Artigo

Gil e o tempo rei

Baiano chega aos 80 anos com sabedoria ímpar e sendo mais mestre do que nunca

TEXTO Débora Nascimento

01 de Junho de 2022

O artista é um símbolo de luta e resistência

O artista é um símbolo de luta e resistência

Foto GÉRARD GIUAME/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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As letras das composições vêm recebendo maior atenção e respeito, para além de serem o contato mais direto do ouvinte com a canção popular e as sequências de palavras que entoamos através de melodias. Elas que, vez ou outra, são alvo do antigo debate, se seriam ou não poesia, estão ganhando honrarias e prêmios que as elevam a um outro patamar. Alguns reconhecimentos reforçam a tese de que se tratam, sim, de obras que podem ser niveladas com aquelas criadas pelos maiores nomes da poesia: o compositor canadense Leonard Cohen recebeu o Príncipe das Astúrias das Letras, em 2011; o norte-americano Bob Dylan, o Nobel de Literatura, em 2016; o rapper norte-americano Kendrick Lamar, o Pulitzer, em 2018; e Gilberto Gil, em 2022, se tornou imortal da Academia Brasileira de Letras.

Embora a ABL tenha sido, nas últimas décadas, foco de pertinentes discussões por aceitar figuras bastante questionáveis, o ingresso de Gilberto Passos Gil Moreira na casa que historicamente abrigou gigantes da literatura nacional como Machado de Assis, afrodescendente como ele, além de engrandecer a própria instituição, é a coroação de uma obra, que, somada à sua magnífica musicalidade, apresenta uma poética sublime. Muitas das mais de 600 composições de Gilberto Gil são tão conhecidas por nós, ao fazerem parte do nosso cotidiano há tantos anos, que nos acostumamos a suas estrofes brilhantes como se fossem comuns, deixando de nos assombrar com sua inventividade e sensibilidade.

Um ouvido menos atento pode deixar de perceber preciosidades, como, por exemplo, Parabolicamará. Na letra de 1992, o autor faz conexões entre os conceitos de Terra, mundo, tecnologia (parabólica), artesanato (balaio) e cultura popular (capoeira), para falar sobre transformações que mudaram nossa perspectiva de tempo e espaço. “Antes mundo era pequeno / Porque Terra era grande / Hoje mundo é muito grande / Porque Terra é pequena / Do tamanho da antena parabolicamará / Volta do mundo, camará / Mundo dá volta, camará.” Mais adiante, para explicar a rapidez de um fenômeno da natureza, a equipara à velocidade da percepção de uma personagem com o objeto de seu cotidiano: “Pela onda luminosa / Leva o tempo de um raio / Tempo que levava Rosa / Pra aprumar o balaio / Quando sentia que o balaio ia escorregar / Ê, volta do mundo, camará / Êê, mundo dá volta, camará”.


Capa do segundo disco solo de Gil, de 1968, em que
ele veste, apenas para a foto, o fardão da
Academia Brasileira de Letras. Imagem: Reprodução

Tomando como exemplo a parabólica, que, nos anos 1990, impregnava a paisagem das cidades urbanas e rurais do país, a temática da tecnologia e da ciência tem recorrência no cancioneiro de Gilberto Gil desde o início de sua trajetória. Ela se apresenta em canções como Lunik 9 (1967), que fala da viagem à Lua; Cérebro eletrônico (1969), sobre a relação de poder entre homens e computadores; Cibernética, de 1974, e Pela internet (1997), mais temas referentes à informática.

Na primeira fase da carreira de Gil, de 1962 a 1966, suas canções traziam influência da religiosidade, principalmente católica, Louvação, Procissão, Ladainha, Testamento de Padre Cícero. Provavelmente, fazem parte do rol de lembranças da infância, em que procissões passavam à porta da casa de seus pais em Ituaçu, na Bahia, onde o menino morou com a família até 1951, ano em que se mudou para a casa da Tia Margarida para cursar o ginasial em Salvador – onde nasceu em 26 de junho de 1942.

Nos anos iniciais como autor, ele também começa a usar um elemento que seria muito presente em suas canções, a Lua: Meu luar, minhas canções; Serenata de Teleco-Teco; Do-ré-mi; Triste serenata; Back in Bahia e Retiros espirituais. A presença da Lua, assim como do sonho, da ilusão e do amor nas suas letras, remete aos poemas de inspiração parnasiana e romântica que escrevia na adolescência – seus escritos eram apreciados pela mãe, Claudina Passos Gil Moreira, professora primária, e pelo pai, o médico José Gil Moreira. O casal só teve dois filhos, Gil e Gildina. 

