CONTINENTE Como assim?
LUIZ ANTONIO SIMAS Eu fui fazer História porque achava que era mais fácil passar. Queria passar para uma universidade pública. Gostava de História, mas nada excepcional ou muito marcante. Eu não era aquele garoto que amava aulas de História, até porque eu não gostava de colégio. Nunca gostei e, curiosamente, virei professor. E só descobri que amava dar aula quando comecei a dar. E te digo que comecei a dar aula por causa de dinheiro. É esse motivo de uma simplicidade absoluta. Eu tinha me formado em História e fui fazer um mestrado por causa da bolsa. Aí um amigo me convidou para dar aula porque ele dava aula num colégio, num curso aqui do Rio de Janeiro, que estava precisando de professor. A minha bolsa tinha acabado e eu tinha que ganhar dinheiro. Então comecei… E aí é interessante porque, desde o momento que comecei, aí sim, acho que é uma transformação. Logo identifiquei que eu queria dar aula para a criança e adolescente. Gosto disso. Eu já experimentei dar aula para o Ensino Superior, esse negócio todo, mas onde eu me encontrei, o meu habitat natural, se é que a gente pode dizer assim, era uma sala de aula para crianças e adolescentes. Ali foi uma descoberta. Na minha vida, foi uma beleza. Um achado excepcional. De uma certa forma, tudo vem daí.
Produção literária de Simas, que inclui parcerias com Nei Lopes, é prolífica, e o autor deve lançar seu primeiro livro de poesias ainda este ano. Imagens: Reprodução
CONTINENTE Curioso que o menino que não gostava de colégios hoje vive de dar aula para crianças e jovens.
LUIZ ANTONIO SIMAS Não gostava mesmo de colégio. Como aluno, nunca gostei! Gostava do recreio, na verdade, mas não de aula. Achava aula um negócio insuportável, mas recreio eu adorava. Sempre gostei da interação que o colégio proporcionava. E aí acabei virando professor e adorei dar aula para crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, fui fazendo o meu trabalho como historiador. Isso é uma coisa que para mim sempre foi muito nítida: queria trabalhar com História na faculdade, decidi isso no campo de pesquisa e tal, e, ao mesmo tempo, me apaixonei perdidamente pela sala de aula e descobri que era isso que eu queria fazer. Eu me sinto bem até hoje. Nunca me arrependi e nem vou me arrepender, porque agora, nessa altura do campeonato, não tem mais jeito.
CONTINENTE Você tem quantos anos e há quantos está na sala de aula?
LUIZ ANTONIO SIMAS Estou com 54 e dou aula há 30 anos. Já trabalhei no ensino público, mas hoje dou aula no ensino privado, para o 1º e o 2º anos do Ensino Médio. E já estou num prazo de aposentadoria, mas continuo dando aula. Até porque eu vivo disso. Não são meus livros que pagam minhas contas. O que paga é dar aula. E só para concluir o que você me perguntou no começo, quando eu comecei a fazer livro de História, quando comecei a trabalhar em mais de uma área de pesquisa, também foi uma coisa de rompante. Não teve nada muito planejado.
CONTINENTE Foi uma decisão súbita e casual?
LUIZ ANTONIO SIMAS O primeiro livro que eu escrevi se chama O vidente míope (2009). Escrevi com o Cássio Loredano, um caricaturista, e basicamente porque ele me convidou. Tem uma história que não é nada glamourosa. É muito peculiar. Ele estava escrevendo um livro sobre J. Carlos, que foi um grande caricaturista carioca e brasileiro, e sobre a década de 1920, com algumas caricaturas dele, e precisava de alguém para escrever um texto. Porque ele tinha feito a seleção das caricaturas. Aí nós estávamos tomando chope num bar chamado Dom Manuel – nunca esqueci nem o nome do bar! – no Grajaú, um bairro da zona norte daqui do Rio. E o Cássio estava falando, e ele pode confirmar isso tudo, sobre o livro e terminou me perguntando se eu não conhecia alguém que pudesse escrever esse texto. Num certo momento, ele virou-se para mim e falou: “Mas espera aí, você não trabalha com a Primeira República?”. E eu respondi que sim, que era verdade, que o meu mestrado foi sobre a Primeira República e tal. “Então você pode escrever isso aí?”. Costumo dizer que o que aconteceu foi o seguinte: o Cássio estava suficientemente bêbado para me convidar, eu estava suficientemente bêbado para aceitar o convite. E no dia seguinte estava aceito. Foi assim que eu escrevi O vidente míope, meu primeiro livro, e depois desse eu escrevi com Alberto Mussa o Samba de enredo – História e arte (2010). E não é que também foi decidido num bar? A gente era e é muito amigo, adorava samba-enredo, cantava o tempo todo e um dia nos decidimos a escrever esse livro juntos. E aí a coisa foi deslanchando. Então, eu acho que a minha trajetória é um pouco Zeca Pagodinho no sentido de “deixar a vida me levar”.
CONTINENTE Mas o mesmo Zeca Pagodinho canta “camarão que dorme a onda leva”...
