Reportagem

O brega é nosso!

À revelia da historiografia hegemônica e na luta por espaços de legitimação, gênero se afirma em Pernambuco e amplia alcance nacional a partir da produção que sai do Grande Recife

TEXTO Antonio Lira

01 de Julho de 2022

A cantora Eliza Mell em show no Conchittas Bar, no Recife

A cantora Eliza Mell em show no Conchittas Bar, no Recife

Foto Dondinho

[conteúdo na íntegra para degustação | ed. 259 | julho de 2022]

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O relógio apontava cerca de duas horas da manhã de uma segunda-feira quando Eliza Mell e sua equipe chegaram ao Conchittas Bar, no Bairro da Boa Vista, no Recife. Nessa região central da cidade, à Avenida Manoel Borba, foi fundado, há 20 anos, o Club Metrópole, hoje cercado por bares e casas de shows destinados ao público LGBTQIAP+. A equipe da Continente estava em contato com a fotógrafa Emília Santos, assessora de comunicação, coordenadora da equipe da artista e também sua companheira. Ela ficara de nos avisar quando chegassem ao local da apresentação, para realizarmos a entrevista. O que acabou não sendo necessário, pois a chegada de Eliza, já bastante aguardada pelo público, pôde ser notada por todes que estavam nas calçadas da Manoel Borba.

A equipe vinha de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata, para o último show do fim de semana, após enfrentar uma maratona de seis apresentações que haviam começado na sexta-feira. Mesmo após uma semana com agenda cheia, Eliza não deixou de dar atenção aos fãs e, por conta da alta demanda gerada pelo carinho deles, combinamos de fazer a entrevista depois da apresentação.

Ela tinha cinco anos quando a música entrou em sua vida. Na época, começava a cantar na igreja e, desde então, é uma arte que faz parte do seu corpo, que está no seu sangue. Ainda na infância, sintonizando o rádio da casa de sua família, no Alto da Bondade, em Olinda, escutou pela primeira vez a voz da cantora norte-americana Whitney Houston. E se apaixonou. Até hoje, a diva Whitney, ao lado de Celine Dion e Mariah Carey, faz parte do conjunto de suas referências artísticas e memórias afetivas.

Quando decidiu seguir outros caminhos na carreira, que não o da música religiosa, a cantora Eliza se apresentou com o grupo de pagode Trasamba, com os cantores Jorge de Altinho e Beto Barbosa, até receber, em 2001, o convite para ser a voz da Brega.com. Foi nessa banda, cujos membros moravam no mesmo bairro dela, que a artista gravou Ânsia. A icônica composição de Esdras Azevedo já ganhou diferentes versões, como a da Companhia do Calypso, a da Calcinha Preta e, mais recentemente, alçou destaque no cenário nacional nas vozes de Gloria Groove e Pabllo Vittar. Até hoje, no entanto, a versão mais emblemática ainda é a que carrega a voz – e o gogó – de Eliza Mell.

Junto a outras canções que estouraram no início dos anos 2000 nas rádios, carrocinhas de disco e programas de auditório da Região Metropolitana do Recife – como Amor de rapariga, Baby doll e Milk shake –, Ânsia marcou o início de uma revolução na música brega que vinha sendo feita há décadas em Pernambuco. Se, por muito tempo, ouvíamos histórias de romances e traições cantadas nas vozes de homens, agora seria a vez de as mulheres cantarem essas mesmas histórias, sob suas próprias perspectivas.

Após o show daquela madrugada, Eliza respondeu nossa pergunta sobre o que, em sua opinião, havia mudado para artistas do brega em Pernambuco com a aprovação da lei nº 16.044/2017, que reconhece o gênero como Expressão Cultural Pernambucana no Estado de Pernambuco. “Com a pandemia, a gente ainda não viu acontecer nada. A gente está esperando que aconteça. Espero que aconteça. Prometeram, né? Espero que coloquem a gente na maior festa. Porque o brega não tem fase. ‘Ah, é só esse mês, é só em fevereiro, o brega é só em junho.’ Não, o brega é o ano inteiro. Então, espero que, em todas as festas importantes, o brega esteja. Não só com artistas grandes, que estejam com muitos streamings e muitas visualizações. Espero que a gente também, que está aqui desde sempre, esteja lá, com o nosso lugarzinho garantido.”

