Portfólio

Delson Uchôa

A condição carnal da arte

TEXTO Ariel Sobral

01 de Junho de 2022

'Tutti-frutti colônia', da série 'Bicho da seda'. Impressão fotográfica 90 x 120 cm, 2015

'Tutti-frutti colônia', da série 'Bicho da seda'. Impressão fotográfica 90 x 120 cm, 2015

Imagem Estúdio Orra/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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É ação que exprime existência.” Essa foi a resposta do artista alagoano Delson Uchôa (Maceió, Brasil, 1956) sobre a prática de pintar. E sua afirmação se faz visível em todas as suas obras. Carregadas de cor, luz e textura, as telas de Uchôa são compostas por correntes energéticas que parecem se autoalimentar, em um processo de autofagismo, trazendo a sensação de que são organismos vivos capazes de se comunicar com quem as observa. O plano, o tridimensional, o abstrato, o fotográfico, o geométrico, tudo é pintura. De cores incandescentes e vibrantes que se expandem e guardam o segredo da sua luminosidade na menor distância entre o olhar e a obra. Sua arte híbrida e sobreposta reflete as possibilidades que só a imaginação pode oferecer.

Com um largo histórico de participação em exposições coletivas – como bienais de Veneza, São Paulo, Havana e Cairo – e tendo obras em coleções de instituições como Inhotim (MG), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Vogt Collection (Berlim, Alemanha), York Stack Collection (Berlim, Alemanha), Delson Uchôa não se deixa ludibriar pela sua trajetória vasta nos diferentes quadrados do mundo, e segue reafirmando a filosofia que o sustenta como artista: existir. Recentemente, teve duas exposições individuais simultâneas em cartaz no Recife, Pintura vingada, no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), e Exercícios geométricos vingados, na Garrido Galeria.


Pomo solar, da série Bicho de seda. Impressão fotográfica 90 x 120 cm, 2015.
Imagem: Estúdio Orra/Divulgação

Nascido na cidade de Maceió – também conhecida como “Caribe Brasileiro” –, Delson leva ao seu trabalho as belezas que tanto consagram a sua terra natal. Declaradamente um apaixonado pelas suas origens litorâneas, tudo o que faz reflete esse apreço e elementos do ambiente em que vive. E é essa familiaridade com a cidade e seu entorno que aprimora suas percepções para a construção de sua obra. As cores quentes e vibrantes são recorrentes nas suas criações, memorando o calor e a tropicalidade do Nordeste do país. As estampas floridas, as paisagens da caatinga, a luz e o retrato de uma modernização que afeta a natureza, abrem uma possibilidade experimental na arte.

Grandiosidade também é uma definição recorrente do trabalho do artista. Não somente pelas técnicas utilizadas, mas pelas dimensões que ocupam nos espaços onde são expostas. As grandes dimensões são propositais para gerar uma sensação de pertencimento e integração entre arte e vida. “Informação, estímulo ao conhecimento, sem faltar testemunho de quem vive no cinturão luminoso do planeta, no Nordeste do Brasil. Tudo isso através da temperatura da luz, da cor vibrante da nossa estridência cultural”, define o artista.

Delson não indica um momento específico para o seu despertar para a arte. Segundo ele, a pintura nasceu com os homens na pré-história e ele apenas não permite que a prática lhe escape, fazendo da pintura um exercício constante e essencial na documentação das reflexões do período em que é produzida. Mesmo assim, podemos adotar como marco o ano de 1981, quando ele se dedicou ao estudo da pintura na Fundação Pierre Chalita, instalada num casarão na Praça Floriano Peixoto, no centro de Maceió. O prédio também funciona como museu, que abriga uma coleção de cerca de 2.000 peças de arte sacra, entre as quais esculturas, pinturas e objetos decorativos.

Paralelamente aos seus estudos artísticos, Delson também se dedicava à formação em Medicina. E esses dois campos, que se apresentam tão distintos, encontram convergências nas obras do artista, como percebe Steve Coimbra, cocurador, ao lado de Moacir dos Anjos, de Pintura vingada, ao comentar o processo de criação da tela Paisagem agrária e fenda tectônica em quadrado, que integrou a individual no Mepe.

“Os instantes fragmentados iluminam o caminho processual de Delson Uchôa, o depoimento diário da pintura como ato cirúrgico sobre um corpo de tinta que proclama por sua existência. O fazer artístico percorre o couro por linhas incandescentes que têm a arquitetura da luz como guia, tecendo uma teia energética que o artista usa como apoio para se comunicar com seu estado, até então, imaterial”, escreve Steve Coimbra.