LUIZ ANTONIO SIMAS É isso! Agora, em relação ao meu trabalho com as ruas, aí sim, eu não tenho a menor dúvida: isso tem muito a ver com o fato de que eu venho de uma família muito rueira. Meu avô era pernambucano, aí do Recife, minha avó era alagoana, de Porto Calvo, terra de Calabar, mas foi adolescente para o Recife. Minha avó foi para o Recife para estudar, aquela coisa toda, e porque o pai dela, seu Jorge Paulino, arrumou um emprego lá. Ela conheceu meu avô e minha mãe nasceu no Recife, mas eu não sou pernambucano. Sou o primeiro carioca. Quando eles vieram para o Rio, a princípio, foram morar em Olaria, um bairro aqui do subúrbio. Meu avô foi trabalhar num aviário. Porque um primo dele, de Pernambuco, já trabalhava lá. Depois, conseguiram comprar uma casa em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde minha avó abriu o terreiro dela num lugar chamado Jardim Nova Era.
CONTINENTE Você morava com sua mãe e seu pai? E com seus avós também?
LUIZ ANTONIO SIMAS O que aconteceu foi o seguinte: minha avó abriu uma pensão em Laranjeiras, na Rua Pinheiro Machado, e quando meu pai e a minha mãe se separaram, eu era muito novo, tinha uns quatro anos, e fui morar com ela.
CONTINENTE Como é a composição da sua família? Pelo Twitter, vi que você tem um irmão flamenguista.
LUIZ ANTONIO SIMAS Eu tenho vários flamenguistas na minha vida! É o seguinte: do meu pai e da minha mãe, somos dois – eu e Alexandre. Aí a minha mãe teve mais três filhos no segundo casamento e meu pai teve uma filha do segundo casamento. Então, na prática, é meia dúzia.
CONTINENTE De volta à intersecção entre Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e Laranjeiras, na zona sul do Rio. Você foi morar com sua avó?
LUIZ ANTONIO SIMAS Sim. Fiquei entre Laranjeiras e a Baixada. Porque o que é que acontece? Minha avó tinha essa pensão em Laranjeiras e eu fui morar com ela quando eles se separaram. Não fiquei com a minha mãe e nem com meu pai. Sabe como é, né? Eram muito novos e tal, aquele casamento de gente nova, que vai dar merda. E deu. Aí eu fui morar com minha avó, eu e meu irmão. E ela tinha um terreiro em Nova Iguaçu, e a casa própria que ela comprou, e tinha essa pensão em Laranjeiras, onde, inclusive, atendia também alguns filhos de santo, jogando búzios etc. Entre as Laranjeiras e o Jardim Nova Era, era uma infância absolutamente rueira. Em Nova Iguaçu, eu jogava bola de gude, soltava pipa, caçava rã, pegava doce de Cosme e Damião. Quando comecei a trabalhar mais seriamente com História, a escrever livros, passei a me interessar profundamente por isso: pela reconstrução de uma certa história da rua do Rio de Janeiro, que aí tem muito a ver comigo, com a trajetória da minha família. Não tenha dúvida: eu fui educado pela rua.
CONTINENTE Sua avó é viva ainda? Seu pai e sua mãe também? Em um dos seus livros, acredito que no Umbandas, você conta que sua mãe também tinha parte com os terreiros. Foi algo herdado da sua avó?
LUIZ ANTONIO SIMAS Minha avó e meu avô são falecidos. Meus pais estão vivos, por aqui. E, sim, claro, minha mãe cresceu no terreiro porque minha avó, a dona Haydée, conhecida como Mãe Deda, fez santo muito nova, em Água Fria, aí em Pernambuco. Quando ela vem para o Rio, em 1963, funda o terreiro dela aqui na Zona Norte e vira a figura referencial da minha família. Ela era essa sacerdotisa, uma mulher que cuidava da comunidade, que botava comida na mesa da família com o trabalho dela, inclusive ligado ao terreiro. E minha mãe nasceu ali. Quando minha avó morreu, o terreiro fechou por muito tempo. Hoje, está reaberto, mas com outra condução. Quem toma conta dele é uma pernambucana também, Mãe Rose de Logun Edé, que toca a casa dela, com o axé dela, onde antes era o terreiro da minha avó. Que, quando chegou aqui no Rio de Janeiro, já abriu o terreiro e aí minha mãe nasceu praticamente lá dentro. Não teve jeito.
CONTINENTE Ela não teve muita opção?
LUIZ ANTONIO SIMAS É, não teve jeito. Mas tem uma coisa curiosa: quando a minha mãe era nova, o oráculo indicou que ela fizesse uma iniciação na encantaria. E aí ela foi iniciada por um pai de santo de encantaria, um paraense radicado no Rio de Janeiro chamado Santo Crioulo. A casa da minha avó absorveu essas influências do xangô pernambucano, da encantaria paraense e aqui do Rio de Janeiro, que é uma encruzilhada, um sarapatel desgraçado, onde tem a umbanda e a macumba carioca. E eu nasci nisso. Na verdade, as pessoas perguntam se eu acredito ou não nisso tudo, mas isso não é uma questão na minha vida. Eu não tenho recordações da minha vida longe do terreiro. Eu passava o fim de semana em terreiro, a semana no terreiro… Cresci comendo comida de santo, cresci vendo gente incorporada, conversando com caboclo… Cresci vendo pombagira e Exu na linha da encantaria das umbandas, vendo o crescimento do orixá tocando tambor. Isso, pra mim, não tem nada demais.
