Resenha

Oliveira Lima e o fazer da vida uma aventura

Livro de Nathalia Henrich comenta a relação do diplomata pernambucano com os Estados Unidos

TEXTO José Roberto de Luna Filho

01 de Junho de 2022

Foto Arte sobre reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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Gostaria de iniciar esta resenha de O antiamericano que não foi: Os Estados Unidos na obra de Oliveira Lima (EdiPUCRS, 2022) com uma crítica à autora, Nathalia Henrich, e com uma advertência ao leitor. Quando folheamos o livro, somos informados de que ele possui uma tese: demonstrar que Oliveira Lima, grande (e muitas vezes esquecido) diplomata recifense, não era um antiamericano, ao contrário do que a literatura especializada supõe. É certo que essa tese se apresenta ao longo das páginas e é defendida com riqueza invejável de detalhes. O problema é outro: o livro não se limita à defesa de um ponto de vista, pois restringi-lo a isso seria ignorar as belas e agradáveis horas que passei acompanhando a vida de sujeito tão curioso, em prosa tão simples (mas não simplória) e comunicativa. Afinal, o leitor não especializado talvez nem conheça a polêmica em que o livro se insere.

Afirmo com a autoridade concedida aos não especialistas: o livro é para todos aqueles que tenham interesse na história de Pernambuco e de suas notáveis figuras. Não há nenhum impedimento à leitura por parte daqueles que não sejam iniciados na disciplina da História e/ou na vida de Oliveira Lima. 

AS RAÍZES DA OLIVEIRA
A vida de Oliveira Lima foi marcada por muitas viagens. Ao longo de sua carreira, chegou a conhecer até o Japão. Pode-se dizer que viajar era um de seus hobbies, pois tinha grande curiosidade em conhecer outras terras e povos. Além disso, foi filho de português e recebeu educação inglesa de Collingridge (o mesmo que educou os infantes de Maria II). Tudo isso aponta para um sujeito cosmopolita, que acreditava ser o nascimento em determinado país um mero acaso. Mas, não. Surpreendentemente, Lima foi não só grande patriota, mas também grande admirador do Recife, sua terra natal. Ele nasceu em 1867, e, portanto, acompanhou a modernização da cidade, processo que trouxe uma série de problemas urbanos à chamada Veneza Brasileira, com os quais ainda hoje sofremos. Ainda assim, foi capaz de reconhecer as muitas belezas dessa futura metrópole e nunca perdeu sua relação telúrica (e ao mesmo tempo realista, porque não idealizadora de uma cidade invisível) com a capital pernambucana. 

Esse vínculo com o Recife, de alguma maneira, explica sua obra, sua vida e seu pensamento. Afinal, parece ter sempre buscado, nos lugares que visitou, precisar que laços sentimentais os homens poderiam criar com aquele local. Essa relação afetiva com uma cidade, uma língua e uma cultura se reflete também nas mudanças que seu pensamento sofria tão logo conhecia e mergulhava no “espírito” dos seres de determinada localidade a que acabara de chegar. Ao mesmo tempo, nunca abandonou substancialmente seus valores, sempre tentando conciliá-los com a nova realidade que se lhe impôs. Terá tentado, toda vida, encontrar o saudoso Recife nos distintos lugares em que se estabeleceu? 

O fato é que essa relação de amor pelas raízes nunca fez com que virasse as costas ao país. Por mais que seus conterrâneos condenassem sua figura e lhe negassem reconhecimento, ele permaneceu defendendo nossas riquezas e divulgando o nosso povo no exterior, quando atuando ou não como diplomata. 

AMOR PELOS EUA
Foi muito importante para a vida de Oliveira Lima o seu amor pelos Estados Unidos. Em seu afã republicano, nutria profunda admiração pelas instituições daquele país. Considerava, ainda, que ele deveria ser a vanguarda global e levar sua forma de fazer democracia aos demais países. Essa defesa, porém, não implicava um servil viralatismo diante de tudo o que vinha da América do Norte. Ao contrário do que vemos nos dias de hoje, Lima levava muito a sério seu ofício de diplomata, e agia sempre com vistas ao que julgasse ser melhor para os interesses do Brasil. Ademais, era defensor da autonomia de cada país e capaz de perceber que cada lugar tinha a sua especificidade cultural. Ou seja, a despeito de sua personalidade por vezes tão eufórica, emotiva e crédula na superioridade política do modelo ianque, sabia, no fundo, manter-se ponderado e fiel a princípios bastante razoáveis. Comparando-se seus atos com atitudes tomadas por sujeitos de poder, principalmente durante a pandemia, podemos perceber que essa capacidade de ponderação diante da disputa ideológica faz falta.