Naquela mesma semana, em um dos restaurantes à beira do Rio Capibaribe, próximo ao Marco Zero do Recife, foi a vez de a Continente conversar com ele, que é um dos principais expoentes da cultura brega no estado, há mais de duas décadas: o Conde Só Brega. Cantor e compositor de clássicos do cancioneiro desse gênero, como A vida é assim, Azafama, Estrela e Não devo nada a ninguém, Ivanildo Marques da Silva ganhou o título de Conde de sua avó. Desde sua infância até hoje, o artista mora no Bairro da Mustardinha e, antes de o brega fazer parte de sua carreira, ele passou pelo forró e pelo rock. Deste último ritmo, além da atitude, ele guarda as influências do pedal distorcedor “agressivo e limpo” que o tornou fã do guitarrista mexicano Carlos Santana, uma de suas referências ao lado de Jimi Hendrix, Kiss e Led Zeppelin.

“Na época em que tocava rock, eu era muito ‘doidão’. Quando dava vontade, eu fazia o que queria. Às vezes, pintava o cabelo de vermelho, azul, amarelo; às vezes, eu ia num cara e mandava fazer uma bota até o joelho. Gostava de andar como eu queria mesmo, como eu gostava. As pessoas ficavam olhando assim e falavam, mas eu não estava nem aí. Não devo nada a ninguém mesmo. A minha vida é livre, eu faço o que eu quero dela. E aí eu fiz essa música”, conta-nos o artista sobre a composição de A vida é assim. O riff de guitarra conhecido pelo público e característico da canção também foi pensado por ele, que sempre decide, em conjunto com sua banda, como devem ser executadas as suas músicas.

De “sangue nordestino”, para usar suas próprias palavras, o Conde deu recentemente espaço ao seu lado forrozeiro, tanto em seu DVD Livre pra voar, no qual teve a oportunidade de cantar com o poeta Petrúcio Amorim, quando na virada do ano de 2021 para 2022, em uma participação no show de João Gomes – um dos expoentes da nova geração do piseiro. Mesmo estando numa importante fase de reconhecimento de sua carreira, ele ainda lamenta a quantidade de artistas que viu desaparecerem ou serem esquecidos durante seus anos de estrada. Em nossa entrevista, após fazermos as fotos no Marco Zero, ele nos revelou que tem planos para realizar um show ao ar livre por ali, com os artistas da velha guarda. “Para que eles voltem a se sentir bem. A pior coisa para o artista é quando ele teve uma fase de sucesso e, de repente, se vê esquecido, pela imprensa escrita, falada, por tudo”, afirma o artista.


Com mais de 20 anos de carreira, Conde Só Brega é referência no gênero.
Foto: Dondinho


A dupla Ziane Martins e Ellysson Marques, da Banda Sentimentos.
Foto: Dondinho

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Em 2018, Emerson Ferreira da Silva, o MC Tocha, foi o primeiro artista de brega funk a tocar no palco do festival Rec-Beat, um dos polos da música alternativa e indie do Brasil, que acontece todo ano, durante o carnaval do Recife. O ritmo, que nasce de uma mistura entre o funk carioca e o brega romântico cantado há décadas em Pernambuco, tem em Tocha um dos seus pioneiros e, hoje em dia, costuma ser acompanhado pelos movimentos frenéticos e intensos do Passinho dos Maloka. Tanto a batida do brega funk quanto os movimentos da coreografia do passinho ganharam o Brasil e, atualmente, influenciam a obra de diversos artistas de expressão nacional.

Em entrevista ao Bregoso Cast, podcast do Brega Bregoso – perfil nas redes sociais dedicado ao estímulo e à divulgação da cultura brega na internet –, Tocha contou que decidiu virar artista quando ainda era jogador das categorias de base do Santa Cruz. Nascido e criado em Jardim Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, a música entrou na sua vida por hobby. “Era a época do Fotolog, MSN, e eu já mandava uns funkzinhos na comunidade. Primeiramente, a pessoa tem que conquistar a sua comunidade. (…) Daí, fui conquistando Jardim Piedade, Piedade, Candeias...”, explica.