CONTINENTE Ouvindo você discorrer sobre aspectos que fazem parte da sua ontologia e também do DNA do nosso país, surge uma questão que tem muito a ver com os seus livros e com seu trabalho como historiador especializado na Primeira República: em que momento o Brasil se desconectou de toda essa herança? Estamos aqui, hoje, por causa dos povos originários indígenas, dos negros que chegaram escravizados e, claro, dessa imposição colonial que vem com os portugueses. Em Umbandas, por exemplo, você ressalta como houve um movimento para remover o legado africano da umbanda… Para fazer uma umbanda mais branca. Quando houve essa desconexão do Brasil com tudo isso que nos constitui? Foi na proclamação da República ou na constituição dessa ideia de estado-nação da era Getúlio Vargas? Ou, na verdade, sempre estivemos desconectados das nossas essências?
LUIZ ANTONIO SIMAS O Brasil é uma disputa. O Brasil é uma guerra. É uma rinha de galo. Acho que não houve uma certa desconexão, mas um embate permanente. O Brasil é construído a partir de uma invasão. Nós somos um país que teve quatro séculos de escravidão. Um país onde todas as pessoas, de alguma maneira, são relacionadas à herança escravocrata. Porque ou você é descendente de quem foi escravizado, ou você é descendente de quem escravizou ou você é descendente de quem veio para cá para substituir o escravizado. Então não tem muito para onde correr. O Brasil, como estado colonial, é um projeto de extermínio de indígena, é um projeto de domesticação violenta dos corpos, é um projeto de espoliação do solo. É isso: nós somos um empreendimento colonial. O que acontece é que o Brasil tentou, ao longo de sua história, construir, em determinados momentos, alguns consensos para ver se conseguia minimamente resolver essa questão… Que eu acho que é gravíssima. Nós somos um empreendimento colonial de morte. Isso está gravado na nossa história. O que espanta no Brasil é que, ao mesmo tempo em que esse empreendimento de morte vai se estruturando ao longo de séculos, nas bordas desse empreendimento de morte a vida foi sempre construída. A beleza foi sendo construída e foi construído pertencimento a um certo sentido encantado de mundo. Isso é um espanto, não é?
CONTINENTE Um espanto que vida e beleza tenham brotado em meio ao caos, à desordem, à violência?
LUIZ ANTONIO SIMAS Sim, um espanto. E é por isso que eu digo que nós vivemos em uma guerra entre o Brasil, entendido como esse projeto oficial, e a brasilidade, entendida como esse campo simbólico e de elaboração de sentidos e de mundo. Isso acontece num certo momento. Houve uma geração de brasileiros que imaginou, já no século XX, que era possível resolver o problema do estado-nação a partir de um grande consenso, não é? A mestiçagem cordial e o mito da democracia racial foram tentativas de pensar um Brasil consensual, que fundamentalmente privilegiava uma certa herança branca. Eu não tenho dúvida nenhuma em relação a isso, mas esses tensionamentos do Brasil são marcantes na nossa história. O que há agora é que, depois de um certo momento, isso se esgarça e nem esse projeto se sustenta mais. Veja bem, na transição do Império para a República, o branqueamento foi um projeto de Estado e o projeto de uma geração de intelectuais. Esse branqueamento não dá certo e aí você cai no campo da mestiçagem cordial, que é o campo do que eu chamo no livro Umbandas, que é o da inclusão subalterna: incluir o negro e o indígena dentro do processo de formação nacional, mas subalternizados pela ideia de que o branco, civilizatoriamente, era superior. Era mais requintado e sofisticado. E isso está aí, nessa guerra que está sendo jogada. O Brasil é isso: uma rinha. E acho que essa rinha continua, hoje, muito aflorada. E não tenha dúvidas de que há um embate entre o Brasil e a brasilidade. O grande espanto, o grande assombro para mim, é como você constrói nas frestas, nas brechas de um projeto de horror, de um projeto de morte, de um projeto de aniquilação, os sentidos de beleza. Porque sempre fomos isso, desde 1500: um projeto de morte e um empreendimento colonial voltado para a aniquilação.
Imagens: Monica Ramalho
CONTINENTE Simas, no seu perfil do Twitter tem uma espécie de epígrafe, que é uma fala de Beto Sem Braço: “O que espanta a miséria é festa”. Quem foi Beto Sem Braço? E, se formos pensar no Brasil agora, com a miséria física nítida nas milhares de pessoas que estão vivendo em situação de vulnerabilidade nas ruas; nos mais de 125 milhões de habitantes do nosso país em insegurança alimentar; e nas vítimas das tragédias que aconteceram no Recife com as chuvas de maio e junho; como é possível fazer uma festa dentro desse sentido de rinha, de disputa, de projeto de morte para espantar toda essa miséria?