Quando Oliveira Lima teve de servir no Japão e na Venezuela, pôde realizar uma profunda imersão na ambiência de cada um desses países e foi capaz de compreender que talvez houvesse algo de danoso na relação entre os Estados Unidos e os demais países do globo. Ele pôde ver que, de certa maneira, o imperialismo, da forma como era praticado por Roosevelt (presidente da época), tinha um fundo que não lhe agradava. Ocorre que o diplomata recifense era idealista: acreditava que os norte-americanos poderiam fazer uma condução paternal e bondosa, com boas doses de caridade católica, dos países que ainda não haviam aderido à sua forma de governo, que era, para Lima, a mais exitosa. No entanto, passou a perceber que havia intenções de natureza econômica e egoísta, uma vez que o presidente estadunidense queria sobretudo garantir vantagens a sua própria nação e não ajudar o desenvolvimento das demais. 

Daí resultou o mal-entendido que motivou a escrita do livro de Nathalia Henrich. Afinal, sua visão mudou, mas ele nunca se tornou antiamericano. Pelo contrário: manteve sua admiração pelas instituições do país e continuou achando-as exemplares. Apenas acreditava que a relação entre as nações deveria ser de mútua ajuda e favorecimento. Não poderia ser diferente, pois sua visão estava ancorada em princípios que merecem ser relembrados e matizados.

DARWINISMO SOCIAL
Como dissemos, Henrich deixa claro que Oliveira Lima tinha profunda admiração pelos Estados Unidos e acreditava que este país deveria possuir prerrogativas para intervir na política de outros Estados, a fim de levar-lhes seu modelo de democracia. Mas em que isso se fundamentava? Bem, o motivo é lamentável, mesmo em se tratando de um sujeito do século XIX: o diplomata recifense adotava o darwinismo social como modelo de análise da realidade. Ou seja, ele acreditava que algumas raças eram mais aptas, a priori, a governar com sabedoria e lisura. Outras, como as raças negra, indígena e oriental, eram incapazes de garantir o progresso de uma nação por meio do autogoverno. Além disso, ele cria que a solução para o Brasil era o embranquecimento da população, por meio do contato com os imigrantes europeus. 

Oliveira Lima, no entanto, não era contra o direito dos negros (ele foi um ardoroso abolicionista), tampouco acreditava que as chamadas “raças inferiores” devessem, de alguma forma, sofrer privações: era completamente favorável à igualdade de direitos. O problema mesmo estava nessa crença arraigada de que os países dos homens brancos alcançaram os maiores patamares de civilização porque eram repletos de homens brancos. Com isso, ignorava uma série de questões, tais como: 1) o benefício que o frequente contato com outras culturas trouxe aos países europeus; 2) o processo histórico de dominação bélica e pilhagem que potências europeias realizaram nos países “menos desenvolvidos”; 3) os europeus são os mais civilizados… segundo as regras do jogo que eles mesmos inventaram. 

Tratar de uma figura que defendeu esse tipo de ideia é sempre complicado. Sobretudo quando se busca encontrar elementos positivos em sua obra e em seu pensamento. Ocorre que Nathalia Henrich não é apaixonada por seu objeto de pesquisa; a paixão frequentemente cega e torna os vícios meros detalhes diante das virtudes. Ela não abandona o senso crítico diante do tema de pesquisa. Sua relação com o objeto de pesquisa é outra: é de um amor maduro, fruto de longos anos de convivência. Sem condenar as ideias do autor em sua inteireza, Henrich tampouco recorre a tentativas espúrias de minimizar os erros do diplomata. Ao contrário: deixa-os bem evidentes, inclusive fornecendo ao leitor material para questionar até que ponto essa mentalidade era realmente apenas motivada por ser ele um homem de seu tempo. Afinal, ficamos sabendo que o diplomata conheceu figuras como Franz Boas e Gilberto Freyre, as quais certamente não corroborariam sua visão racista. 

Maior prova da honestidade de Nathalia Henrich talvez seja o tratamento que dá à relação do casal Lima. Quando poderia supervalorizar algumas atitudes progressistas que tinha Oliveira Lima em relação à sua mulher (e às mulheres em geral), preferiu deixar bem claros os limites desse suposto progressismo. Afinal, embora acreditasse que a mulher tivesse as mesmas capacidades que o homem (nunca se deve esquecer que se referia às mulheres brancas, obviamente) e que devesse possuir os mesmos direitos, tampouco era capaz de permitir algum tipo de protagonismo intelectual ao sexo feminino. A pesquisadora narra uma entrevista que, tendo inicialmente a senhora Lima como entrevistada, acaba se tornando uma entrevista com o casal, em razão das interrupções e intervenções frequentes de Oliveira Lima.