Mesmo de contrato assinado com o tricolor pernambucano, o destino do garoto não era mesmo o futebol. Após gravar a guia de Me perdoa amor, Tocha divulgou seu primeiro brega ainda no MSN, antes mesmo de a guitarra ser gravada – e contra as recomendações de seu produtor. A resposta veio e, em pouco tempo, ele já era sucesso na sua comunidade, na zona sul e no Grande Recife inteiro.

Numa noite bastante especial do último mês de maio, Tocha foi um dos convidados da Banda Sentimentos para uma participação na gravação de seu DVD no Classic Hall, na divisa entre o Recife e Olinda. Lá, ele conversou com a Continente, logo após a sua apresentação solo. Mesmo tendo sua carreira associada ao desenvolvimento do brega funk, junto a nomes como Leozinho do Recife, Shevchenko e Elloco, MC Troia, Cego, Sheldon, Metal, Dadá Boladão, MC Loma, Rayssa Dias e outres, ele faz questão de lembrar que seu primeiro hit foi uma música romântica.

“Vou pela bandeira do brega, do brega funk, da minha origem. (…) A gente sabe que o brega tem potencial, estamos lutando pra isso. Nunca dizemos que estamos perto, mas também nunca vamos dizer ‘nunca’. Então, se estivermos perto, se pudermos usar o se, se eu posso usar o se, que seja amanhã. Se for amanhã, estaremos preparados”, diz Tocha. Mesmo dando destaque ao brega romântico na nova fase de sua carreira, ainda há espaço na sua apresentação para o brega funk, um pouco de swingueira e até mesmo para o manguebeat, já que A praieira, famosa canção de Chico Science & Nação Zumbi, fez parte do repertório de seu show. Assim como o brega e o brega funk, ele afirma que o gênero “é o nosso ritmo, então, eu tenho que seguir sempre”.

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Há muitas décadas, em bailes de gafieira, clubes de dança nos morros, boates e inferninhos que agitam a noite da Região Metropolitana do Recife, teve início um movimento que tinha muito de música, mas não só. Era sobre um estilo de vida, mas também sobre algumas possibilidades. De viver de música, de falar de amor da maneira que fosse a mais sincera possível, de fazer chorar, cantar, sorrir, delirar e dançar. De transcender as narrativas impostas a alguém que nasce em regiões periferizadas do Recife, a capital mais desigual do Brasil, de acordo com levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2020.

Se você viveu no Nordeste nas últimas décadas, é provável que já tenha tido a sua vida atravessada pelos versos e canções eternizadas nas vozes de Eliza Mell, Conde Só Brega, MC Tocha e outros nomes, já que essa música transcende as fronteiras do Grande Recife, do estado. Seja nas carrocinhas, nas vitrines de lojas de departamento, nos programas de auditório locais, nas caixinhas de som espalhadas pelo transporte público e pelas praças, no som que vem da casa dos vizinhos, nas festas populares, bailes de casamento e formatura, nas boates noturnas, nos discos de Pabllo Vittar e Alice Caymmi e nas referências sonoras e estéticas de artistas como Johnny Hooker, Duda Beat e mesmo Anitta, é quase impossível passar imune a essa música produzida em Pernambuco.

Em 2017, graças à aprovação da lei nº 16.044/2017, o brega foi reconhecido enquanto Expressão Cultural Pernambucana no Estado de Pernambuco. Essa categorização, criada em 2012 através da lei nº 14.679/2012, inclui gêneros como o frevo, a capoeira, o cavalo-marinho, a ciranda, o maracatu, o coco, o forró, o manguebeat e determina que, em eventos realizados em convênios das prefeituras com o governo do estado – a exemplo do São João, do Carnaval e do Festival de Inverno de Garanhuns –, 60% da programação tem que fazer parte daquilo que o estado considera “expressões artísticas pernambucanas”.