Da segunda fase de sua discografia, de 1967 a 1969, e que envolve o pré, o Tropicalismo e o pós, a primeira grande composição de Gilberto Gil foi, sem dúvida, Domingo no parque, faixa que encerra seu segundo disco solo, lançado em 1968 e cuja capa traz o artista envergando ironicamente o fardão da ABL – num chiste do destino, mais de 50 anos depois, no dia 8 de abril de 2022, estava o compositor baiano fazendo discurso de posse na Academia. A canção teria tudo para fracassar na sua intenção de ser popular. Afinal de contas, abordava um homicídio e um feminicídio. Mas o brilhantismo do compositor transformou o tema da violência em arte.


Mais de 50 anos depois, em 8 de abril de 2022, o compositor faz seu discurso de posse na sede da ABL, no Rio de Janeiro. Foto: Dani Paiva/Divulgação 

“O curioso nessas canções minhas com histórias e personagens é que eu não as imagino antes; elas são inventadas na hora. Elas não são construídas como os romances, onde as tramas vão sendo elaboradas antes do ato de escrever. Eu sento para fazê-las e elas vão se engendrando. Elas revelam um traço de escritor que eu poderia ser, se quisesse. Mas sou preguiçoso; prefiro fazer uma canção numa tarde a ficar um tempão num romance”, disse ao jornalista e compositor Carlos Rennó, organizador do livro Gilberto Gil, todas as letras (Companhia das Letras, 1996), que vai ganhar reedição atualizada neste ano.

“É engraçado hoje em dia eu me debruçar sobre essas coisas que eu não imaginava que pudessem ter o valor que a gente resgata agora, e que pra mim eram somente impulsos, assomos, e ver que de fato eram manifestações de alma poética, poesia já, reveladoras de um espírito de época, e das quais tudo o que eu vim a fazer depois parece carbono, cópia melhorada, desdobramento”, afirmou, na mesma publicação.

Domingo no parque nos lembra as edições de imagens do cineasta russo Serguei Eisenstein e apresenta influência direta do estilo recortado, moderno, coloquial, de versos curtos, do seu então sogro, Dorival Caymmi – o primeiro dos mestres baianos a inspirar a geração que revolucionaria a música brasileira nos anos 1960. A interpretação da música no III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, contribuiu para mudar os rumos da música do país, com a também cinematográfica Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, que foi acompanhada pelo grupo Beat Boys e ficou em quarto lugar. Por sugestão do maestro e arranjador Rogério Duprat, além da orquestra, o violão de Gil foi acompanhado pelo baixo e pela guitarra dos Mutantes, lançando as bases do som da Tropicália.

Três meses antes, para espanto de seu amigo Caetano Veloso, Gil estava na comissão de frente da passeata contra as guitarras na música brasileira, ao lado de Elis Regina, que encabeçava o protesto em oposição ao que a cantora gaúcha considerava imperialismo cultural. Gil participou da manifestação porque estava apaixonado pela artista, algo que justificaria sua evidente contradição. Domingo no parque conquistou o 2o lugar no festival, o primeiro ficou com Ponteio, de Edu Lobo e Capinam. Mesmo com o extremo nervosismo do baiano, a colocação lhe deu impulso para continuar “com ela”, a música. “Eu vivo o tempo todo com ela.”

***

Por conta da “deusa música”, Gilberto Gil abandonou também uma possível carreira acadêmica, pois havia passado em uma pós-graduação na Universidade de Michigan (EUA), mas decidiu permanecer no país, em São Paulo, onde aportou em 1965 para trabalhar na Gessy Lever – emprego que dava algum sentido à sua formação em Administração. Enquanto não decolava a carreira artística, ele vivia fazendo jingles. A experiência em criar trilhas sonoras para comerciais acabou sendo um preparatório natural para a obra que criaria em seguida. Os traços desse aprendizado podem ser observados em diversas canções, tais como as irresistíveis Refazenda e Sítio do Pica-pau Amarelo.