Pintura objeto. 39 caixas + 4 tapetes, sem data. Imagem: Estúdio Orra/Divulgação


Paisagem agrária e fenda tectônica em quadrado. Pintura acrílica e resina sobre lona, 185x221 cm, 2020. Imagem: Estúdio Orra/Divulgação


Hemoglobina. Acrílica e resina sobre lona, 188 x 262 cm, 2009. Imagem: Estúdio Orra/Divulgação

Peças costuradas, pintadas, remontadas e pigmentadas são características da produção deste artista. São, no final das contas, procedimentos cirúrgicos que revelam uma “microscopia da arte”, como se fosse possível, através de um microscópio, ampliar e visualizar um DNA celular das partículas que compõem uma estrutura. “Depois de 1981, guardei a medicina como componente do meu processo criativo. Até hoje, trabalho apresentando o corpo da pintura. Eu quero falar da condição carnal da arte, da sua existência entre nós”, afirma.

Repensar a pintura explorando diferentes suportes e materiais na sua composição é, portanto, exercício constante na trajetória de Delson Uchôa. Resina, lona, couro, a multiplicidade de camadas, o uso de cores vibrantes, de tecido, objetos, tudo se transforma em possibilidade na hora de criar uma mensagem. “Uso toda matéria que se encontra ao meu alcance, tudo que eu possa experimentar. A arte avança à medida do que se conhece, da herança, da tradição, o resto é experimentação.”

A necessidade de experimentar resulta numa arte participativa, ou em “telas habitáveis”, já que, na maioria das vezes, o público pode não apenas observá-las, mas também interagir com elas através do toque, manuseio e inserção em obras monumentais capazes de ocupar metros de altura, se penduradas, e de extensão, se colocadas no chão. Essas perspectivas levaram a incursões mais recentes do artista no campo da performance e da fotografia. Contudo, para Uchôa, essas linguagens permitem que ele pinte de forma diferente, expandindo o universo da pintura para os olhos que anseiam por mais.


Bastidor lunar. Acrílica e sombrinha chinesa sobre lona, 130 x 153 cm, 2020. Imagem: Divulgação

“Sou pintor, e tudo que eu faço é pintura. A fotografia funciona como entremeio, um recurso para a pintura expandida. Penso na pintura como um corpo para habitar entre nós, quero que ela também seja vista com os dedos, também sei que ela fala para os olhos que sabem ouvir. Os suportes variados ajudam a sensualizar, estimulam a libído, o desejo de pegar, roçar, entrar. Tenho interesse em humanizar a minha pintura, por isso ela conversa com a medicina, e quando exposta é permitido o toque, em algumas você pode até entrar dentro”, explica.

Assim como a materialidade, a geometria também carrega um significado elementar no repertório do artista. Os “exercícios geométricos”, como os chama, são pensados como malhas, conexões moleculares, paisagens subatômicas, uma espécie de metaverso. Telas precisamente desenhadas de forma contínua, e agrupadas em aspectos matemáticos capazes de descrever um sistema de símbolos que contam uma história. Como é o caso do quadro Rapsódia americana, feito em tinta acrílica, resina e lona, composto por círculos, quadrados, triângulos, cruzes e outras formas. A obra, que apresenta um degradê de cores indo das mais claras às mais intensas, é uma homenagem às luzes e as cores do leste do nordeste brasileiro. A tela de grande escala recria a exuberância da passagem do dia no céu do litoral.

Um dos principais artistas em atividade no Brasil, Delson Uchôa teve participação no evento que marca a retomada da pintura de grandes dimensões no país, a coletiva realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, Como vai você, Geração 80?, em julho de 1984. Composta por 123 artistas – entre eles Beatriz Milhazes (1960), Alex Vallauri (1949-1987), Cristina Canale (1961) e Daniel Senise (1955) –, a exposição trouxe uma novo olhar para a produção cultural, questionando tendências do período, como a produção artística da década de 1970, que teve a predominância da arte conceitual. O contexto social e cultural era o principal combustível à criação, já que os jovens artistas viam surgir a esperança de um novo cenário para a arte no Brasil, com o fim da ditadura militar. O ato de liberdade artística se apresentou como um projeto experimental que incentivava a subjetividade daquela geração.


