Perfil

A geografia afetiva de Morgana e Paulo

TEXTO Jr. Bellé

05 de Outubro de 2022

Foto José de Holanda

[conteúdo na íntegra | ed. 262 | outubro de 2022]

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Não tenho rotina, sou um caos. E ponto”, diz Paulo Scott, 55 anos. Eram 9h30 e ele estava vestindo blusa esportiva e calça de malha, sentado na poltrona da sala de seu apartamento alugado na zona oeste de São Paulo. Vivíamos uma manhã paradoxal, fria e ensolarada, que atravessava a vidraça da pequena sacada, intrometia-se feito brisa pelas frestas até lamber o rosto sonolento de Scott com suas refrescantes lufadas. “Quando estou imerso na escrita de um livro, tendo a ficar vinculado ao meu biorritmo e a trabalhar de madrugada, aí é comum ir até umas 8h, 9h”, levanta-se e vai até a cozinha preparar um chá.

Na poltrona ao lado está Morgana Kretzmann, 40 anos, que além de escritora é dramaturga, atriz, produtora e roteirista. Ela preparou um café – Scott está evitando, por conta do estômago – com pães de queijo e um bolo de fubá. “Até parece que a gente é mineiro, e não gaúcho. O Paulo nem chimarrão toma”, brinca. Diferentemente do companheiro, Morgana é uma pessoa vespertina: “Minha vida não é um caos. Eu acordo cedo e tento sempre escrever de manhã e de tarde. À noite, não consigo”.

Apesar da diferença de fusos, estão juntos há 10 anos, numa dinâmica que parece bastante azeitada. A mudança recente para o atual apartamento no Bairro de Perdizes fez bem para a rotina do casal: ele tem três quartos, sendo que dois deles foram transformados em escritórios. Um ajuste importante para o ritmo de trabalho dos dois. Paulo ganha a vida com sua literatura: preparação de livros, venda de suas obras para o cinema, oficinas de escrita criativa, direitos autorais. Já Morgana trabalha como roteirista, “que ganha um pouquinho melhor que escritor”, brinca. Recentemente, ela terminou de escrever a série Tarã, para a Disney+, que começou a ser rodada em julho e marcará o retorno de Xuxa Meneghel como atriz.

“Mas a literatura não está no nosso dia a dia, primeiro vem o companheirismo”, Paulo volta da cozinha bebericando seu chá. “Ela está na minha rotina e na da Morgana, mas individualmente. Nossa questão é o encontro, é como resolver a rotina da casa – louça pra lavar, banheiro pra limpar, varrer os cômodos – porque a gente é escritor e não tem muitos recursos.” Os dois levam uma vida comedida, raramente tiram férias, exceto no caso de visitas familiares ou viagens no esteio de eventos literários. “Os dois trabalham muito”, completa Morgana. “Temos até um combinado: jantar juntos – é o nosso momento de estar perto um do outro, ver um filme, essas coisas.” Ela explica que o expediente dos dois facilmente chega a 10, 12 horas de trabalho, e é importante ressaltar que isso combina perfeitamente com o estilo paulistano de levar a vida.

Quando os dois se mudaram para São Paulo, no começo de 2019, um pequeno abalo sísmico aconteceu na cena literária da cidade. Pequeno, pois tudo que envolve a literatura tem proporções relativas. Além disso, poucos meses depois da mudança, o mundo mergulhou num pesadelo coletivo: a pandemia da Covid-19. “Saía na rua e não via uma pessoa, um carro”, lembra Morgana. “A primeira morte por Covid foi aqui em Perdizes, foi um senhor que veio da Itália. Aqui foi onde tudo começou a parar.”

Na época, Morgana estava finalizando seu primeiro romance, Ao pó, que sairia no ano seguinte pela Editora Patuá. Meses antes, Paulo Scott havia lançado seu mais recente trabalho, Marrom e amarelo (Alfaguara). À parte seus trabalhos individuais, tão logo arribaram na capital paulista, começaram a agitar a cena. O escritor Marcelino Freire, que há muitos anos é protagonista na construção de programações culturais e formativas em São Paulo, comemorou a chegada dos amigos. “A cidade precisava deles. Aí eles mudaram pra cá. E muita coisa aconteceu nesse pouco tempo. Os dois não são de ficar parados. Tenho uma admiração pela guerrilha dos dois. E são parceiros natos e muito sérios no que fazem. Trabalhador, trabalhadora. Eu detesto artista bundão, que só senta e fica esperando. Scott e Morgana não se acomodam.”

