Relato

Vik Muniz vai à feira

Uma visita à galeria Lugar Comum, criada pelo artista plástico em meio ao movimento da histórica Feira de São Joaquim, em Salvador

TEXTO BRUNO ALBERTIM
FOTOS MÁRCIO LIMA

01 de Junho de 2022

A comerciante Larissa, que trabalha no box ao lado da galeria 

A comerciante Larissa, que trabalha no box ao lado da galeria 

Foto Márcio Lima

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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Peixes e tartarugas rompem a espessa superfície esmeralda das águas entre as poucas embarcações ali paradas. Barcos simples, carcomidos de sal e tinta velha, descansam sobre o espelho d’água em lugar dos antigos saveiros. Trazido pela brisa morna, o aroma suave de maresia é temperado pelo cheiro vermelho de vísceras recém-descartadas. À beira do cais improvisado, cinco cabras berram. Altos e agudos, seus balidos lembram choro de criança perdida em praia de domingo. Parecem adivinhar o sacrifício no terreiro a poucos metros dali.

Alto, menos de 30 anos na aparência, nacos de músculos esgarçando as mangas da camisa encardida sobre a pele preta, um homem coloca um dos cabritos ao redor do corpo. Atadas com embiras, as patas do pequeno animal fazem-lhe as vezes de alças de uma bolsa a tiracolo. “Essa vai para Exu”, me diz o homem, economizando palavras, enxugando a testa suada com as mãos e alargando os passos dos limites da feira para a grande via de acesso à Liberdade. 

Espalhado pelas colinas urbanas ali na frente, o Bairro da Liberdade divide como silhueta o corpo de São Salvador da Baía de Todos os Santos entre suas cidades alta e baixa. Guarda ainda a fama de maior concentração negra da América Latina, título às vezes contestado nos censos oficiais pelo também soteropolitano Bairro de Pernambués, os dois subúrbios fazendo da capital baiana, com seus iorubás egressos da Nigéria, Togo, Benim e Gana, logo à frente de Nova York, a cidade com mais descendentes de África no mundo.


Parte dos produtos comercializados na feira chega através do
pequeno cais improvisado

Dois becos adiante de onde estavam as cabras, uma evangélica da Assembleia de Deus vende imagens do orixá. Olhar inerte, corpos pintados de preto, esculturas de acabamento rústico simulam exus de grandes falos eretos entre prateleiras com roupas africanas e trajes cerimoniais do candomblé. Numa calçada, um grupo de homens bebe com falsa distração copos de cachaça e cerveja morna enquanto disparam sonoras gargalhadas a cada palavrão trocado entre si. Berram tanto quanto as cabras. 

Outro homem, a barriga flácida saltando da barra da camisa de malha também encardida, arruma diligentemente uma pilha de quiabos. Geometricamente organizados, os frutos lembram algum tipo de instalação de arte contemporânea com pretensões a insinuar convergências e divergências da vida. Arte espontânea, dirão alguns. “Não vai levar o quiabo para o caruru hoje, não?”, pergunta ele.

Entre os tantos ruídos de mais um dia, quase ninguém aqui ouviu falar em Vik Muniz. “Quem é esse, pai?”, ri o homem de cabrito a tiracolo, levando os bichos para o descanso antes do abate ritual – animais de chifres costumam ser oferecidos justamente a Exu, orixá das ruas, dos caminhos e da comunicação com os outros deuses do panteão afro-brasileiro, erradamente sincretizado com o diabo dos católicos. Ogã de um terreiro de candomblé, o homem é um dos quase 300 mil moradores da Liberdade acostumados a descer as ladeiras para se abastecer na vizinha e histórica Feira de São Joaquim. Entidade de um outro mundo de míticas próprias, e também espessas, majoritariamente desconhecido por estas bandas, Vik Muniz está entre eles. 

Como o artista, há anos tenho um prazer íntimo, pouco descritível, entre o me achar e o me perder entre os becos e vielas, os sentidos particulares do sagrado e o gozo pelo profano desta feira que se organiza como um certo fluxo autônomo de consciência. Desta vez, procuro entender por que Vik Muniz resolveu abrir uma galeria justamente entre as garrafas de dendê, pilhas de camarão seco, a fé, a ostentosa sexualização e o comércio de amuletos e fetiches para toda a sorte de feitiços na mais ruidosa e popular feira da Bahia. 