Pintura habitada. Instalação com 10 peles de tinta, 300 x 300 cm, 2016.
Imagem: Estúdio Orra/Divulgação

Os artistas da Geração 80, por mais distintos que fossem, compartilhavam características nos seus trabalhos, como peças em grandes dimensões, combinação incomum na paleta de cores, acabamentos brutos, construção coletiva, expansividade, otimismo, e acima de tudo, o compromisso em trazer a pintura para o lugar de destaque. “É o momento em que o país acerta o passo com o que se produz de arte em tempo real no mundo. A Geração 80 acontece ao mesmo tempo que a Figura Heróica, na América do Norte, o Neofauvismo, em Barcelona, e os Novos Bárbaros, em Colônia, Alemanha”, recorda Uchôa. A exposição não se apresentou como um protesto contra a produção artística da época, mas como uma possibilidade de se pensar a expressividade através da pintura, que resultou na entrada para a história como um dos eventos mais importantes da arte contemporânea brasileira.

EM ESTADO DE ARTE
Desde então, para Uchôa, a arte se tornou mais que uma expressão natural de inquietações e pontos de vista, mas um habitat materializado. A casa-ateliê com jardim onde vive o artista se apresenta como uma entidade, quase uma musa inspiradora e mãe embrionária de novos projetos. “Viver em permanente estado de arte”, é assim que define a sua residência, que o estimula a explorar a fusão entre arte e natureza. Seu lugar de trabalho assume papel fundamental no processo do surgimento das novas peças. O chão da casa, coberto de resina e tinta, costuma ser o início das obras.

São as chamadas “telas cultivadas”, peças que se formam a partir de um processo de constante adição de novos elementos. A partir dessa matriz, o chão é descascado, transformando-se em camadas e sobreposições, num processo pictórico em que o artista faz implantes, transplantes, suturas, e materializa as suas ideias. Há obras que permanecem como work in progress. Como, por exemplo, as peças Muxarabiê (1991-2000-2003-2005) e Maxixe (1989- 002), que ganharam novos direcionamentos com a revisitação do autor em diferentes períodos.

Contudo, são as vivências que germinam o nascer de novas ideias. Todo conhecimento adquirido através da ciência, literatura, do meio ambiente, da oralidade popular são geradores que promovem a criação de perspectivas que o artista chama de uma “responsabilidade com a contemporaneidade”. É ter olhos e ouvidos atentos para os anseios do momento em que vivemos, tendo como referência o que já foi apresentado ao mundo como artístico e científico. São os registros de uma convivência constante com a pintura que se tornam vestígios de vida registrados nas obras.


Zigoto inglês. Pintura objeto/acrílica sobre poliéster e sombrinhas chinesas, 130 cm, 2014-2015. Imagem: Estúdio Orra/Divulgação

Uma das mais significativas aquisições recentes desses registros de Uchôa é a utilização das sombrinhas chinesas como elemento pictórico nas suas composições. Esse recurso tão peculiar se apresenta em fotografias, pinturas e mesmo na construção de peças objetuais, provocando uma estranha identificação com as paisagens do nordeste brasileiro.

Para o artista, esses objetos vão além da beleza visual, porque pretendem discussões políticas, econômicas, sociais e ambientais. Como visto na obra Jardim Extremo/ Bioma Caatinga, uma fotografia, ou uma pintura no suporte digital, que exibe várias sombrinhas chinesas coloridas, como flores, infusionadas na paisagem da caatinga.

“Eu as compro como se fossem pigmentos”, diz ele, em relação às sombrinhas. “Por trás, elas falam de geopolítica, à medida que são produzidas na China, fruto de um trabalho industrial degradante, o trabalho escravo. Também chamo a atenção para o meio ambiente, por se tratar de um produto ordinário, não biodegradável, que com frequência é descartado na natureza. É curioso que as imagens decorativas da flora tropical impressa no poliéster das sombrinhas dá uma volta no mundo, e abre um diálogo com a globalização”, interpreta.

A intensidade e liberdade apresentadas pelas obras de Delson Uchôa são um manifesto à brasilidade e à necessidade de se pensar a arte como elemento pertencente a um povo capaz de habitar imagens, cores e formatos através de um exercício constante de questionar e ser questionado. Entendendo a arte como um componente intracelular no corpo de qualquer ser humano que possui a prática de observar o mundo ao seu redor. “Viver arte é criar problemas para resolvê-los, em seguida surgem outros problemas, tal qual a vida. A arte é irresoluta, nasceu com a humanidade e só findará com ela”, concluiu.

ARIEL SOBRAL, jornalista.

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