LUIZ ANTONIO SIMAS Beto Sem Braço é um compositor já falecido. Não era um sambista, mas foi compositor da Unidos de Vila Isabel e do Império Serrano. Foi gravado pelo Zeca Pagodinho e por outros nomes do samba e foi parceiro de Almir Guineto e de Aluízio Machado. Foi, então, uma figura muito relevante da história do samba do Rio de Janeiro. Numa certa ocasião, ele disse isso: “O que espanta a miséria é festa”. Quando o Beto Sem Braço fala disso, eu acho que está falando de um tipo de festa. Primeiro, aliás, a gente precisa definir o que está sendo chamado de festa. A festa não é, evidentemente, o aniversário do meu filho, não é um churrasco com a turma… É, eu penso, a festa como uma construção de sentido coletivo da vida diante de uma individualização medonha da experiência de mundo que nos acompanha, não é? Nós vivemos uma experiência, sobretudo a partir da industrialização, nas sociedades industriais e aquele negócio todo, em que os projetos coletivos vão sendo atacados e vão murchando. De uma certa forma, a festa tem uma função social, de diluição do ser dentro da ideia de coletividade. Isso é fundamental. A festa é crucial para você entender, por exemplo, a cultura da diáspora. Porque toda diáspora, aí pensando de uma forma um pouco mais conceitual, é um empreendimento de aniquilação de comunidades. Qualquer uma. Se você vai pensar na diáspora judaica, se você vai pensar na diáspora negra ou pensar na diáspora cigana… A diáspora fragmenta, a diáspora desconstrói, a diáspora aniquila a identidade, sequestra a história e dissolve o sentido. E aí vem um negócio que eu acho impressionante: porque se toda a diáspora se fundamenta na destruição de laços comunitários e na quebra de identidade de uma rede de sociabilidade, toda a cultura diaspórica faz o processo inverso e reconstrói aquilo que foi aniquilado. Eu vivo numa cidade diaspórica. Porque o Rio de Janeiro é uma cidade marcada pela diáspora negra, que é a mais cruel, a mais terrível, sem dúvidas. Mas, ao mesmo tempo, somos uma cidade muito marcada, também, pela diáspora cigana.
CONTINENTE Sério? Que interessante essa observação. Não é algo muito alardeado quando se fala na constituição do Rio de Janeiro.
LUIZ ANTONIO SIMAS É porque a história dos ciganos é muito invisibilizada no Brasil. O Rio de Janeiro teve, sim, muito cigano. Muitos ciganos que vieram para cá fugiram do Santo Ofício português, por exemplo. A Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, chamava-se Campo do Cigano. É só você ver a umbanda e a macumba carioca. A umbanda tem uma capacidade de incorporar todo mundo que chegou, então tem a linha de cigano. Em bairros como Catumbi e Ramos, a presença cigana era muito forte. O Rio de Janeiro tem uma escola de samba, a Imperatriz Leopoldinense, que um dos grandes intelectuais de sua fundação, o doutor Oswaldo Macedo, era um médico cigano. E meu amigo Alberto Mussa acha que foi a presença do cigano que deu ao Rio de Janeiro as ideias de azar e sorte, que entranhou na alma da cidade. E, claro, o Rio é também uma cidade de diáspora nordestina, tendo sido capital federal até 1960.
CONTINENTE Em Umbandas, você conta a história de Zé Pelintra, que é uma entidade poderosa dos terreiros e figura recorrente nas lendas das macumbas brasileiras. Ele também seria um migrante nordestino, que saiu daqui de Pernambuco e foi até o Rio de Janeiro, onde incorpora as vestes e os trejeitos do malandro carioca, “após se encantar ou morrer (há controvérsias)”, como o livro pontua.
LUIZ ANTONIO SIMAS Ah, os muitos relatos contam que José de Aguiar, o seu Zé Pelintra, teria nascido ali, perto do Cabo de Santo Agostinho, e crescido em Afogados da Ingazeira. Depois, é que ele foi para o Recife, onde morou na Rua da Amargura, se apaixonou, sofreu de amor e de lá teria iniciado a sua peregrinação descendo do Nordeste até o Rio de Janeiro, cruzando Alagoas e aqueles estados todos. Tem o seguinte: na década de 1940, houve uma grande fome no Nordeste, com a seca. Muitos nordestinos, como seu Zé Pelintra, migraram para cá. Imediatamente, em 1945, é criada a Feira de São Cristóvão, perto da rodoviária. Uma feira que começou pequena, porque eram nordestinos que viviam no Rio de Janeiro e estendiam suas esteiras em barracas para vender produtos do Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de Alagoas, e daqui a pouco virou aquilo que, até hoje, é muito intenso na história da cidade. E que é uma grande festa.
CONTINENTE Nessa perspectiva, o Rio de Janeiro surge como uma grande encruzilhada, aberta à cultura de festas e frestas. Essa ideia de fresta, aliás, é algo que aparece em Pedrinhas miudinhas: Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros (2013) e depois segue em seus escritos, junto às festas, sempre.