Marcelino logo arregimentou Morgana para ajudá-lo a produzir a Balada Literária, evento importante no calendário cultural da cidade e que neste 2022 chega à sua 17ª edição. “Scott sempre me socorreu na Balada. É um tempo já nosso, de toda uma história em comum. São Paulo é essa literatura de afetos, de encontros... gosta de gente que não se dobra. Gente que devolve em abraço tudo o que São Paulo dá... a história que já construíram aqui, os livros que já publicaram aqui, é uma maneira de devolver com a arte dele e dela, com o olhar dele e dela, a energia que a cidade propicia”, disse.

A escritora Andrea Del Fuego também ficou empolgada com a mudança. “O Scott sempre se envolveu coletivamente com a literatura, sempre fez projetos para estar entre outros autores. Ele lê muito a cena contemporânea, nesse sentido o Paulo faria diferença em qualquer cidade.”

De fato, assim que chegou à cidade, Scott reiniciou um de seus projetos mais antigos: a Revista ao Vivo do Comportamento Brasileiro, uma espécie de bate-papo com reflexão política, leituras e debates que ele havia criado em 2008, no Rio de Janeiro. “Lá, a revista era feita de modo presencial; aqui em São Paulo, por conta da pandemia, acabou sendo online. Fiquei honradíssima com o convite dele para eu participar, fizemos durante dois anos, por podcast, e foram janelas de oxigênio a cada encontro semanal com ele, João Paulo Cuenca, Mauro Garcia Dahmer e tantos convidados que o Scott foi trazendo para essa troca, para essa fala coletiva”, comentou Del Fuego.


Morgana Krestzmann com as escritoras Andrea Del Fuego e Semayat Oliveira.
Foto: Arquivo pessoal/cortesia

Eles se conhecem há muitos anos. Ele costumava viajar para São Paulo por conta dos eventos literários e acabava encontrando boa parte da cena num único lugar: a Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, zona oeste da capital. “Os amigos escritores sempre se reuniam lá pra trocar textos, inventar antologias; isso, com Ivana Arruda Leite, Marcelino Freire, Ronaldo Bressane, Joca Reiners Terron, Índigo, Maria José Silveira, Rodrigo Lacerda”, lembra a escritora.

No final de 2021, com 50 anos de história, a Mercearia São Pedro anunciou que fecharia as portas. Foi um baque para a boêmia da zona oeste e para toda a literatura da cidade, afinal, desde os anos 1990 o lugar era frequentado por escritores. Eterno anfitrião do lugar, Marcos Benuthe, mais conhecido como Marquinhos, ainda recorda a primeira geração que começou a beber na Mercearia, gente como Reinaldo Moraes e Mário Prata. Nos anos 2000, vieram Marcelino Freire, Xico Sá, Ronaldo Bressane. “Conheci o Scott dessa época, junto com o Daniel Galera. A gente fez todos os lançamentos do Scott em São Paulo. Quando a Mercearia estava chegando ao fim, começamos a procurar uma nova casa. A ideia era fazer uma pequena livraria.”

É aí que Morgana entra na história. Logo que se conheceram, ela e Marcos Benuthe se tornaram bons amigos, e passaram a fazer juntos as peregrinações pelo bairro, na tentativa de encontrar algum lugar possível para recomeçar. “Eu estava bastante desiludido, caminhava para a aposentadoria. Foi a Morgana que me animou a procurar novos caminhos, ela simplesmente tem importância fundamental para eu ter readquirido a vontade de trabalhar de novo”, situa o empresário.