Nascido Vicente José de Oliveira Muniz no ano de 1961, num bairro quase tão periférico de São Paulo como a soteropolitana Liberdade, filho de um garçom e de uma telefonista, Muniz faz parte de um panteão da arte contemporânea difícil de acessar. Com obras que podem custar, sozinhas, o caixa de alguns dias desta feira – ou a receita de pequenas cidades brasileiras inteiras –, um dos poucos brasileiros de presença sólida no mercado internacional, Vik Muniz foi estudar e fazer arte nos Estados Unidos com a indenização decorrente de um acidente de trânsito do qual foi vítima na São Paulo no começo dos anos 1980. 

Em 1999, recriava a clássica imagem da Mona Lisa de Da Vinci usando geleia de uva e manteiga de amendoim para ressaltar as curvas do rosto e o mais famoso olhar da história mundial da pintura. Pouco antes, em 1996, tinha já feito Crianças de açúcar, uma série de fotografias de meninos e meninas crescidos entre lâminas de facões e fuligem de queimadas, refeitas com o substrato doce da cana que tanto sustenta como degola historicamente aquelas infâncias nas plantations do Caribe. Com um resultado de volumetria e luz mais comuns na pintura, depois de expostas na mostra New Photography, entre os anos de 1997-98 no MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova York, as imagens garantiram o acesso de Vik Muniz aos principais curadores das instituições que ditam a estética no Ocidente. Com o uso de materiais pouco convencionais e efêmeros na confecção de suas imagens de volumetrias insinuantes, Muniz consagrava uma linguagem no vocabulário contemporâneo.

Galerias e museus consolidaram-se ao longo do século XX sob o eficiente conceito do “cubo branco”: espaços quase sempre lacrados e preferencialmente neutralizados pela brancura exemplar das paredes de suas caixas de alvenaria, onde possamos estar desobrigados de toda e qualquer experiência além da estética. De alguma forma, ao instalar uma galeria em São Joaquim, Vik Muniz parece concordar com a ideia de Brian O’Doherty. No final dos anos 1970, o crítico (e artista, apresentador de TV, curador e historiador) irlandês, radicado em Nova York e responsável pela popularização da então incipiente ideia de arte conceitual, dedicava parte de seu tempo a desestabilizar o conceito estruturante de “cubo branco”. Assepticamente apartados dos ruídos sociais e da historicidade urbana ao redor, galerias e museus se tornariam um tanto estéreis – assim Brian pensa.

A sete mil quilômetros de Salvador, medidos em oito horas e 44 minutos de voo direto, Vik Muniz diz não ter exatamente a intenção de encardir o cubo. Mas de fazer sambar, no miudinho, suas regras. “Eu acho que o ‘cubo branco’ é uma excelente ferramenta para se analisar algo fora de um contexto específico”, comenta ele, alguns dias depois de nossos primeiros contatos. “Desculpe a demora em responder. Eu tenho muita insônia quando chego de viagem. Achei que teria uma trégua na Flórida, mas acabei trabalhando feito um camelo”, conta o artista, já em Nova York, onde mora e trabalha a maior parte do ano. “O problema é que esses ‘cubos brancos’ estão subordinados a um histórico socioeconômico que os limita a áreas de notável concentração ou fluxo de capital. A arte não tem que ir além do cubo branco, é o cubo branco que deve ir além do mundo da arte.” Os pais do artista, ele gosta de lembrar, só pisaram pela primeira vez num museu quando foram a uma exposição do próprio filho.

A Feira de São Joaquim, com o perdão do estereótipo tão magnético como fácil, é um grande organismo – ou, para ficar no clichê ainda mais corrente no vocabulário da arte, uma grande instalação viva. Nas palavras do também artista Carybé, argentino responsável por boa parte daquilo que o Brasil viria a entender como baianidade, “um amontoado inverossímil de barracas divididas por becos, ruelas e passadiços, formigando de gente, de saveiros, de jegues”.