LUIZ ANTONIO SIMAS A festa tem esse sentido agregador e me parece que todas essas culturas que formaram o Rio de Janeiro são muito festeiras. Na Praça Onze, por exemplo, tinha um bairro judeu onde acontecia um rancho carnavalesco e se cantava marcha-rancho em iídiche. O Ney Lopes tem um livro chamado O preto que falava iídiche (2018), que é sobre a mistura entre descendentes de africanos e judeus que vieram para o Brasil. Nós temos as polacas, que eram meninas judias que saíam do leste europeu e eram vendidas como escravas. O Rio, inclusive, tem um cemitério de polacas, porque elas eram discriminadas pela própria comunidade judaica e era difícil para elas terem enterro com a ritualística judaica toda. Então elas formam uma associação, compram um terreno e criam um cemitério. A diáspora destrói, aniquila e desagrega, mas a cultura da diáspora tem o sentido mais agregador de todos. Porque a festa reconstrói o sentido de coletividade. O cigano reconstrói a ideia da coletividade dançando em torno da fogueira. A comunidade judaica faz as suas festas… A comunidade descendente dos povos africanos também, com suas rodas de samba. A criação das escolas de samba está inserida nesse contexto do pós-abolição, da construção da sociabilidade dos pretos do Rio de Janeiro. Quando eu falo de festa, é nesse sentido mesmo, de construção de uma ideia coletiva de vida. Sim, essa festa espanta a miséria. E não só espanta a miséria financeira – porque você come e bebe na festa, você sabe o que está acontecendo com outra pessoa e vocês se ajudam e se organizam – mas a miséria existencial também, não é? Fundamentalmente, o que a festa diz é: você não está sozinho no mundo. Tem alguém ali festejando contigo. O sentido da festa é poderoso. É fabuloso. E aí é uma coisa que eu sempre falo: a gente festeja não porque a vida é boa, mas porque não é.
Em 2022, a Grande Rio foi a campeã do carnaval
carioca com um enredo que homenageava Exu.
Imagem: Guy Veloso
CONTINENTE Já que estamos falando de festa, sei que você entende o Carnaval não só como uma grande festa, mas como um ato político. No início deste ano, em suas postagens no Twitter, seus questionamentos foram contundentes com relação ao debate sobre se ia ter ou não os desfiles na Marquês de Sapucaí, em meio à preocupação com novas variantes e a Covid-19. Afinal, os estádios de futebol estavam abertos, tinha jogo, tinha missa, mas não podia ter Carnaval. Como você vê o simbolismo da folia nesse país de eterna disputa, uma disputa que tanto pode eclodir no Sambódromo como nos blocos de Olinda? De que maneira podemos perceber essa festa máxima que também é uma manifestação política muito transparente, não dessa política institucionalizada, mas da política das ruas?
LUIZ ANTONIO SIMAS Ao longo da história do Brasil, o Carnaval vai ser uma disputa. Está inserido num contexto em que você está disputando o próprio direito à cidade. Durante muito tempo, houve disputa entre modelos diferentes de carnaval. Você tinha, por exemplo, uma elite brasileira que emulava o Carnaval de Nice, na França, o Carnaval de Veneza, os bailes de máscara, os carnavais dos salões, aquele negócio todo. Ao mesmo tempo, você tem um Carnaval vigoroso que é o Carnaval de rua, não é? De larguíssima tradição, os entrudos, os blocos, os cordões, as associações carnavalescas, tudo o que você possa imaginar. E aí você vai ver, fundamentalmente, que o Carnaval não é uma festa de consensos, mas uma festa de disputas. Quando você está, por exemplo, tomando a rua no Carnaval, você está exercendo, em certo sentido, o direito de pertencer à cidade. É cidadania, não no sentido da cidadania liberal representativa. Não é isso. Eu não vou ter direito a nada nessa cidadania representativa. Ela foi negada no Brasil. A República, por exemplo, estabelece em sua primeira Constituição que o Estado não tem obrigação de educar ninguém. O analfabeto não vai poder votar. É uma exclusão total: você exclui do parlamento, você exclui da universidade, você exclui da escola e dos canais representativos institucionais. Agora, ao mesmo tempo, você vai construindo o pertencimento ao chão, a partir de diversas coisas e dentre elas, o Carnaval, que é essa festa de disputa pela cidade, pela cidadania e pelo direito de praticar o chão de uma maneira encantada. As pulsões estão ali. Não tem nada de alienado. Os carnavais da década de 1880 colocaram nas ruas a questão da abolição da escravatura. E os carnavais da década de 1980 colocaram a questão da redemocratização brasileira. Eu dei um salto proposital de 100 anos: na década de 1880, as ruas falam da abolição e na década de 1980, as ruas falam da volta da democracia. E me parece que aconteceu este ano uma coisa curiosa. Eu achava que a gente tinha que ter como prioridade o combate à pandemia, mas o que me assustou é que as pessoas, de repente, começaram a achar normal liberar qualquer coisa menos o Carnaval.