A aprovação da lei, em 2017, está inserida em um contexto de debates iniciados a partir da publicação, já nos últimos dias de 2016, da convocatória do carnaval de Pernambuco do ano seguinte. No edital, lançado pela Secretaria de Cultura (Secult-PE) em parceria com a Secretaria de Turismo e Lazer (Seturel), poderiam ser aceitas propostas nas seguintes categorias: cultura popular (com 30% das vagas), música e dança da tradição carnavalesca (com 40% das vagas), orquestras de frevo (com 10% das vagas) e música popular brasileira (com 20% das vagas). A decisão gerou embates entre artistas, produtores culturais e intelectuais que, nas páginas do Diario de Pernambuco, se posicionaram sobre o texto e, mais especificamente, sobre a exclusão do edital de gêneros como o forró eletrônico, a swingueira e, é claro, o brega.

À época, o então secretário de Cultura de Pernambuco defendeu a escolha, afirmando que se tratava de uma “decisão política do Estado”. O governo e pessoas que defenderam a medida argumentaram, entre outros pontos, que era necessário prestigiar “a cultura popular da terra” e músicas que eram “menos tocadas nas rádios”. Mesmo que os responsáveis pela decisão tenham afirmado não se basear em critérios de “juízo de valor” sobre a qualidade de uma ou outra manifestação cultural, o debate foi aberto. Afinal, o brega faria ou não parte da “cultura popular” de Pernambuco e, portanto, seria merecedor de receber atenção das políticas públicas estaduais? Outros argumentos também surgiram no sentido de dizer que essa música tinha letras que eram pornográficas, machistas e estimulavam a violência e, portanto, não deveriam estar nas programações oficiais de eventos organizados pelo estado.


A cantora Palas Pinho, voz do hit Amor de rapariga.
Foto: Felipe Souto Maior/Secultpe-Fundarpe

Apesar de ter grande expressividade em nossa cultura, a música brega não é exclusividade de Pernambuco. Ela, na verdade, é um dos um dos grandes incômodos da historiografia da música popular brasileira, algo que vem desde a sua origem, quando se decidiu classificar um determinado tipo de música como “brega”. Afinal de contas, o que seria uma música brega? E quem define que uma música é brega? Se jogarmos o termo no dicionário, temos as seguintes respostas: de acordo com o Michaelis, brega seria um termo coloquial e pejorativo que designa “aquele que não tem maneiras elegantes ou revela pouco refinamento e mau gosto; cafona”. Também é sinônimo de kitsch, vocábulo atribuído a “objeto, geralmente de decoração, ou de expressão artística de gosto duvidoso, tendendo ao ridículo e ao exagero”.

Para o jornalista e historiador baiano Paulo Cesar Araújo, no livro Eu não sou cachorro, não: Música popular cafona e ditadura militar (Record, 2002), a palavra brega começa a ser utilizada, de forma vaga, para se referir a uma determinada geração de cantores e compositores de sucesso nos anos 1970, em sua maioria oriundos das classes populares. A escolha do tema de pesquisa, que originou sua tese de doutorado, na qual se baseia seu livro, foi motivada pela surpresa do autor ao entrar na universidade e perceber que todas as discussões sobre a música popular brasileira costumavam ignorar cantores como Odair José, Waldick Soriano e Amado Batista, privilegiando, em vez disso, a obra de artistas como Caetano Veloso, Elis Regina, Chico Buarque e Milton Nascimento.

As composições desses cânones da MPB são, sem dúvida, representativas dessa época, mas eram consumidas por “um segmento mais restrito de público”, de classe média, muitas vezes universitária, como indica o autor. Enquanto isso, eram consumidos em massa, pelos segmentos mais populares, sucessos como Vou tirar você desse lugar (Odair José, 1972) e Eu não sou cachorro, não (Waldick Soriano, 1972). Essas canções – e seus artistas – eram lidas por certa crítica cultural e certa intelectualidade universitária como obras de baixo valor artístico, muitas vezes nem mesmo sendo consideradas dignas de serem objetos de pesquisa. E da mesma forma que, durante a época em que esses artistas ocupavam o topo das paradas tentou-se deslegitimar a qualidade artística e o valor de suas obras, Paulo Cesar Araújo percebeu – ao analisar publicações que se referem à música popular produzida no Brasil, nos anos 1970 – que a história da música brasileira vai ser contada à revelia desses cantores.

