Os fragmentos falam de personagens por vezes bastante conhecidos, como Van Gogh: “Eu bebo para entender o céu amarelo o enorme céu amarelo, dizia Van Gogh. Quando olhava o mundo enxergava os pregos que prendem as cores às coisas e via a dor dos pregos”. Onde exatamente “dizia” Van Gogh? Não fica claro, é um dos tantos enigmas reservados ao leitor que desejar aprofundamento. De onde vem esse “enorme céu amarelo”? É preciso voltar às pinturas, às imagens, reparando na caracterização específica dos céus (são mais de mil obras, entre pinturas, aquarelas e desenhos). E, por fim, a “dor dos pregos”, o arremate poético de Carson, que deixa o fragmento em suspenso na mente do leitor. Em seguida, encontramos personagens como Camille Claudel e Franz Kafka; a primeira partindo pedras (cujos pedaços “enterrava à noite fora dos muros”), o segundo com sua irmã favorita, Ottla, que “morreria em outubro de 1943”, em Auschwitz (ela teve “os sapatos bem-lustrados” pelo marido).
Vários outros personagens aparecerão (Homo Sapiens, Geisha, Gertrude Stein, Ovídio no exílio e Sylvia Plath), reiterando por vezes algo que Carson já estabelece no início do livro, no primeiro “poema”, intitulado Introdução. Ela escreve: “Um dia de manhã cedo faltavam palavras. Antes disso, não havia palavras. Havia fatos, havia rostos. Numa boa história, diz Aristóteles, tudo o que acontece é impelido por alguma outra coisa. Um dia alguém reparou que havia estrelas mas palavras não”. O substrato primordial da linguagem e da poesia é deslocado desde o início do livro, estabelecendo uma trajetória que é de dúvida, mas também de experimentação. Os fragmentos de Falas curtas se dedicam à reflexão acerca de como as coisas – pessoas, lugares, sentimentos – se transformam, como mudam de estado. É nesse espaço, na lacuna entre o que se sabe e o que ainda não se sabe, que se encontram as “palavras”. A “fala curta” sobre o cubista Georges Braque exemplifica bem essa dimensão da obra de Carson: “Braque rejeitava a perspectiva. Por quê? Alguém que passe a vida desenhando pessoas de perfil acaba achando que os humanos têm um olho só, sentia Braque. Braque queria tomar plena posse dos objetos”.
O modo como Carson transita por referências do século XX – especialmente aquelas figuras ligadas ao movimento modernista – serve também para auxiliar o leitor na reconstrução da sua linhagem. Ou seja, as obras e biografias alheias que ajudam a compor o pano de fundo que torna possível sua obra tão idiossincrática. Braque e Kafka dão as primeiras pistas, o primeiro ligado à implosão da perspectiva na pintura, o segundo ligado à implosão do “sentido único” em literatura. Braque, além disso, funciona como um ponto de condensação que reúne vários outros nomes – Cézanne, Matisse, Picasso, Juan Gris – que por vezes aparecem na obra de Carson. Do lado de Kafka, o mesmo fenômeno: o uso criativo da mitologia, por exemplo, é algo que aproxima o autor de A metamorfose da autora de Falas curtas. Direcionando o foco para nomes mais recentes, a obra de Carson funciona também como ponto de condensação de experimentos artísticos com os quais ela dialoga diretamente: as obras, pouco conhecidas no Brasil, de autores como Robert Bagg, Fanny Howe, Rikki Ducornet, entre muitos outros.
Como na maioria dos livros de Carson, os fragmentos de Falas curtas também se apropriam de fatos históricos e personalidades documentadas. Entre fato e ficção, a poesia trabalha no regime daquilo que “poderia ter sido”, “poderia ter acontecido”, imaginando como sensações muito específicas podem aflorar em situações de angústia ou de júbilo. Quando escreve uma fala curta sobre Ovídio, por exemplo, Carson registra: “Eu o imagino lá numa noite como a de hoje só que fria, a lua soprando por ruas escuras”. A noite de Ovídio no exílio é “como a de hoje”, próxima, ainda que afastada pelos séculos. “Ele janta e caminha de volta para o quarto. O rádio está no chão. O mostrador verde luminescente soa baixinho. Ovídio senta-se à mesa; gente exilada escreve tantas cartas.” Mais uma vez a interferência entre épocas, com um objeto impossível tomado como algo cotidiano no Império Romano do início da Era Comum. “Agora ele está chorando. Toda noite por volta dessa hora ele se agasalha com a tristeza e continua a escrever.”
Seja qual for o personagem escolhido, a poesia de Carson opera sempre em três níveis simultâneos e diversos: informa algo a respeito de alguém (Kafka, Claudel, Ovídio); chama a atenção para a linguagem que torna essa informação possível (“faltavam palavras”); cria, dentro da linguagem, um espaço para o leitor pensar. Existe um elemento dialógico em Carson que é constituinte de sua poética, na medida em que se dirige ao sujeito que se ocupa da leitura, que toma tempo de sua vida para se dedicar à decifração de um texto. Carson reconhece e valoriza esse esforço porque se apresenta, antes de tudo, como uma leitora.
Não é por acaso que uma das mais efetivas “falas curtas” é precisamente sobre a leitura. Não apenas “sobre” a leitura, mas sobre a formação de uma leitora, a leitora que agora escreve. “Alguns pais detestam ler, mas adoram levar a família em viagem. Alguns filhos detestam viajar mas adoram ler. Engraçado como é frequente se encontrarem no mesmo automóvel”, escreve ela. Trata-se de um fragmento que dá a impressão de ser autobiográfico, de evocar uma memória de infância, usando a primeira pessoa: “Vislumbrei os estupendos ombros nitidamente definidos das Rochosas por entre parágrafos de Madame Bovary. Sombras de nuvens percorriam lânguidas o imenso pescoço de pedra, delineavam os flancos plantados de abetos”. É pouco provável que um leitor dessas linhas não se sinta contemplado, iniciando uma retrospectiva de suas próprias leituras, suas próprias paisagens.
KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).