CONTINENTE Como se o vírus fosse circular somente no Carnaval…
LUIZ ANTONIO SIMAS A indagação que eu fiz publicamente, e inclusive fui muito xingado em rede social, chamado de tudo que você possa imaginar, era a seguinte: vem cá, pode ter show, pode ter rodeio, pode ter estádio de futebol, pode ter missa, com 20 mil pessoas numa catedral da fé da Igreja Universal do Reino de Deus, pode ter isso tudo, mas o Carnaval não pode? Ali havia um Brasil que aflorou naquele contexto, um Brasil que realmente demoniza o Carnaval. Que acha mesmo que o Carnaval é festa de gentinha, é festa de preto, é festa de pobre… é festa de bêbado, é uma festa que é inimiga do processo civilizatório. Todo esse preconceito aflorou de uma forma muito intensa. E aí o que eu dizia era “o Carnaval dá sentido à vida, à coletividade, é uma maneira de você disputar a rua”. E digo mais: se você quer saber como anda a sua cidade, vá no Carnaval. Porque o Carnaval é um sintoma poderoso da maneira como a gente se relaciona com o público, com a coisa pública, com o chão, com a cidade. Naquele contexto, fiz uma defesa realmente ardorosa do Carnaval e continuo defendendo. Acho que o Carnaval é absolutamente fundamental dentro da construção do nosso processo civilizatório. E para provocar, porque as pessoas usam civilizatório com um sentido tão preconceituoso, eu gosto de dizer que fui, por exemplo, um sujeito civilizado pelo Carnaval.
CONTINENTE Você acha que esse recorte de classe está presente em tudo no Brasil, não só no Carnaval, mas também no futebol, que é uma seara que você frequenta, comenta, discute? “O futebol é o ópio do povo” é uma frase usada como se as massas de torcedores, de quem vai para os estádios, pudessem ser manipuladas. No Brasil, existe essa clivagem entre o que seria uma cultura erudita e aquilo que pertenceria a uma cultura popular? E aí poderíamos colocar futebol, Carnaval e tudo que não seria merecedor de uma análise mais crítica?
LUIZ ANTONIO SIMAS Eu acho. Sou um sujeito, por exemplo, que me apavoro com essa distinção entre cultura erudita e cultura popular. Até porque eu acho que a cultura circula, então, o que há é uma circularidade. A cultura é encruzilhada. Não é o lugar da cultura, é um lugar da encruzilhada. Esse discurso foi produzido no Brasil e é muito curioso que a clivagem é óbvia: uma clivagem de classe, cor e raça. Porque ela parte do princípio de que os elementos da cultura europeia são elementos de padrão civilizatório, mais requintado e sofisticado, e os elementos das culturas não brancas são bárbaros. Às vezes, tem gente que sente, por exemplo, pelos elementos das culturas não brancas algo que me deixa apavorado, que é uma coisa que eu detesto, mas que é uma certa simpatia pitoresca. Acho terrível.
CONTINENTE Seria uma espécie de curiosidade antropológica, folclórica?
LUIZ ANTONIO SIMAS Sim, sim. É aquela pessoa que olha e pensa “como aquilo é interessante” e merecedor da sua simpatia pitoresca. E aí eu prefiro trabalhar até com “simpatia” mesmo, não com curiosidade. Porque o cara vai na roda de samba com sua simpatia pitoresca. E ele vai ver o maracatu, um jongo, vai pro terreiro e leva sua simpatia pitoresca. É terrível e complicado. Mas existe isso, essa clivagem… Não tenho dúvida nenhuma. E o que as pessoas não entendem é que o futebol e a canção popular foram dois meios fundamentais que as classes subalternizadas pelo nosso processo histórico encontraram para ter algum tipo de ascensão social. O processo de popularização do futebol e da canção popular brasileira, no campo da música, são fundamentais para a gente entender muita coisa importante. Mas não tem jeito, nós somos feitos disso, dessas contradições. Porque a cultura da gente é extremamente sofisticada, instigante, e cumpre o papel determinante da cultura, que é nos dar sentido simbólico e uma ideia de pertencimento. Mas nós temos um Brasil que é o da dependência de empregada e da sala de estar, que acha que existe uma alta cultura e uma baixa cultura. Isso me deixa estupefato e chocado.
CONTINENTE Tem uma expressão que aparece no Umbandas que é bem interessante, sobre essa contradição de ser brasileiro, como se o país fosse veneno…
LUIZ ANTONIO SIMAS Veneno e remédio. O povo de santo fala muito disso sobre as plantas. Numa mesma folha, moram um veneno e um remédio. Eles são irmãos. O Brasil é o que me envenena, mas é o que me cura. Até porque não tem outro jeito.
CONTINENTE Em Um corpo encantado das ruas, você faz a defesa da rua como o espaço em que podemos nos fantasiar, empinar pipa, jogar bola, chorar as derrotas do futebol. Mas vivemos em um país que, por ser veneno e remédio, também aperfeiçoou uma arquitetura do medo, No Recife, por exemplo, os prédios são construídos com seus muros altos, sem permeabilidade com o espaço público, e as praças não têm iluminação adequada. É quase como se a cidade estivesse dizendo “não vão para as ruas”. Você acredita que estamos reocupando as ruas nos últimos anos, com ações e movimentos para se contrapor a isso tudo, ou a rua ainda precisa ser redescoberta?