Mas as histórias daqueles artistas bregas, extremamente contraditórios, que conquistavam o coração das massas falando de amor de um jeito muito direto e particular, dizem muito sobre um daqueles Brasis que a intelectualidade branca, universitária e oficial parece, ainda hoje, não enxergar. A potência da obra de Paulo Cesar Araújo é expor justamente o quanto da historiografia musical brasileira é construída socialmente de forma que “privilegia a obra de um grupo de compositores preferido das elites, em detrimento da obra de artistas mais populares”, para utilizar as palavras do próprio autor.

Investigar os silêncios e as ausências da música brega dentro daquilo que um dia foi chamado de “linha evolutiva da música popular brasileira” permite que compreendamos um tanto das assimetrias sociais e raciais que compõem a nossa sociedade (e a nossa memória). Talvez as dificuldades que parte da intelectualidade tenha em lidar com essa música evidenciem também o abismo entre os valores das elites culturais e as massas.

Foi partindo de reflexões bastante parecidas com as do historiador baiano que Thiago Soares, jornalista, professor e pesquisador pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE), resolveu compilar alguns escritos produzidos entre os anos de 2005 e 2016. Esses textos – junto a um ensaio fotográfico de Chico Ludermir – compõem o livro Ninguém é perfeito e a vida é assim: A música brega em Pernambuco (2017). Durante esse período, Thiago conciliava a conclusão de sua formação na pós-graduação, o trabalho na editoria de cultura do jornal Folha de Pernambuco, a docência e o ofício de DJ em festas como a Maledita.

No primeiro capítulo do livro, intitulado Incômodos e políticas da música brega, ele discute a existência de “um certo silenciamento da musicalidade bregueira” por parte das políticas culturais do estado e dos municípios. De acordo com o pesquisador, através de uma política cultural edificada, a partir dos anos 2000, em torno de uma ideia de “Pernambuco Nação Cultural”, cria-se uma tendência na qual críticos de cultura, mediadores políticos e jornalistas parecem tratar a música produzida em Pernambuco como um gênero. Esse movimento é, de acordo com ele, similar ao que acontece no cinema produzido no estado que, mesmo com narrativas, gêneros e estilos diferentes, é colocado na retranca ampla do “cinema pernambucano”.

Num trecho do capítulo, o autor discute essa questão: “A música chamada ‘de Pernambuco’ é aquela circunscrita a tradições hegemônicas nas políticas públicas de incentivo à cultura e também ‘eleita’ por conselhos e mediadores comunicacionais, uma certa música que reconhece no folclórico e num certo tipo de cultura popular algo que pode formatar uma noção identitária”. Para o pesquisador pernambucano, era sintomático que, em festivais e coletâneas dedicados àquilo que era chamado de “música de Pernambuco”, o brega estivesse ausente.

Em entrevista concedida por telefone à Continente, Thiago nos revelou que, na época do lançamento de seu livro, foi questionado sobre a necessidade de se escrever sobre a “música brega em Pernambuco”, já que o brega não seria algo somente pernambucano, e, sim, um fenômeno nacional. Para o autor, a crítica foi importante, pois serviu para que ele amadurecesse sua ideia de que era preciso entender o que acontecia em Pernambuco para que a música brega assumisse, por aqui, uma estética bastante característica, que a diferenciava de outras expressões do gênero no nível nacional. O que tornava necessário que se realizasse um trabalho específico de mapeamento e pesquisa para entender essas particularidades.

A partir da sua experiência como editor do suplemento cultural Revista da Folha, em que realizava reportagens e coberturas relacionadas à cena brega local, ele propôs uma divisão do gênero produzido no estado em três momentos ou “eixos estéticos”. Um primeiro centrado na figura do homem romântico e galanteador, que canta as histórias de suas desilusões amorosas e que tem como principal expoente o cantor e compositor Reginaldo Rossi. O segundo tomaria forma no início dos anos 2000, quando a Banda Calypso fixa residência no Recife, dada a sua localização estratégica no centro da Região Nordeste. A partir desse momento, surgem as primeiras bandas de brega com vozes femininas, trazendo para o ritmo de Pernambuco uma forte influência caribenha, que é característica da música do Pará trazida com a Calypso, por exemplo. Já o terceiro momento seria o brega funk, que se consolidou a partir dos anos 2010, misturando-se ao funk carioca, sendo centrado na figura dos MCs.