Antes de sair da Bahia para morar em São Paulo, Gil era relativamente conhecido na capital baiana como um artista iniciante que frequentava a emissora local. “Por volta de 1962, 1963, vi na TV Itapoan (a televisão só chegara a Salvador em 1960) um rapaz preto que cantava e tocava violão como os melhores bossa-novistas. Sua musicalidade exuberante, sua afinação, seu ritmo e sua fluência me entusiasmaram. Era excitante que pudesse haver por perto alguém tão especial”, contou Caetano Veloso, em Verdade tropical (1997). “A TV dava a ilusão de distância, mas eu pensava, com o coração batendo, que, dado o tamanho da cidade – e, sobretudo, do grupo de pessoas da classe artística ou mesmo da classe média –, era provável que eu encontrasse em Salvador esse genial músico de sorriso alegre e sobrancelhas bem-desenhadas. Minha mãe, que sempre gostou de música – e sempre gostou que eu gostasse de música – me ouviu elogiá-lo, e, toda vez que ele aparecia na televisão, me chamava para vê-lo”, escreveu.


Pelo punho do artista, a letra de Refazenda, do LP homônimo de
1975, que inicia a quadrilogia do "Re". Imagem: Reprodução
 

“Eu sentia alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele – e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era, evidentemente, um grande acontecimento a aparição dessa pessoa – eu via que se tratava de um músico de primeira linha, desde já um grande entre os grandes – e minha mãe festejava comigo a descoberta”, continuou Caetano. O produtor baiano Roberto Santana foi quem apresentou os dois em 1963. “Gil parecia tão feliz de me conhecer quanto eu a ele.” Era como um encontro de almas gêmeas. “Ele não apenas me estimulou e encorajou como também me ensinou tudo o que me era possível aprender, tornando-se, ele sim, meu verdadeiro mestre”, rememora Caetano.

Segundo o músico, Gil pensou em desistir da carreira quando Jorge Ben surgiu com o disco Samba esquema novo (1963), tão fenomenal quanto Chega de saudade (1959). O cantor carioca apresentava-se como um artista com um estilo próprio de tocar violão, na época o instrumento supremo da música brasileira. Quem não se desse bem com as seis cordas, provavelmente teria que pensar em fazer outra coisa da vida – embora o primeiro instrumento de Gil tenha sido o acordeom, que estudou por quatro anos sob inspiração do ídolo Luiz Gonzaga, ele dominava o violão. “Uma noite, cumprindo uma apresentação numa boate de Salvador, ele declarou que tinha deixado de compor e não cantaria mais nenhuma das suas composições, pois surgira um cara chamado Jorge Ben, que fazia tudo o que ele achava que deveria fazer – e fez um show todo de canções de Jorge Ben.”

Antes de Gil sair da Bahia para São Paulo em 1965, Caetano teve uma conversa com ele. Dessa vez, era este quem pensava em desistir da carreira na música. “Um desses exames de consciência me fez dizer-lhe, de coração, que tinha decidido não mais fazer música. Gil foi enfático: ‘se você não fizer música, eu também não faço’. E disse que não aceitava a hipótese, que não veria sentido em seguir sem mim. Isso era, para mim, a própria música falando. E recuei.”

Em 1967, ano em que lançou seu primeiro disco (Louvação), que tinha influências da música nordestina, Gil passou dois meses em Pernambuco. Na volta ao Rio de Janeiro, onde já estava morando depois de sair da Gessy Lever, encontrou-se com Caetano. Estava determinado a criar um movimento musical. “O fato é que ele chegou no Rio querendo mudar tudo, repensar tudo – sem descanso, exigia de nós uma adesão irrecusável a um programa de ação que esboçava com ansiedade e impaciência. Ele falava da violência da miséria e da força da inventividade artística: era a dupla lição de Pernambuco, da qual ele queria extrair um roteiro de conduta para nós.”

“A visão dos miseráveis do Nordeste, a mordaça da ditadura num estado onde a consciência política tinha chegado a um impressionante amadurecimento (o governo de Miguel Arraes tinha sido, até sua prisão e deportação em 1964, o mais significativo exemplo de escuta da voz popular) e onde as experiências de arte engajada tinham ido mais longe, e as audições de mestres cirandeiros nas praias, mas sobretudo da Banda de Pífanos de Caruaru. (…) Dizia-se apaixonado por uma gravação dos Beatles chamada Strawberry fields forever, que, a seu ver, sugeria o que devíamos estar fazendo e parecia-se com a Pipoca moderna, da Banda de Pífanos”, segue Caetano. A ideia de Gil era ir além das canções de protesto, dos elegantes acordes da MPB e do nacionalismo.

“Quando Rogério, ouvindo-me argumentar entusiasmado, provocou-me dizendo que eu era apenas um apóstolo e que Gil é que era o profeta, pareceu-me que ele lia meus pensamentos mais recônditos. Eu me sentia responsável por uma grande e bela tarefa, pois Gil e Gal (e também Bethânia, apesar de seu grito de independência) necessitariam sempre de minha orientação, direta ou indireta, mas a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo – e a partir de Gil”, afirma Caetano.

