Crítica

Falas curtas

Terceiro livro publicado no Brasil da escritora, tradutora e professora Anne Carson afirma a variedade criativa da sua obra, que soma 20 títulos publicados

TEXTO Kelvin Falcão Klein

05 de Outubro de 2022

A escritora e intelectual Anne Carson

A escritora e intelectual Anne Carson

Foto Jeff Brown/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 262 | outubro de 2022]

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Anne Carson é uma artista de múltiplos talentos e atividades: ensaísta, poetisa, tradutora, classicista, professora universitária, tendo ensinado letras clássicas, literatura comparada e escrita criativa em universidades tanto do Canadá quanto dos Estados Unidos. Além disso, teve seu trabalho reconhecido por uma série de prêmios, desde o T.S.Eliot e o PEN/Nabokov até o prestigioso Princesa das Astúrias das Letras, dado pela fundação espanhola de mesmo nome. O principal traço distintivo da sua obra é o modo como mescla ideias e temas de vários campos em sua escrita, usando elementos da antropologia, da história, da mitologia, das artes visuais e da história da literatura. Atuando como tradutora, Carson já publicou suas versões para o inglês de 10 tragédias gregas antigas – nomes como Ésquilo (Agamenon), Sófocles (Antígona, Electra), Eurípides (Orestes), além da poesia de Safo. Sua atuação, contudo, não se restringe em absoluto ao mundo clássico, pelo contrário: Carson opera atravessamentos entre as épocas e os idiomas, apropriando-se das vidas e das obras de figuras tão diversas como Emily Dickinson, Franz Kafka, John Keats, Gertrude Stein e Virginia Woolf.

Com a progressiva passagem do mundo acadêmico ao mundo artístico, Carson começa a ser procurada para entrevistas, perfis e declarações em geral. A figura que emerge é de uma pessoa reservada, que prefere ficar sozinha (um entrevistador conta que quando o marido viaja, Carson liga e diz a ele: “Sinto sua falta, mas estou me divertindo muito”). Os seus livros em geral não vêm com a fotografia da autora e a seção reservada para os dados biográficos costuma ser minimalista. Uma das boas notícias envolvendo a autora, especialmente para aqueles que ainda não conhecem seu trabalho, é que ela é uma escritora prolífica, tendo publicado mais de 20 livros desde os anos 1980. Todos eles variados, criativos e audaciosos do ponto de vista formal e poético – o subtítulo que ela dá ao seu livro Decreation, por exemplo, de 2005, ajuda a dar substância a essa variação: “Poesia, ensaios, ópera”.

É preciso salientar também a capacidade de Carson de cunhar títulos que são, ao mesmo tempo, enigmáticos e instigantes. Desde A beleza do marido: Um ensaio ficcional em 29 tangos (sobre John Keats), de 2001, passando por O espelho das almas simples, de 2003, até chegar em Norma Jeane Baker of Troy, de 2019, em que mescla as histórias de Helena de Troia e Marilyn Monroe. Um comentador de sua obra já escreveu que Carson dá a impressão de ser “alguém de outro mundo”, um mundo extraterrestre ou arcaico, “para quem nossas categorias terrenas modernas são muito artificiais e simplistas”. O seu trabalho se move, “frase por frase, linha por linha”, em direções “que um cérebro humano não se moveria naturalmente”. Para mim, o juízo é bastante acurado, já que a experiência de leitura da obra de Carson de fato leva o leitor a associações estranhas, à aproximação por vezes vertiginosa de diferentes temporalidades.

No Brasil, sua obra começa a ser notada e traduzida, com algumas edições já disponíveis. O primeiro livro de Carson a sair no Brasil foi O método Albertine, um ensaio sobre uma personagem de Marcel Proust, com tradução de Vilma Arêas e Francisco Guimarães, pelas Edições Jabuticaba (2017); em 2021, pela Editora 34 e com tradução de Ismar Tirelli Neto, foi lançado Autobiografia do vermelho, um “romance em versos” baseado no mito grego de Gerião. O terceiro é o recém-lançado Falas curtas, editado pela Relicário, com tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman. Um dos pontos altos da edição é o fato de ser bilíngue, o que possibilita ao leitor a comparação, lado a lado, das short talks escritas por Carson e as “falas curtas” da versão brasileira. A experiência de leitura é bem mais rica quando há a possibilidade de acompanhar o original, especialmente quando se trata de uma escritora como Carson, sempre atenta às origens das palavras e aos jogos polissêmicos possíveis dentro da construção poética. A manipulação vocabular criativa de Carson é o modo que ela encontrou para estabelecer um contato permanente entre a tradução e a criação, inaugurando um campo intermediário dentro do qual circulam as Falas curtas.


Imagem: Reprodução

Os fragmentos falam de personagens por vezes bastante conhecidos, como Van Gogh: “Eu bebo para entender o céu amarelo o enorme céu amarelo, dizia Van Gogh. Quando olhava o mundo enxergava os pregos que prendem as cores às coisas e via a dor dos pregos”. Onde exatamente “dizia” Van Gogh? Não fica claro, é um dos tantos enigmas reservados ao leitor que desejar aprofundamento. De onde vem esse “enorme céu amarelo”? É preciso voltar às pinturas, às imagens, reparando na caracterização específica dos céus (são mais de mil obras, entre pinturas, aquarelas e desenhos). E, por fim, a “dor dos pregos”, o arremate poético de Carson, que deixa o fragmento em suspenso na mente do leitor. Em seguida, encontramos personagens como Camille Claudel e Franz Kafka; a primeira partindo pedras (cujos pedaços “enterrava à noite fora dos muros”), o segundo com sua irmã favorita, Ottla, que “morreria em outubro de 1943”, em Auschwitz (ela teve “os sapatos bem-lustrados” pelo marido).