LUIZ ANTONIO SIMAS Eu acho que a rua é mais um espaço de guerra e de disputa pelo país. Por quê? Porque você tem, pelo menos, duas concepções muito óbvias da rua que marcam a história das cidades contemporâneas: aquela que encara a rua como um ponto de passagem, de circulação de mercadoria, de corpos domesticados para o trabalho, e aquela que vê a rua como lugar de encontro e de construção de sentido para a vida. A demonização da rua é marcante na História mesmo. Está em tudo quanto é lugar. Você vai lá estudar Idade Média e vai ver como a feira, como o mercado, assustava e assombrava. A rua é esse lugar de espanto. Porque a rua exusíaca, que é um conceito que eu criei lá atrás, é o lugar do inesperado. A tentativa evidente de domesticar a rua é uma tentativa de controlar os corpos que transitam pela rua. E aí entra de novo o sentido da festa, entra de novo o sentido do Carnaval, do samba e de você estar nas ruas. E eu falo da rua, de rua mesmo, até porque, às vezes, uma praça é uma instância muito domesticada das cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, tem praça que numa certa época tirou o banco para que as pessoas não dormissem ali. E você pega as cidades verticalizadas demais. Daria pra contar a história de uma cidade pela circulação das pipas. Mas onde tem muito prédio alto, a pipa vai morrendo, não é? É interessante ver, por exemplo, praças e cidades que não são pensadas a partir da lógica da criança. E se a cidade não é pensada por essa lógica, mas pela lógica da circulação de mercadorias, da lógica do capital, é uma cidade inimiga da força da rua, inimiga da construção dos sentidos da vida. O preocupante é que hoje você tem uma molecada que está soltando pipa em aplicativo, que está aprendendo a jogar porrinha, aquele jogo do palitinho, em um aplicativo. Será que já tem aplicativo para jogar bola? O negócio é complicado. Mas eu acho que estamos na disputa, sim, pelo reencantamento da rua. A rua é fundamental.
As vivências no espaço público são, para Simas, formas de resistência, política, afetiva e cultural. Imagem: Folhapress
CONTINENTE A rua e seus encantos são elementos recorrentes em sua obra.
LUIZ ANTONIO SIMAS Sim. Se você pegar todos os meus livros, toda a minha obra publicada nesses quase 20 anos, aliás, até um pouco antes, pois eu já tinha publicado artigos anteriores, o elemento que perpassa tudo é a rua. Sou um estudioso das culturas de rua. Desde o primeiro, sobre J. Carlos, eu puxo pra rua; falo do Carnaval, que é uma cultura profundamente ligada à rua; a maneira como eu enxergo o futebol é como enxergo a arquibancada e o ato de torcer, que é muito ligado à rua. As crenças, a fé, as festividades presentes na rua... E o que acontece é que eu já tenho muita coisa pesquisada. Por exemplo, o livro que lancei agora se chama Santos de casa – Fé, crenças e festas de cada dia porque faz uma brincadeira com o fato de que nós trouxemos um espaço da rua, do institucional, da igreja, para dentro da gente. E se você me perguntar quando eu comecei a escrevê-lo, vou responder: lá quando tinha 16 ou 17 anos de idade e comecei a preencher muito caderno. Sempre tive o hábito e a curiosidade de anotar, de escrever. Hoje, escrevo direto no computador, mas a anotação é toda à mão. Muita coisa que entrou no Almanaque Brasilidades - Um inventário do Brasil popular (2018) veio dessa época também. Anotei, com meus 17 anos, uma coisa que meu avô e minha avó diziam: a fogueira de Santo Antônio é uma fogueira que tem que ser quadricular, a base quadradinha, já a fogueira de São Pedro é de base triangular e a fogueira de São João, de base ovalada. A minha avó dizia que as pessoas estavam esquecendo as coisas e não sabiam mais nem fazer uma fogueira para São João, nem para Santo Antônio, em suas casas. O curioso é que, em Santos de casa, a casa desse título não é a casa onde nós estamos; é você, é o santo de casa, é o santo que é seu, que você traz para perto de si. E isso é muito marcado nas celebrações de rua, nas quermesses, nos encontros. Me interesso profundamente por tudo isso.
CONTINENTE Atualmente, no Brasil, estamos atravessando uma confluência de vários fatores que nos levam a pensar a disputa pela rua, também, pela perspectiva da campanha eleitoral. Tivemos, como vencedor do Carnaval carioca, o enredo sobre Exu, o orixá das encruzilhadas. Vemos agora a volta dos festejos nas cidades à medida que caem as medidas restritivas de circulação. E a eleição presidencial vai levar milhares às ruas. Você percebe o ano de 2022 como crucial para essa travessia brasileira?