A influência dos Beatles e da cultura popular estão impressas em diversas composições tropicalistas, como no arranjo musical de Geleia geral, escrito por Rogério Duprat para a música de Gil. A faixa integra o disco-manifesto Tropicália ou Panis et circencis, cuja capa tem inspiração em Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). O álbum, lançado em 1968, traz algumas parcerias entre Gil e Caetano. Uma delas é Batmakumba. Macumba era um termo usado por Oswald de Andrade, um dos inspiradores do movimento Tropicalista, assim como Jorge Ben e a Jovem Guarda, e a ideia era compor um poema gráfico, que formava a letra K, baseado na poesia concreta.

***

A terceira fase da carreira de Gil, de 1970 a 1974, reúne canções feitas no exílio e na volta ao Brasil. Nesse período, compôs Oriente, Expresso 2222, Back in Bahia, Preciso aprender a só ser, Filhos de Gandhi, Lugar comum (pôs letra na música de João Donato) e Cálice (com a exigência do Festival Phono 73 de uma música exclusiva feita em parceria, criou o refrão e a primeira estrofe, iniciando essa notável colaboração com Chico Buarque). Na quarta fase, de 1975 a 1979, lançou álbuns marcantes da tetralogia do Re: Refazenda, Refavela, Refestança (com Rita Lee) e Realce. Nesse período, ainda integrou os Doces Bárbaros, com Caetano, Gal Costa e Maria Bethânia.


Gilberto Gil e banda em show da turnê do álbum OK OK OK (2018), que ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de MPB. Foto: Cris Almeida/Divulgação

Nos anos 1980, lançou os discos Luar (1981), Um Banda Um (1982), Extra (1983), Raça humana (1984), Dia Dorim, Noite neon (1985) e O Eterno Deus Mu Dança (1989), com músicas que se tornaram hits, como Extra 2 (O rock do segurança), Pessoa nefasta, Tempo rei, Índigo blue, A paz (com João Donato), Amarra o teu arado a uma estrela, Do Japão, Nos Barracos da cidade e Vamos fugir (a sua música mais tocada no país, de acordo com o Ecad), as duas últimas feitas em parceria com o baixista Liminha, que, a partir de 1981, produziu uma série de discos seus.

Nos anos 1990, destacam-se discos como Tropicália 2, com Caetano, e músicas como Parabolicamará, Pela internet e Buda nagô, um belo poema feito para Dorival Caymmi, cuja letra pode servir ao próprio autor da homenagem: “Dorival é um Buda nagô / Filho da casa real da inspiração / Como príncipe, principiou / A nova idade de ouro da canção”. Esse tributo ao icônico compositor é a mais pura representação de sua frase “Fazer o canto, cantar o cantar”.

Dorival junta-se a Bob Marley, Luiz Gonzaga, Jorge Ben, João Gilberto e Beatles nas influências da carreira de Gil, que transitou, em quase 60 discos, por diversos gêneros, como afoxé (Filhos de Gandhi), ijexá (Andar com fé, Toda menina baiana), reggae (Vamos fugir, Esotérico, Extra, Nos barracos da cidade e A novidade), pop rock (Punk da periferia), disco music (Realce), forró (Na casa dela) e samba (Eu vim da Bahia, Um abraço no João).

Gil é tão ímpar, que compôs uma música premonitória, Com medo, com Pedro (1969), quando Sandra ainda não havia engravidado de Pedro, filho que faleceu, aos 19 anos, em 1990, de acidente de carro: “Se você cair, não tenha medo / O mundo é fundo / Quem quiser no fundo encontra a porta / Do fim de tudo / Bem junto da porta está São Pedro / No fim do fundo / Findo / Fundo / Findo”. A morte do filho foi mencionada em seu discurso de posse na ABL como sua maior dor. Gil também fez uma música para o divórcio com Sandra, cujo título leva o apelido dela, Drão: “O amor da gente é como um grão / Tem que morrer pra germinar”. Por isso, não é de se estranhar que ele consiga reunir numa mesma festa, como a dos seus 50 anos, suas três ex-esposas (Belina, Sandra e Nana Caymmi) e a atual (Flora).