A obra, que traz uma linguagem fluída e acessível, é uma adaptação da tese da autora. Imagem: Divulgação. 

Ficamos conhecendo, sem idealizações, a importância que teve Oliveira Lima para a cultura brasileira, uma vez que atuou como um “mercador” de ideias e notícias; bem como sua importância para a divulgação de nossos muitos méritos lá fora. O respeito que lhe era imbuído no exterior por toda a sua capacidade intelectual e formação tornou muito mais fácil a melhoria de nossa imagem aos olhos estrangeiros, o que garantiu a defesa de importantes interesses brasileiros. 

POR QUE LER OLIVEIRA?
É absolutamente justo o leitor se perguntar o porquê de ler sobre a vida de um sujeito que, a despeito de uma vida profissional ativa e profícua, defendia algumas ideias tão ultrapassadas. Vou dizer, então, como e por que o livro me prendeu por suas mais de 400 páginas. 

Começo dizendo que, da maneira como foi disposta a narrativa, ela ganha contornos romanescos. Acompanhamos a vida quase que inteira de um homem que presenciou grandes momentos da história brasileira e mundial, que viveu e conheceu diferentes culturas, que travou contato com grandes figuras e que foi um exemplo de amor e dedicação às muitas ocupações que seguiu durante a vida, a saber: diplomata, historiador, palestrante, escritor e jornalista. Essa relação tão apaixonada com a vida não deixa de ser empolgante. Oliveira Lima tinha verdadeira paixão pelas coisas. Assim como Gilberto Freyre, não queria fazer da vida um mero turismo. Tinha aquele sentimento generoso, grandioso e algo narcísico que têm todos aqueles que buscam tornar o mundo um lugar melhor.

Mas não é só isso. A participação ativa de Oliveira Lima em grandes eventos históricos, bem como a profunda exploração de seus escritos feita por Nathalia Henrich, nos permite conhecer um pouco dos bastidores de tais acontecimentos e perceber de outro modo as razões que lhes davam base. Foi-me particularmente interessante descobrir, por exemplo, o real fundamento para o que hoje conhecemos como imperialismo americano. Descobrir a origem e raciocínios implícitos dessa ideia é particularmente importante, pois, mesmo que sejam ultrapassadas, elas, de uma maneira ou outra, sobrevivem ao tempo e contaminam nossa percepção. 

Por isso não é estranho que muitas pessoas, mesmo que rechacem as ideias racistas do darwinismo social, ainda considerem válida a intervenção dos Estados Unidos, que deve levar aos países “primitivos” a “verdadeira democracia” e a “solidez de suas instituições”. Ou seja, de uma forma ou de outra, dois raciocínios estão aqui implícitos e intrincados: 1) a soberania moral do modelo político estadunidense; 2) o mito do progresso civilizatório. 

Vem também dessa crença ingênua, por exemplo, a visão tão comum de que os índios devem abandonar a vida “atrasada” nas aldeias em favor dos avanços civilizatórios, para lembrar um chavão frequente por parte do presidente Bolsonaro e seus apoiadores. Em último caso, se os motivos aqui expostos ainda não convencem, da leitura ficará evidente, ao fim do livro, como ideias avançadas e engenhosas podem conviver com visões tão retrógradas; e como os sujeitos mais intelectualizados podem igualmente reproduzir enganos por vezes tão fúnebres. Com isso, aprendemos certo ato de humildade diante do que sabemos (ou achamos saber).

Em resumo, recomendo que o leitor conheça não só a história de Oliveira Lima, figura recifense de grande importância, como particularmente o trabalho que Nathalia Henrich tem desenvolvido. Para os que não sabem, a pesquisadora cuida da biblioteca do diplomata (mencionei que era um bibliófilo e que sua biblioteca era uma das maiores do Brasil?), cujos livros foram doados à Universidade Católica de Washington. Na direção de tal importante cargo, ela tem devotado grande esforço para divulgar o resultado de suas pesquisas, e sempre em linguagem muito acessível. 

JOSÉ ROBERTO DE LUNA FILHO, Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e bacharel em Letras pela mesma universidade. Escreve sobre Graciliano Ramos e literatura regional.

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