está próximo”.

Naná morreu com 53 anos (foi enterrado no dia do seu aniversário), e certamente estaria contrariado com este mar de grosserias em que vivemos diariamente.

Antes, em toda família tinha um tio meio rabugento, que gostava de dar uns foras, mas nos aniversários tomava umas cervejas, baixava a guarda, esquecia que tinha este lado ranzinza, e a vida seguia.

Hoje, parece que esse mesmo tio vai para a guerra por qualquer motivo. A família fica torcendo para que ele não compareça a algum eventual churrasco (com o preço da carne, cada vez mais raro). Não faz nenhuma questão de ser gentil, se bobear arranja uma confusão e vai embora soltando desaforos.

Entre os vizinhos, não sei como anda a vida de vocês, mas a minha boa sorte com vizinhos, aqui em Olinda, durou até o final do ano passado. Os novos vizinhos chegaram com uma caixa de som que cairia bem nos shows do Rock in Rio, e transtornaram nossa vida. A grande ironia é que nossa casa, numa rua sem saída, cercada de plantas, é tão silenciosa, que a senha do wi-fi é “morada do silêncio”.

Na noite de Natal, com um bebê de dois meses (o jovem Samir), tentamos argumentar que três horas da manhã com o som na maior altura já estava demais, e recebemos a resposta muito delicada:

“Ah, mas estou com minha família reunida e não posso fazer nada”.

Eu quase perguntei se a pessoa sabia o significado do Natal, mas deixei pra lá.

Depois de seis meses vivendo num cotidiano infernal, encontramos uma casinha charmosa a exatos 200 metros. Uma das menores ruas de Olinda. E descobrimos, fascinados, que as delicadezas existem, muitas vezes perto da grosseria generalizada.

A Rua José Belarmino da Silva ninguém conhece, mas basta dizer “Rua da Palha”, que todo mundo conhece, em Olinda. É o local onde tem o maior São João da cidade, há 19 anos.

Fomos recebidos por vizinhos de uma delicadeza imensa. Como se aproximava do São João, logo começou a organização do “arraial”. No primeiro dia de montagem da estrutura, um senhor negro, de uns 70 anos, bateu à nossa porta. Com uma fidalguia imensa, explicou que estava montando o arraial para a festa, e como usava uma furadora potente, perguntou:

“Será que não estamos incomodando o bebê de vocês?”

Foi uma espécie de cartão de visitas. Era Nino, que acabou virando amigo nosso. Sua elegância e cuidado com as palavras são preciosidades que trato de saborear.

Dois dias depois, fui à vizinha do outro lado, perguntar se ela teria, por acaso, um pouco de açúcar, para fazer aquele preparado com sal e água, curador dos males intestinais. Ela chegou com um quilo de açúcar e disse que não tinha necessidade nenhuma de devolução.

Quando saímos para dar banho de sol no pequeno Samir, dona Amélia, de 98 anos, que fica sempre numa varanda do primeiro andar, fazendo palavras cruzadas, começa a bater palmas e a saudar, efusivamente:

“Cadê o menininho? Cadê o menininho?”

Quando saímos para passear com ele no carrinho, há sempre comentários sobre uma roupinha para proteger contra o vento frio, um chapeuzinho por causa do sol.

A venda de Seu Viana, aqui do lado, nos socorre com pequenas necessidades. Comecei a fazer pedidos com pagamentos via Pix, até que Seu Viana descobriu que meu nome é por causa de um jogador do Fluminense que ele gostava muito.

Ele, muitas vezes, lembra Seu Vital, do Poço, por causa das respostas rápidas.

– “Seu Viana, tem queijo com pouco sal?”

– “Tem não”.

– “Tem qual?”

– “Não tem nenhum, porque acabou ontem”.

Semana passada, ele pegou seu fichário e me mostrou uma ficha preenchida com meu nome, numa letra antiga e muito bonita. É como se eu tivesse ganhado um cartão de crédito do pequeno comerciante da esquina.

Sim, as grosserias generalizadas existem, proliferam, como se a moda, agora, fosse mesmo a vulgaridade, a intolerância e a falta de educação. Sinal dos tempos, sinal de um Brasil que perdeu um caminho.

Mas tem muita coisa linda acontecendo, e é preciso a gente dar atenção.

Recentemente, o Samir conheceu a Elis, vizinha do lado, de sete anos. Sempre que saímos de casa e encontramos com ela, é uma festa. Outro dia, depois do São João, Elis avistou o Samir e ficou a 10 metros de distância, falando com máscara. “Eu não vou me aproximar dele porque fiz o teste de covid e deu positivo”, disse ela, com seu belo sorriso.

Há muita grosseria generalizada no cotidiano, tornando a vida mais feia e triste. Mas há muitas Elis e Ninos também. 

SAMARONE LIMA, poeta e prosador. Lançou, em agosto, o livro O elefante azul – Crônica das coisas mínimas e desnecessárias, pela Editora Confraria do Vento.

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