Em São Joaquim, megafone serve para apregoar mercadorias 

Com seus 34 mil metros quadrados e mais de sete mil mascates diários, se espalha, desde os anos 1930, como a maior feira popular de Salvador. Vagando por ali quando de suas andanças recorrentes na cidade, Vik Muniz parece entender que só os tolos acreditam que panelas guardam apenas ingredientes e temperos. “São Joaquim é um assalto aos sentidos de uma gama perceptual que vai do lindo ao repugnante em apenas alguns passos. Ela me traz a memória de mercados da África Ocidental que tive a chance de visitar no Mali, Togo e Benim. Contudo, o rico ambiente da feira sempre destila algo pessoal da experiência de cada visitante. Há mais de 20 anos, eu vago frequentemente pelas suas vielas, pelo caos estimulante que elas proporcionam. Sempre tive vontade de fazer algo ali, mas só recentemente essa ambição tomou a forma de um espaço expositivo”, diz o artista. 

Em nossa conversa pelo aplicativo de mensagens Whatsapp, ele confirma a intenção de replicar uma galeria do tipo em feiras como a pernambucana Caruaru. “Mercados são centros de transferência material e simbólica, lugares onde a humanidade é constantemente testada e construída.”

Numa passagem pelo Recife, alguns anos atrás, para uma panorâmica de sua trajetória no Museu de Arte Metropolitana Aloísio Magalhães, Adriana Varejão comentou, numa entrevista para a Continente, que teve o lampejo para um dos eixos de seus trabalhos de maior reverberação, a série de pinturas tridimensionais de azulejos sobre nacos de carne, coincidentemente depois de ter visto grandes pilhas de charque na Feira de Caruaru: elementos que evocam, mais que comércio e comensalidade, a viabilização do projeto perverso de colonização do Brasil.

O que Caruaru suscitaria, ao ponto de provocar o desejo de ocupá-la, mesmo que não imediatamente, com outra galeria do tipo? “As feiras de Caruaru e Ver-o-Peso, no Pará, são ideias imediatas, por se tratarem de contextos semelhantes ao da Feira de São Joaquim, mas lugares de grande tráfego de transeuntes, como a Central do Brasil, no Rio, ou estações rodoviárias, também estão no radar. Por enquanto, a hora é de aprender e desenvolver formas de ampliar a experiência da galeria em São Joaquim e, por isso, não estou com muita pressa de expandir o projeto no momento”, ele diz. 

“Por mercados como Caruaru ou São Joaquim processa-se também muita cultura, muita fé. Não sei se já tive, como teve Adriana, alguma epifania específica em relação a esses ambientes, mas são esses centros, essas ágoras de intensa interação humana, os ambientes que mais me inspiram a pensar sobre a transfiguração da matéria em símbolo, em história. Esse lugar apertado entre a coisa e a ideia tem sido o meu lugar de trabalho desde que me conheço como artista.”

LUGAR-COMUM
Batizada de Lugar-Comum, a galeria de Vik Muniz está numa viela perto da entrada principal e paralela ao maior corredor de São Joaquim. Nem por isso, fácil de se encontrar. Um tanto surpreso com a cena de uma criança quase de colo brincando com uma boneca sobre um colchão com restos de legumes e algumas galinhas vivas amarradas no caixote que lhe servia de berço, sou logo advertido por aquela que parece ser a mãe da menina: “Se bater foto, eu quebro seu celular, viu, rei?”. Apresso-me em dizer que estou apenas procurando uma galeria de arte de um artista de São Paulo aberta há pouco tempo por ali. “Aqui, a arte é só essa feira mesmo”, ela diz. Para o desassossego também de mães sem ter com quem deixar os pequenos, batidas do Juizado da Infância e da Adolescência para coibir a exploração do trabalho infantil, não são raras entre essas bancas.

Não há placas indicativas. Tampouco gente informada a respeito. Alguns minutos perambulando entre as bancas, um vendedor de artigos religiosos diz que uma coisa diferente abriu no box onde antes funcionava um bar. Protegida por uma vitrine, a galeria é um grande cubo branco, de um brancor que contrasta com as cores e o chão encardido da feira, paralela à Rua do Camarão Seco, onde uma obra do paulistano Ernesto Neto está exposta desde a inauguração da Lugar-Comum em dezembro do ano passado. Na instalação, uma rede pende do teto formando um desenho celular. Grãos e sementes recolhidos da feira formam linhas que serpenteiam ao redor da obra.

“Uma das coisas mais bonitas que ouvi foi de um local, explicando para uma turista que aquela obra do Neto era feita quase que exclusivamente de coisas que podiam ser compradas na feira, mas que, quando juntas, naquela determinada forma, se transformavam em uma outra coisa, mais misteriosa, mística e consequentemente, de mais valor”, comenta Vik. “Neto me pareceu ideal por estar sempre criando conversas entre mundos”, diz.