Dentro dessas diferentes estéticas, havia em comum, no entanto, associações a lógicas mercadológicas hegemônicas, inspiradas na indústria da música pop internacional, como o uso de refrões repetitivos, a construção de pactos emocionais entre artista e público e a criação do show enquanto um espetáculo narrativo. Além disso, haveria uma associação da música brega com uma certa tradição melodramática latino-americana, presente nas telenovelas e nas demais formas de entretenimento popular espalhadas ao longo do continente. Muitas canções do brega pernambucano, como Itamaracá (Sun of Jamaica), de Reginaldo Rossi, o sucesso Dizem que sou louca, da Banda Kitara, e Obsessão, da Vício Louco, são, aliás, versões de músicas estrangeiras, sejam elas hits globais ou sucessos de gêneros musicais latino-americanos e caribenhos como a bachata, da República Dominicana.

Para o cantor Kelvis Duran, um dos pioneiros na adaptação de bachatas, o ritmo dominicano tem tudo a ver com o brega pernambucano, com a diferença de que lá, no lugar da bateria, há um destaque maior para a percussão. Talvez seja por isso, pelos gêneros se encaixarem tão bem, que há quem ainda não saiba que o sucesso Estando com ela e pensando em ti (2005) era, originalmente, uma canção dominicana. Mas o que é interessante mesmo de se observar é o fato de que, ao se transformarem em bregas, muitas bachatas mantiveram a letra quase igual à da versão original. E que, durante sua história de mais de 50 anos, o ritmo dominicano também já foi classificado, pela elite local, como uma música associada às classes populares e possuidora de um baixo valor estético.

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Também produtora cultural, Michelle Melo observa influência de ritmos latinos no brega pernambucano. Foto: Dondinho

Outra artista que reconhece a influência de sons latinos na formação do brega pernambucano é a cantora Michelle Melo. De acordo com ela, não só há fortes referências de ritmos como o bolero e a salsa nas composições, como a construção dos estereótipos em torno do Brasil e da América Latina acabam por se fazerem presentes no gênero. “No próprio turismo, no Brasil, quando é apresentado para pessoas de fora, é apresentado primeiro o nosso Carnaval, a sensualidade das nossas mulheres, as nossas praias – que é onde se expõe o corpo. Nós vivemos na América Latina, automaticamente vinculados à sensualidade”, afirma a cantora que, no início dos anos 2000, emprestou sua voz a hits como Baby doll e Topo do prazer, à frente da Banda Metade.

Conhecida pela performance marcante e sensual com a qual se apresenta no palco, Michelle Melo é também uma das grandes defensoras do brega. Seus posicionamentos políticos a favor do movimento ganharam destaque durante o debate sobre a programação do Carnaval de 2017. Na ocasião, ela chegou a afirmar que a exclusão do brega da convocatória da festa era um absurdo. Como poderia não ser cultura um movimento que gera empregos e movimenta a economia de tantas comunidades espalhadas por Pernambuco? Ainda naquele ano, quando houve o reconhecimento do brega enquanto expressão cultural pernambucana, ela publicou um vídeo em suas redes sociais no qual aparecia bastante emocionada enquanto comemorava a decisão.

Cinco anos depois, Michelle recebeu a Continente em seu home studio, localizado no Bairro de Cajueiro, zona norte do Recife. Lá é onde ela divide a vida e o trabalho com seu marido, o produtor Raphael Formiga, também veterano do brega. Antes mesmo que pudéssemos perguntar sobre as mudanças que aconteceram a partir da aprovação da lei, Michelle fez questão de afirmar: “O brega é um movimento. Se a gente o classifica como um ritmo, tira muitas pessoas desse movimento, e isso não é justo. Porque hoje, sobrevivendo do brega, temos digital influencers, dançarinos, cantores, produtores, pessoas que trabalham com blogs na internet, jornalistas, advogados. A primeira coisa que a gente tem que desmistificar é que o brega é um ritmo. Ele é um movimento e, dentro dele, encontramos pessoas de periferia, que tinham a necessidade de falar de amor da forma delas. De uma forma mais simples”.