LUIZ ANTONIO SIMAS É um ano crucial até para a gente tentar entender se o país é minimamente viável ou não. Porque o que o Brasil está vivendo – e muita gente fala do fascismo, etc e tal – é uma mistura disso com o colonialismo. É um governo que traz toda a bagagem do horror colonial encarnada na figura do presidente e daquele núcleo fanático e fundamentalista em torno dele. É o Brasil da concentração de renda, do racismo, do preconceito religioso, da extremíssima violência… É o Brasil que, no fim das contas, aniquilou corpos, é o Brasil do genocídio indígena, do cativeiro dos pretos, esse Brasil horroroso que aflorou de uma forma intensa, chegou ao poder e não será derrotado nas eleições de 2022. Nas próximas eleições, circunstancialmente podemos mudar de presidente e tomara que mudemos. Agora, uma derrota eventual de Jair Bolsonaro não é a derrota do bolsonarismo, não é a derrota de um certo fascismo tupiniquim e da colonialidade encarnada na figura abjeta do presidente. Esse é o nosso enfrentamento: isso não vai passar com as eleições. O que me deixa mais espantado, e digo isso no sentido quase de brincadeira, é que nós temos uma parte considerável da elite brasileira que abraçou o presidente porque ela é igual: racista, preconceituosa, sexista, adepta da violência, da arma, do tiro e da aniquilação da escolha. O próprio Jair Bolsonaro, por sinceridade, vamos admitir que é um presidente que está cumprindo rigorosamente tudo o que se esperava. Outra coisa não poderia vir do jeito que ele vem de uma longuíssima trajetória de defesa de tortura, da aniquilação, do assassinato e do genocídio. Na presidência, ele é o que sempre foi.
CONTINENTE Antes da eleição de outubro, vamos “comemorar”, talvez entre aspas mesmo, o bicentenário da Independência do Brasil, essa efeméride de setembro. Como professor de História, que sabe que as datas existem também para serem revisitadas, qual seria uma celebração ideal, na sua opinião, à altura da complexidade entrópica que é o nosso país?
LUIZ ANTONIO SIMAS Seria um “descomemoração” da Independência do Brasil. Quem gostava disso era meu grande mestre, o historiador Joel Rufino dos Santos. Chegou uma época na vida dele que o Joel começou a fazer “descomemorações”. Ou seja, usar uma comemoração para fazer uma autópsia desse processo. Acho que a gente podia fazer uma belíssima “descomemoração”. Porque, falando nesse barco oficial, eu já vi, por exemplo, que aqui no Rio de Janeiro estão programando algumas coisas ridículas. Vão lavar a estátua de Dom Pedro, teve gente querendo trazer o coração de Dom Pedro de Portugal para cá… Isso é um negócio absurdo. Mas, falando sério, além da “descomemoração”, temos que recuperar a luta popular brasileira: a Batalha do Jenipapo, do povo do Piauí e do Ceará, o Dois de Julho baiano e o que ele tem de fundamentalmente popular, os movimentos que lutaram por uma independência completamente diferente, como a Revolução Pernambucana de 1817 e Conjuração Baiana de 1798. E assim trazer à baila, nesse contexto, a História do Brasil a partir de um viés de luta popular. Eu não acredito em isenção na História. Faço História engajada com um processo de transformação social. Não sou positivista reprodutor de mito, que vai dizer: “Olha, no dia 7 de setembro, Dom Pedro montou no cavalo, fincou a espada e gritou e não sei quê e tal”. Que independência foi essa que preservou a concentração de renda, a concentração fundiária e a escravidão? O nosso processo oficial de Independência pode ser definido por aquela frase do Lampedusa, do romance dele O leopardo: às vezes você muda duas ou três coisas para que tudo fique da mesma forma. A nossa Independência tem isso. E acho que, na verdade, temos que ir para uma “descomemoração” e tentar amplificar as vozes que, ao longo da História do Brasil, pensaram um país mais justo, em um processo de transformação social. Tudo isso tem que ser dimensionado. Porque, pelo que tem aí, estou prevendo um show de horrores.
Imagem: Monica Ramalho
CONTINENTE Tem uma frase sua que diz: “A função da História não é a de abraçar os mitos, mas dissecá-los com certa frieza de legista”. Esse mito da Independência do Brasil caberia aí, não?
LUIZ ANTONIO SIMAS Totalmente. A independência que acaba com o colonialismo, mas não acaba com a colonialidade. Porque o colonialismo é um fenômeno datado, mas a colonialidade é uma assombração que nos persegue até hoje.
CONTINENTE Por último: se você tivesse que escolher um orixá, um encantado ou uma dessas entidades para nos reger não apenas nessa “descomemoração”, mas em tudo que está por vir, como a eleição de outubro e o Carnaval de 2023, quem seria?
LUIZ ANTONIO SIMAS Ah, seria um Exu, mas nem seria o Exu orixá, claro, mas um Exu Tranca Rua das Almas, o capitão da encruzilhada, o ordenança de Ogum… Uma entidade absolutamente poderosa, que sabe os caminhos que têm que ser abertos e aqueles caminhos que precisam ser fechados. Uma entidade que, ao mesmo tempo que pode ser muito zombeteira e brincalhona, pode ser muito rígida. Eu acho que a gente deveria se abrigar debaixo da capa do Seu Tranca Rua das Almas, o capitão da encruzilhada.
LUCIANA VERAS, jornalista, repórter especial da Continente.
MONICA RAMALHO, fotógrafa.