À porta da galeria, não há os colecionadores excitados em aberturas de bienais ou feiras internacionais. Além de ocasionais forasteiros de celular à mão para selfies diante da instalação, quase sempre estão ali apenas os habitués do boteco à frente. “Um dos feirantes, um peixeiro com quem fiz amizade, me disse que o bar da frente da galeria está muito mais cheio de assunto desde que abrimos”, ri Muniz. A galeria não comercializa, apenas expõe as obras.

Baiano corpulento de 61 anos, Adroaldo Costa Ramos ficou meio surpreso ao ter que afastar os bancos da mesa onde bebe diariamente, para dar passagem a visitantes raríssimos naquela viela. “Vi muita gente aqui, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Regina Casé. Muita gente vem de fora só para tirar foto. Todo dia venho aqui tomar minha cervejinha. No dia que não vier, estou morto”. Dono de uma pequena camionete para frete de mercadorias, há 32 anos, depois do vaivém da feira pelo trânsito de Salvador, senta diariamente no Bar do Galego. Agora, olha todos os dias para a instalação de Ernesto Neto enquanto sorve sua cerveja antes de migrar para o pirão de mocotó no Bar da Norma, no almoço diário a poucos passos dali. “Eu não entendo. Acho que tem que entender para gostar, vejo uma rede pendurada com uns bregueços dentro. Eu não sinto nada, fico só admirando. Acho que deveria ter uma pessoa para orientar, pra dizer o que é isso ali”, comenta.


Os artisas Vik Muniz e Ernesto Neto, cuja obra está em exposição na galeria

Por ora, Vik Muniz não está interessado em mediações ou ações educativas. “Por enquanto não, pois tenho curtido muito a maneira como as pessoas, na grande maioria, desenvolvem formas pessoais brilhantes de lidar, sanar ou controlar esse estranhamento.” 

Não é a primeira vez de Vik Muniz no roçar de mundos que pouco se encontram. Entre 2007 e 2008, o artista recrutou seis catadores do aterro sanitário Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, para coproduzir com ele a série Lixo extraordinário. Utilizando toda a sorte de descartes da sociedade carioca, construiu retratos enormes daqueles catadores mimetizando poses de alguns personagens clássicos das artes visuais. Premiado em festivais como o de Berlim e o Sundance, o documentário homônimo foi indicado ao Oscar em 2010. Um dos retratos, o do catador Sebastião Carlos dos Santos, conhecido apenas como Tião, simulando a morte do revolucionário francês Marat, foi vendido num leilão de Londres por R$ 74 mil, em valores da época. A renda foi revertida para a Associação de Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho. 

A seu modo, Muniz acredita que a presença da galeria pode afetar a vida de quem vive em São Joaquim: “Com certeza. Afeta tanto o feirante que descobre a cada três meses algo de novo na feira, como o visitante, que é forçado a desconstruir convenções culturais do conceito do popular, do mundano. Talvez, isso sirva para abrir os olhos incautos do visitante para a verdadeira profundidade e erudição daquele lugar”. 

Na rua principal da feira, é a evangélica Larissa quem vende imagens de Exus. Nascida há 28 anos, a moça é uma filha de São Joaquim. Márcia, sua mãe biológica, ziguezagueava por ali entre biscates e oportunidades, quando resolveu entregar a menina para a comerciante Solange criar. “Ela vendia milho, amendoins na feira, mas Solange também não tinha muitas condições de me criar”, conta.

Funcionário da Marinha de Salvador, Marcílio Santana enchia o carrinho de touceiras de coentro nas horas vagas para vender pelos corredores de São Joaquim. “Ele me pegava para passar de vez em quando um final de semana diferente na casa dele”. Num desses fins de semana, Larissa chegou doente. Vera, a esposa de Marcílio, decidiu: “Ela disse que eu ia ficar de vez. Se voltasse para casa da minha outra mãe, eu morreria. Então, cresci como filha de Vera e Marcílio”.

Depois de mais de uma década trabalhando no armazém de construção da mãe Vera, no Bairro do Bonfim, Larissa ocupa há poucas semanas o cargo de gerente da loja de artigos religiosos do pai. Há quase 40 anos, seu Marcílio montou uma pequena barraquinha de umbanda na feira. Hoje é o dono da Preto Velho, uma loja que abastece não apenas Salvador, mas terreiros e religiosos de todo o Brasil com suas vestimentas trazidas da Nigéria, adornos, imagens votivas e utensílios rituais. 