Há diversas formas de se conhecer um artista da música. A primeira de todas, obviamente, ouvindo seu ofício de compositor, letrista, músico, cantor, arranjador, produtor. Outra é conhecer sua trajetória, biografia, histórias e também através de suas entrevistas. Mas uma importante é o contato direto com ele. Para quem é jornalista e teve a oportunidade de entrevistar e conversar com Gil, sua simplicidade magnânima transborda no trato pessoal, destoando do esnobismo que costuma permear o mercado musical.

Gil faz parte da vida do Brasil há tanto tempo, que cada um de nós deve ter, pelo menos, uma imagem sua gravada na memória. São tantas: exultante no Festival da Record; caminhando por Londres no exílio; no Festival da Ilha de Wight; meditando; depondo na polícia de Florianópolis sobre a apreensão de um cigarro de maconha; com os Doces Bárbaros na turnê do quarteto e no desfile da Mangueira; nos cortejos dos Filhos de Gandhi; com Chico Science no Abril pro Rock; ao lado de Caetano no clipe de Haiti; no show Dois amigos, um século de música; com a filharada da imensa família Gil na live junina de 2020; comendo uma moqueca de banana preparada por Bela Gil; na apresentação com o BaianaSystem; percorrendo o Brasil como Ministro da Cultura do governo Lula; colocando Kofi Annan pra tocar percussão e a ONU pra dançar, ao som de Toda menina baiana.


Foto: Fernando Young/Divulgação

Cada música de Gil tem inspirações diferentes. Toda menina baiana foi feita para a filha Nara Gil. E uma de suas mais belas nasceu de um relato de Caetano, após este ter visto Super-homem – O filme, em 1979. Gil, que morava na Bahia, estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos, onde ia fazer a excursão do disco Nightingale (gravado nos EUA, com produção do Sérgio Mendes) e gravar o álbum Realce, em Los Angeles. Ele ia pegar o avião logo cedo e não foi para a sessão de cinema. A uma da manhã, Caetano chegou empolgado, falando alto com os amigos sobre o filme.

Ao ouvir o barulho, Gil levantou-se e foi saber do enredo. Antes de voltar para a cama, pegou papel, caneta e violão. Fascinado como a imagem do Superman mudando a rotação da Terra para voltar no tempo e ressuscitar sua amada Lois Lane, compôs, em uma hora, a música e a letra. Na manhã seguinte, mostrou a Caetano. Um mês depois, gravou, derramando, mais uma vez, o bálsamo sobre nós: “Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter / Que nada, minha porção mulher / Que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É a que me faz viver”. No final, arremata: “Quem sabe, o Super-homem venha nos restituir a glória / Mudando, como um deus, o curso da história / Por causa da mulher”.

Gil, que começou como autor de jingles, acostumado a fazer música por encomenda, recebeu um pedido diretamente de Roberto Carlos, o artista mais popular do país. Mas “fracassou” na tentativa. Como o Rei é muito religioso, Gil imaginou criar uma música nessa direção. Compôs Se eu quiser falar com Deus, uma de suas canções mais profundas e filosóficas. Roberto não gravou, porque, segundo intermediários, não era exatamente a ideia que ele tinha do conceito de Deus. O mundo, porém, ganhou mais uma joia. Ela foi gravada por Elis, a intérprete que mais cantou o baiano. A música virou faixa do último disco da cantora e acabou se tornando o adeus dela, uma de suas musas.

Nesses 60 anos de carreira, Gil nos ensinou tanto, que não caberiam aqui todos os grandes ensinamentos de sua sabedoria, mas podemos destacar uma: “Sabe, gente / É tanta coisa pra gente saber / O que cantar, como andar, onde ir / O que dizer, o que calar, a quem querer / Sabe, gente / É tanta coisa que eu fico sem jeito / Sou eu sozinho e esse nó no peito / Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder / Sabe, gente / Eu sei que no fundo o problema é só da gente / É só do coração dizer não quando a mente / Tenta nos levar pra casa do sofrer / E quando escutar um samba-canção / Assim como / Eu preciso aprender a ser só / Reagir / E ouvir / O coração responder / Eu preciso aprender a só ser”.

Gil é uma árvore-gente sagrada, de ramificações incomensuráveis, que, transcorrendo, transformando as velhas formas do viver, chega aos 80 anos mais múltiplo e gigante do que nunca. Sua carreira representa a vitória da excelência, a sobrevivência de uma raça, a resposta dos não retornados. Simboliza o triunfo da tradição, criatividade, inteligência, arte, beleza, alegria, bondade, paz e do amor. Gil faz 80 anos mais mestre do que nunca. Enquanto isso, sua alma sábia, leve e iluminada ainda cheira a talco, como bumbum de bebê.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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