Foi Morgana quem encontrou a casa onde hoje é a Ria Livraria, o mais novo e badalado point da literatura paulistana, com o mais tradicional anfitrião da cidade. “Tenho muito orgulho de ter ajudado a montar aquele espaço desde o início”, conta Morgana. “Sou amiga do Marquinhos, é uma questão de afeto: eu que mandei fazer os quadros das escritoras mulheres que estão nas paredes, a sala de aula fui eu que montei.” A Ria é basicamente um bar, com um pequeno espaço aberto para a calçada, uma livraria interna e um segundo piso, onde há uma sala, batizada de Júlio Plaza, em que oferecem cursos de escrita criativa. O primeiro professor a dar aula no lugar foi justamente Paulo Scott.

SEUS LIVROS
Ao pó (Patuá), estreia de Morgana na literatura, rendeu-lhe o prestigioso Prêmio São Paulo de Literatura de 2021, e abriu as portas da maior editora do país, a Companhia das Letras, que a convidou para publicar seus dois próximos livros: Água turvo e Safra de sangue.

Quem apresentou Morgana à nova editora foi sua amiga Andrea Del Fuego. “O que fiz foi só dizer para a Companhia: olha, tenho aqui um original, um romance incrível, uma autora que conheço e sei do processo do próximo romance, acho imperdível. A partir daí as coisas se fazem, o livro é que se leva.” Para Andrea, o grande mérito de Ao pó é construir uma linguagem fresca, que não chama a atenção para si, mas para a história. “Eu acho isso dificílimo e Morgana faz com muita competência, cria tensão e tem propriedade ao escrever diálogos.”

Stéphanie Roque, jovem editora de Morgana na Companhia das Letras, concorda. Ao ler Ao pó e o começo de Água turvo, enxergou nessas obras algo raro: personagens femininas muito poderosas, que evocam sentimentos comuns e, ao mesmo tempo, estão inseridas em paisagens e contextos pouco explorados pela ficção. Além disso, a editora percebe em Morgana uma tentativa de se valer de estratégias narrativas que ela adquiriu como roteirista, sem que a linguagem literária seja demasiadamente contaminada. “Isso faz com que ela crie cenas muito fortes, que realmente prendem. O começo do Água turvo tem uma cena maravilhosa, ambientada nos rincões do Rio Grande do Sul, no meio do mato, ela traz uma questão ambiental que bate de frente com o atual governo. É um livro que levanta questões importantes, ótimo para clubes de leituras. Mas o que mais me chamou a atenção na Morgana foi a força, a força de tudo que apresenta logo no início dos livros, sobretudo no Água turvo.”

Não são apenas as personagens femininas que empoderam a literatura de Morgana: ela mesma, uma escritora se destacando num círculo masculinizado, é, por si só, um fato importante reconhecido por Stéphanie. “Eu tento ter o compromisso, dentro do que é possível, de publicar mais mulheres, mais pessoas negras: a gente tem que fazer esse movimento. Foram muitos anos de negligência cultural com as mulheres, e a Companhia está com um comprometimento muito forte com isso, de fazer essas outras vozes serem ouvidas. É muito importante politicamente, provoca debate e isso tem mudado a literatura, até então muito centrada nas mesmas pessoas. O cenário mudou, os livros de ficção vendem mais, porque estão atingindo outras pessoas, pessoas que só são atingidas por essas outras vozes.”

A literatura é apenas mais um cenário nessa realidade profissional em que o trabalho das mulheres, e sua própria existência, são recorrentemente questionados. Por isso, Marcelino Freire tem certeza de que a ascensão de Morgana não é apenas merecida, é necessária. “Sei da origem dela, da luta de sua família, de ela desde jovem ter se mudado sozinha para o Rio de Janeiro, de sua trajetória no teatro, do preconceito e perseguição machista que ela sofreu e ainda sofre. Então, repito, acompanhar de perto a luta de uma pessoa é valorizar ainda mais o que ela conquista.”