Vários outros personagens aparecerão (Homo Sapiens, Geisha, Gertrude Stein, Ovídio no exílio e Sylvia Plath), reiterando por vezes algo que Carson já estabelece no início do livro, no primeiro “poema”, intitulado Introdução. Ela escreve: “Um dia de manhã cedo faltavam palavras. Antes disso, não havia palavras. Havia fatos, havia rostos. Numa boa história, diz Aristóteles, tudo o que acontece é impelido por alguma outra coisa. Um dia alguém reparou que havia estrelas mas palavras não”. O substrato primordial da linguagem e da poesia é deslocado desde o início do livro, estabelecendo uma trajetória que é de dúvida, mas também de experimentação. Os fragmentos de Falas curtas se dedicam à reflexão acerca de como as coisas – pessoas, lugares, sentimentos – se transformam, como mudam de estado. É nesse espaço, na lacuna entre o que se sabe e o que ainda não se sabe, que se encontram as “palavras”. A “fala curta” sobre o cubista Georges Braque exemplifica bem essa dimensão da obra de Carson: “Braque rejeitava a perspectiva. Por quê? Alguém que passe a vida desenhando pessoas de perfil acaba achando que os humanos têm um olho só, sentia Braque. Braque queria tomar plena posse dos objetos”.

O modo como Carson transita por referências do século XX – especialmente aquelas figuras ligadas ao movimento modernista – serve também para auxiliar o leitor na reconstrução da sua linhagem. Ou seja, as obras e biografias alheias que ajudam a compor o pano de fundo que torna possível sua obra tão idiossincrática. Braque e Kafka dão as primeiras pistas, o primeiro ligado à implosão da perspectiva na pintura, o segundo ligado à implosão do “sentido único” em literatura. Braque, além disso, funciona como um ponto de condensação que reúne vários outros nomes – Cézanne, Matisse, Picasso, Juan Gris – que por vezes aparecem na obra de Carson. Do lado de Kafka, o mesmo fenômeno: o uso criativo da mitologia, por exemplo, é algo que aproxima o autor de A metamorfose da autora de Falas curtas. Direcionando o foco para nomes mais recentes, a obra de Carson funciona também como ponto de condensação de experimentos artísticos com os quais ela dialoga diretamente: as obras, pouco conhecidas no Brasil, de autores como Robert Bagg, Fanny Howe, Rikki Ducornet, entre muitos outros.

Como na maioria dos livros de Carson, os fragmentos de Falas curtas também se apropriam de fatos históricos e personalidades documentadas. Entre fato e ficção, a poesia trabalha no regime daquilo que “poderia ter sido”, “poderia ter acontecido”, imaginando como sensações muito específicas podem aflorar em situações de angústia ou de júbilo. Quando escreve uma fala curta sobre Ovídio, por exemplo, Carson registra: “Eu o imagino lá numa noite como a de hoje só que fria, a lua soprando por ruas escuras”. A noite de Ovídio no exílio é “como a de hoje”, próxima, ainda que afastada pelos séculos. “Ele janta e caminha de volta para o quarto. O rádio está no chão. O mostrador verde luminescente soa baixinho. Ovídio senta-se à mesa; gente exilada escreve tantas cartas.” Mais uma vez a interferência entre épocas, com um objeto impossível tomado como algo cotidiano no Império Romano do início da Era Comum. “Agora ele está chorando. Toda noite por volta dessa hora ele se agasalha com a tristeza e continua a escrever.”

Seja qual for o personagem escolhido, a poesia de Carson opera sempre em três níveis simultâneos e diversos: informa algo a respeito de alguém (Kafka, Claudel, Ovídio); chama a atenção para a linguagem que torna essa informação possível (“faltavam palavras”); cria, dentro da linguagem, um espaço para o leitor pensar. Existe um elemento dialógico em Carson que é constituinte de sua poética, na medida em que se dirige ao sujeito que se ocupa da leitura, que toma tempo de sua vida para se dedicar à decifração de um texto. Carson reconhece e valoriza esse esforço porque se apresenta, antes de tudo, como uma leitora.

Não é por acaso que uma das mais efetivas “falas curtas” é precisamente sobre a leitura. Não apenas “sobre” a leitura, mas sobre a formação de uma leitora, a leitora que agora escreve. “Alguns pais detestam ler, mas adoram levar a família em viagem. Alguns filhos detestam viajar mas adoram ler. Engraçado como é frequente se encontrarem no mesmo automóvel”, escreve ela. Trata-se de um fragmento que dá a impressão de ser autobiográfico, de evocar uma memória de infância, usando a primeira pessoa: “Vislumbrei os estupendos ombros nitidamente definidos das Rochosas por entre parágrafos de Madame Bovary. Sombras de nuvens percorriam lânguidas o imenso pescoço de pedra, delineavam os flancos plantados de abetos”. É pouco provável que um leitor dessas linhas não se sinta contemplado, iniciando uma retrospectiva de suas próprias leituras, suas próprias paisagens. 

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).

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