Com o objetivo de fomentar a cadeia produtiva, Michelle aprovou esse ano, através da Lei Aldir Blanc, o Capacita Brega, que ofereceu 20 vagas para aulas de produção musical, ministradas por Raphael Formiga. O projeto de formação contou com bolsas de R$ 5 mil para cada participante, uma maneira de oferecer um tipo de capacitação artística a que a própria Michelle não teve acesso no início de sua trajetória, quando contava, quase exclusivamente, com a ajuda de sua família.

Essa realidade é bastante comum entre esses artistas, que, na maioria das vezes, começam sem apoio financeiro, podendo contar com a colaboração familiar para gerir suas carreiras. No caso da cantora, alguns de seus figurinos e adereços de palco icônicos, inclusive, foram construídos de forma independente por ela, sua mãe e seu padrasto. “Todas as vezes que tinha (apresentação na) TV, a gente corria para ajeitar uma roupa. Era a gente mesmo que ajeitava, que bordava as roupas sozinha. Normalmente, era um sutiã velho que não ia ser usado mais. A gente ia lá na cidade, comprava lantejoulas e bordava de um dia para o outro. A Banda Metade tinha um crucifixo no palco, um leque que abria no meio. A gente não tinha dinheiro: tudo aquilo ali eram meus pais que iam comigo, pegavam minhas loucuras, aprendiam como fazia. Meu pai passou três dias para fazer um leque de dois metros para eu sair de dentro”, relembra.

Durante a entrevista, Michelle revelou que a ideia de ser cantora era uma obsessão particular cultivada desde a época em que era criança. Mesmo que seus irmãos fizessem graça de seu sonho, ela não desistia e falava sempre que haveria de chegar o dia em que ela andaria nas ruas de Chão de Estrelas, bairro onde foi criada, na zona norte do Recife, e seria reconhecida por todos. A oportunidade de realizar seus anseios veio junto ao convite para assumir os vocais da Banda Metade, uma das primeiras a investirem em cantoras femininas com uma proposta mais sensual. E foi também nesse momento que Michelle de Melo Borba inventou Michelle Melo, como forma de se blindar das críticas e do machismo que ela entendia que poderia sofrer.

“Eu via muitas pessoas falando em laboratório de atores. Que quando eles iam representar, se desligavam totalmente. Para interpretar, eles viravam aqueles personagens. Então, parei e pensei: ‘Bicho, eu tenho que montar a Michelle Melo’. Michelle Melo precisa ser uma personagem, para que eu possa me defender. Quando as pessoas me falarem: ‘Ah, você não tem vergonha?’ Eu falo: No palco é uma pessoa e fora dele é outra’.” A inspiração para a sua criação veio do cinema, através de personagens como Miranda Priestly, de O Diabo veste Prada (2003), Catherine Tramell, de Instinto selvagem (1992), e Vivian Ward, de Uma linda mulher (1990). A ideia era que, no palco, ela interpretasse uma mulher poderosa, dona de sua vida, que sabia usar a sensualidade para conquistar as pessoas, mas, assim como os cantores românticos que marcaram gerações falando de suas desilusões amorosas, também se apaixonava e chorava por amor.

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Outra expoente dessa geração, Nega do Babado conquistou o público pernambucano com o seu trabalho solo. Filha de Xangô, Iansã e Oxum, Adriana Araújo – nome de registro da artista –, aprendeu a cantar ainda criança, através das músicas de Clara Nunes, até hoje sua maior referência. Mesmo tendo sido criada em Boa Viagem, ela sempre teve uma relação especial com a zona norte do Recife, mais precisamente com os bairros de Casa Amarela e Alto José do Pinho, onde ia, aos domingos, visitar sua família. Através do convite de um amigo, ela teve sua primeira experiência cantando brega e conheceu – e gravou – a canção que mudaria a sua vida.