Casada com um ogã de terreiro, a comerciante é uma evangélica convicta há mais de 10 anos. “Não tenho problema com a religião de ninguém. Na igreja, todo mundo me respeita por saber que minha família é de santo.” O que a incomoda é o comportamento médio da clientela: “Não estou me encontrando aqui. Eu gosto de confusão, gosto de tumulto, mas não gosto da galera, o povo que vem aqui é muito ignorante. Não o turista, mas o baiano, chega sem dar bom-dia, não fala, quando a gente pergunta alguma coisa, vem na arrogância. Aqui, a gente sente uma rispidez do cliente, entende?”

No meio de tanta gente, a moça está contente em ter Vik Muniz como “vizinho”. “Acho interessante, é agregador pra feira. A feira ainda é vista como um lugar sujo, as pessoas acham que isso aqui é sujo”, ela fala. “Vou lá ver a exposição na galeria dele. Gosto sempre de ir a museus na Bahia. A última coisa que vi foi a História Musical da Bahia, na Cidade da Música, que traz a história da música de cada bairro.”

Haverá, paulatinamente, algo novo sempre a se ver. Sem comercialização de obras, a Lugar-Comum deve ter uma exposição temporária inaugurada a cada três meses. “A próxima exposição”, antecipa Vik, “conversa com a feira de outra forma, falando do infinito. Será uma instalação do paulista Artur Lescher, que vai ficar muito linda. Estamos falando de uma instalação com a Maria Nepomuceno, o inglês Anish Kapoor, Vanderlei Lopes e Efraim Almeida, entre muitos outros embriões de projetos”.

O artista não tem a pretensão imediata de incorporar elementos da feira em seu trabalho. “Já pensei nisso, porém as pessoas da feira me inspiraram mais do que todas as coisas que se pode comprar lá.” Mais que o exotismo de imprimir imagens com substâncias inusitadas como catchup, açúcar, diamantes, chocolate e lixo, Vik Muniz altera um jogo preestabelecido de imagens caras à subjetividade Ocidental. Ao recriar imagens clássicas do repertório das artes, acessa e dribla esquemas mentais dessa grande subjetividade imagética comunitária. “Ao longo da minha pesquisa, eu tenho procurado sempre um lugar de ressonância que transcenda os viciosos parâmetros socioculturais que fazem do mundo da arte uma espécie de clube exclusivo”, ele diz. 


Letreiros indicam a convivência de credos e crenças distintos em São Joaquim

Mais que espaços, essas feiras são espécies de entidades fincadas no senso mais íntimo de pertencimento e identidade. Adentrá-las, sabe o artista, é uma estratégia de ampliar sua relação com esses inconscientes. “A minha ambição é construir uma obra relevante tanto para o curador ou o crítico, como para a pessoa que limpa ou faz a segurança do museu ou da galeria. Para isso, é importante o convívio e a familiaridade com o imaginário do indivíduo independente da sua familiaridade com os conceitos já estabelecidos de arte e cultura visual.” 

Na beira do cais ali perto, novas cabras e cabritos chegam em gradis para o grande galpão onde esperam ser comprados ao lado de aves e cágados. No dia seguinte, os boxes estarão fechados e o pagode baiano garante o rebuliço, quando mercadorias dão lugar aos movimentos de cada domingo no Samba de São Joaquim. Iemanjás e Exus estão guardados no silêncio da loja fechada de Larissa. Leguminosas, sob lonas. Com os açougues fechados, não há vísceras para o balé de peixes e tartarugas sob as águas. Ilustre desconhecido, Vik Muniz segue entre eles. “O trabalho na feira de São Joaquim é dedicado a enriquecer a experiência das pessoas que trabalham e compram coisas naquele lugar, e também uma grande oportunidade de convívio com pessoas normalmente excluídas desse tipo de experiência. Tenho vivido momentos maravilhosos como pivô dessas interações.” Como na feira, há desejos de Carnaval, fé e silêncios na fala do artista.

BRUNO ALBERTIM, jornalista e antropólogo. Autor de, entre outros, Tereza Costa Rêgo – Uma mulher em três tempos (Cepe Editora, 2019) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana/Fundaj, 2020). Também ganhador de um Prêmio Esso de Jornalismo.

MÁRCIO LIMA, fotógrafo.

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