Paulo Scott com o escritor Marcelino Freire. Foto: Arquivo pessoal/cortesia

No teatro, essa luta vem de longa data. Morgana, formada pela Escola de Atores de Porto Alegre, participou de mais de 20 espetáculos adultos e infantis, entre eles 3 dias ou menos, sobre o porte ilegal de armas, e a direção e adaptação de Big Jato, livro de Xico Sá. No cinema, além da especialização em Roteiro Cinematográfico na PUC-RIO, atuou como atriz em pequenas e médias produções, destaque para o curta-metragem A pedra, que abriu o Festival de Gramado de 2019, ao lado de Bacurau. Isso sem falar na trajetória como produtora cultural, que tem no currículo premiações como as da Funarte e Fumproarte pelo espetáculo Universo Bortolotto – Nossa vida não vale um Chevrolet.

A trajetória artística de Paulo Scott, por outro lado, foi trilhada na literatura e nela se consolidou. Publicou 12 livros e venceu prêmios importantes como o Machado de Assis, Fundação Biblioteca Nacional, APCA, Açorianos e foi finalista do Jabuti e Oceanos. Mas, em 2022, em São Paulo, conseguiu um feito inédito: levou seu mais recente romance, Marrom e amarelo (Alfaguara), às finais do Booker Prize, conceituada premiação estadunidense. Antes dele, apenas Raduan Nassar chegara a essa posição, em 2016, com a tradução de Um copo de cólera (Companhia das Letras). Mas há entre eles uma diferença crucial: A cup of rage (New Directions), assim traduzido por Stefan Tobler, surgira na literatura brasileira há quase quatro décadas, tendo sido lançada em 1978, e já alçada ao cânone literário. No caso de Phenotypes (And Other Stories), título do livro de Scott traduzido por Daniel Hahn, trata-se de uma publicação contemporânea, lançada em 2019 e ainda relegada pela crítica nacional.

Para Marcelino Freire, essa conquista de Scott é natural: “A vantagem de ser amigo de um escritor há tanto tempo é que a gente sabe o que o cara escreveu, penou, lutou. Já vi Scott carregar livros, já vi Scott lutar para divulgar autores e autoras que estão chegando. Ele não é mesquinho. Vem construindo uma carreira sólida como poeta, contista, romancista e até produtor”.

Apesar de ter consciência da dimensão do seu feito, Scott o comemora com sobriedade. “Tenho uma postura pública de não manifestar entusiasmo, encantamento desmedido ou euforia em relação a premiações que recebo, ou inserção em listas e esse tipo de coisa.” Sua experiência como jurado de prêmios o levou a tecer críticas mordazes contra o mainstream literário. Parte dessas críticas foi publicamente manifestada em um de seus livros mais ácidos, O ano em que vivi de literatura (Foz), crua sátira aos julgadores dessas premiações. “Eu sei que tudo é muito subjetivo, e que muita coisa que inflama e brilha num período passa dois, três anos e desaparece. Isso acontece inclusive com o próprio prêmio Nobel. Tudo é muito relacional, muito político e circunstancial.”

Scott credita a boa repercussão de Phenotypes ao árduo trabalho de seu editor inglês, o que contribuiu para que o livro chegasse às mãos de importantes críticos. A qualidade da obra, por sua vez, garantiu que as palavras fossem enaltecedoras. “O que posso dizer de maneira lúcida é que esse livro acontece a partir da resenha do New York Times”, credita. Mas não só isso, pois o nome de Scott já circulava no exterior desde a tradução de seu romance mais conhecido, Habitante irreal (Alfaguara), que teve excelente recepção na Europa. A indicação ao Booker Prize é também consequência de um trabalho de longo prazo.

No Brasil, contudo, Marrom e amarelo demorou cerca de quatro meses para ser resenhado e aparecer em nossos suplementos literários: “O livro circulou no boca a boca, mas agora, três anos depois, está na sexta tiragem. Apesar da inércia da esquerda, os movimentos negros sabem que o tema das cotas está na ordem do dia”. Ele especifica isso porque a fagulha inicial da trama de Marrom e amarelo é justamente a questão das cotas. Mas ele vai além e mergulha em regiões inóspitas do debate racial, como o colorismo. “Minha visão sobre as cotas é que não serão alteradas. Acho. Se os caras pudessem, alterariam, porque esse é o pior congresso do período pós-redemocratização, de longe, só entrou bandido lá, já era ruim e ficou pior”, opina.