Seja pelo saxofone envolvente ou pela letra provocativa, que fala em primeira pessoa sobre os desejos de uma mulher, Milk shake estourou em apenas oito dias. Na letra, os versos “Hoje eu sou sua laranja/ Sinto o gosto da maçã/ Vou te fazer um milk shake/ Vou chupar no canudinho assim toda manhã” foram responsáveis por estimular o sucesso da cantora, que também é empresária e atriz. Até hoje ela lembra, com muito carinho e orgulho, a importância desse hit na sua história: “Milk shake foi a transformação da minha vida. Por isso que eu estou hoje aqui sentada com você, por isso que já toquei em todo o estado. É uma música que tem 19 anos e a proporção que ela dá hoje à Nega do Babado, enquanto cantora, atriz, empreendedora, mãe... Tudo que você imaginar de bom, essa música trouxe para mim”.


Nega do Babado, também atriz e empresária, no palco do Festival Coquetel Molotov, em 2017. Foto: Tiago Calazans/Divulgação

Quando se lembra do lançamento, faz questão de destacar a importância do Bairro de Casa Amarela que, para ela, é onde são escolhidas as músicas que irão estourar na cidade. Nas entrevistas para a elaboração desta reportagem, a importância do bairro e de seus entornos para o brega foi reforçada por várias outras entrevistadas.

Uma delas é Palas Pinho, cantora e empresária, que foi vocalista da Banda Metade antes de Michelle Melo e é mais uma das artistas que reforça a necessidade de entender o brega enquanto movimento. Ela, que foi criada no Bairro de Água Fria, também zona norte do Recife, conta que, muito por influência do pai, “boêmio incurável”, cresceu ouvindo seresta e música romântica. Palas também é fundadora do projeto Amigas do Brega, que reuniu, em 2018, quatro cantoras dessa geração e que procurava reviver os sucessos da época. Isso também, de alguma forma, serviu para documentar a história dessas músicas.

Quando ainda cantava na Ovelha Negra, Palas teve a oportunidade de viajar por todo o Brasil, graças ao sucesso da canção Amor de rapariga. Mesmo que os jornalistas, produtores de eventos e até membros de sua equipe tentassem classificar a música da banda enquanto forró, ela sempre fez questão de dizer que cantava brega. “O que a gente canta, o que a gente fala, é a linguagem da periferia. O duplo sentido existe também em músicas como o coco, como a ciranda. A linguagem só expressa a realidade periférica. Não tem como isso ser criminalizado”, observa ela, rebatendo os argumentos de quem critica o brega pelo teor de suas letras. Para a intérprete, a única diferença entre as serestas que seu pai ouvia e o brega pernambucano é, além do uso de expressões tipicamente locais, o preconceito que se criou em torno do nome brega.

“O rótulo existe porque era dado às músicas que tocavam nas gafieiras, nos inferninhos. Tudo que rolava ali era brega. Tudo que, para a elite, era música de pobre, era brega. Era considerado chulo, lixo”, diz. Ainda assim, a artista lembra que percebia, quando cantava em casamentos e bailes de formatura, que, aos finais das festas, ou depois que as pessoas já estavam embriagadas, apareciam os pedidos para que a banda tocasse o gênero. O “efeito libertador” que o álcool trazia ao público revelava a ela que a música brega poderia entrar em qualquer lugar. E que, como dizia um de seus grandes ídolos, o rei Reginaldo Rossi, “quando o chifre aparece, o diploma cai da parede”. Ou seja, independentemente de sua origem, aquelas histórias tinham a capacidade de chegar a todos que se permitissem e se abrissem para os amores e desejos ali estimulados.

Mas, mesmo com a expansão do gênero por toda a cidade e sua entrada em ciclos sociais distintos, é nas periferias onde, em grande parte, ele é produzido e, até hoje, tem o seu maior consumo. “Na realidade, nos clubes periféricos da zona norte do Recife é onde está a sua essência. O Morro da Conceição é um berço. Ali, em Casa Amarela, você tinha o 13 do Vasco, que não existe mais. Você tem o Clube das Pás, tem o Bela Vista. Clubes tradicionais e gafieiras, como eram chamados os lugares onde se tocava o brega de antigamente. Porque a galera ia para dançar. Eles foram o suporte para aquele movimento, o alicerce”, defende Palas.

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