PERCURSOS
Consolidar-se como escritor num ambiente literário tão precário como o brasileiro exige decisões dramáticas, mudanças bruscas e certa resignação de saber-se distante, ao menos por um tempo, de sua zona de conforto. Foi assim com Paulo Scott. Até 2008, ele era professor de Direito Tributário e Econômico na PUC-RS e sócio de um escritório de advocacia de empresas em Porto Alegre. Ganhava um bom dinheiro, mas a literatura permanecia sufocada entre a academia, os processos e os tribunais. Ela resistia, claro, como é de sua natureza, em atrito e latência.

Ele já havia publicado três livros de poemas, Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros (Sulina, 2001), A timidez do monstro (Objetiva, 2006), Senhor escuridão (Record, 2006); um livro de contos, Ainda orangotangos (Livros do Mal, 2003); e o romance gráfico Voláteis (Objetiva, 2005).

“Então, em 2008, quando fui pra Sydney, no projeto Amores expressos, tive uma experiência muito radical: fiquei um mês em silêncio. Voltei com a consciência de que era o momento de escolher o que eu queria. E pensei assim: vai ser muita covardia da minha parte não experimentar essa possibilidade, ir pra tumba com essa dúvida: se eu deveria ter tentado descobrir o quanto eu valia como escritor ou não.”

Bom, ele tentou. Pediu licença da PUC, um ano depois apresentou seu pedido de demissão, vendeu sua parte no escritório de advocacia e se mudou para o Rio de Janeiro. “Decidi ir pro Rio porque eu sabia que em São Paulo teria muitas chances de voltar à advocacia, teria uma recaída e voltaria ao Paulo Scott de antes. O Rio é bem mais duro pra quem chega e eu não tinha tela de proteção. Se você não se criou com os cariocas, principalmente ali na zona sul, os caras podem te amar, mas trabalho não vai rolar. E eu estava de boa com isso, porque tinha São Paulo e Porto Alegre na minha vida, era daí que vinha o dinheiro.”


Imagem: Divulgação


Ao pó (2019), romance de estreia de Morgana, e Marrom e amarelo (2019),
um dos cinco romances de Paulo. Imagem: Divulgação

De repente, a literatura não era mais uma atividade paralela, mas a única responsável por responder por suas necessidades de expressão criativa, e também por pagar os boletos. “Eu viajava muito, principalmente por conta das oficinas de escrita. O Carpinejar criou o primeiro curso de escrita criativa em universidade e me convidou pra dar aula. Daí foi uma cascata. Pra mim, o viver de literatura passa, antes de qualquer coisa, por dar oficina. No Rio, eu tinha oficinas regulares para roteiristas e escritores, na Estação das Letras, no Flamengo, e numa escola de língua germânica.” Outro alento financeiro foi a Bolsa Petrobras 2010, que lhe rendeu um bom dinheiro mensalmente e era dedicada à finalização do romance Habitante irreal (Alfaguara, 2011), obra que venceria o Prêmio Machado de Assis em 2012.

Foi durante o lançamento do Habitante irreal, em Porto Alegre, que Paulo e Morgana se conheceram. “Era março de 2012”, lembra Scott, “em julho, convidei-a pra morar comigo e ela aceitou. Foi assim que nos casamos. Bem rápido”. De repente, Morgana se viu vendendo todas as suas coisas, colocando o restante em duas malas e rumando para o Rio de Janeiro. “A gente ficou lá até 2016”, conta Morgana. “O apartamento era dele, tinha um escritório que o Paulo usava quando não estava viajando e um quarto nos fundos: trabalhei lá durante um bom tempo.”

Nessa época, Morgana dedicava-se ao teatro, como atriz e dramaturga. O Rio de Janeiro, no entanto, foi se tornando inóspito com a chegada dos grandes eventos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. “Hoje, com essa inflação, tudo bem você falar que um misto-quente custa R$20, mas imagina naquela época. Tudo estava caro e os trabalhos estavam voltados para aquilo: Copa da Literatura, Copa do Teatro. A gente não tinha interesse nisso, estava gastando muito e tinha pouco trabalho”, lembra ela.

2015 foi um momento duro, pela primeira vez em seis anos, a literatura não foi suficiente para fechar as contas de Scott. Eram os estertores do governo Dilma, o prenúncio do golpe, estava instalada a crise orçamentária nas universidades, nas empresas e também no Sesc, um importante pilar de sustentação da arte e da cultura no Sul e Sudeste.

“Eu precisava colocar o pé no chão: aceitei um convite pra dar aula em Santa Catarina, numa faculdade de Direito. Foi uma vida de deslocamento: eu estava sem carro, pegava ônibus pinga-pinga de Garopaba até Tubarão, que são 80 km, caminhava até a rodoviária a pé. E Morgana no Rio, numa peça que ela estrelou, isso no começo de 2016. No meio do ano a temporada acabou e ela foi pra Garopaba. Depois, conseguimos comprar um carro.”

Santa Catarina sempre foi um plano temporário, um momento de estabilização, de voltar a respirar, colocar a casa em ordem. Morgana iniciou um curso de Gestão Ambiental, o que acabou retardando um pouco o retorno aos grandes centros. No entanto, havia um dilema: para onde voltar? Rio, Porto Alegre? Seria hora de arriscar-se em São Paulo?

“Tem um colchãozinho de visitas aqui em casa em que Scott dormiu algumas vezes”, recorda Marcelino Freire. “O colchão sempre pequeno. Ele ficava com os pés de fora. Jurei que uma próxima vez ele dormiria em um colchão maior, que eu compraria. E comprei só por causa do Scott. Aliás, neste colchão já dormiram Paulo Lins, Bruno Brum, Valter Hugo Mãe... Tem muita história literária esse colchão.” As idas e vindas de Scott para São Paulo voltavam a ser frequentes: “Eu achava sempre que eles deveriam mudar de vez para cá”.

E eles mudaram. Santa Catarina estava cada dia mais conservadora, no Rio de Janeiro havia um governador chamado Wilson Witzel, disposto a usar a violência como bandeira política. “Voltar pro Rio dessa forma seria pouco inteligente. São Paulo é outro contexto: se você trabalha, se tem um projeto, disposição e respeito das pessoas, a coisa acontece. E desde 2003 que São Paulo me recepciona”, explica Scott.

Existia também a possibilidade de os dois voltarem para Porto Alegre. Contudo, a capital gaúcha é palco de competições acirradas, que os dois não estavam dispostos a encampar. “É um ambiente neurótico, de muita qualidade e crueldade. Se você vence a competição, você entra, é aceito, mas é uma competição muito dura, porque é uma cidade com um padrão muito alto de cultura, de linguagem, de conhecimento, de ambição, muito parecido com o Recife nesse sentido, porque é muito alto nível, é uma competição muito dura pra quem está chegando de fora”, avalia.

Morgana sentiu isso na pele, pois ela chegou de fora, vinda do interior, noroeste do estado, de uma pequena cidade chamada Tenente Portela. “A primeira coisa que Porto Alegre faz com você é duvidar. Você primeiro tem que provar que consegue, e isso é cansativo para pessoas como eu.” Ela diz que não funciona debaixo de mau tempo, com pressão alta e competição acirrada – ela funciona com afeto. “Em São Paulo, a gente encontrou esse afeto: pra trabalhar e criar. Encontramos amigos, parceiros novos e antigos. Para algumas pessoas, São Paulo é dura e cinzenta, feita de concreto, e ela é mesmo, mas a cidade só se mantém de pé por causa dos afetos.” Se esta é a última parada do casal, não se sabe. O que se pode desejar é que seja uma estada longa, repleta de grandes histórias, na vida e na literatura. 

JR. BELLÉ, jornalista e poeta, doutorando em Estudos Literários pela UFPR. Autor de Trato de levante e amorte chama semhora, ambos pela Editora Patuá. Vencedor dos prêmios Amaré-Flipoços e Variações de Literatura LGBTQI+. Acaba de lançar seu primeiro romance, Mesmo sem saber pra onde, pela editora Folheando.

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