Comentário

As visionárias

Seis livros para ler mulheres que, no século XX e neste, estenderam as formas narrativas e, a partir de suas escritas e pesquisas, nos colocam a refletir a literatura e a sociedade

TEXTO Kelvin Falcão Klein

01 de Junho de 2022

Ilustração Janio Santos

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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Quando você abre um livro de Claudia Rankine, reconhece de imediato que algo diferente está acontecendo ali. Existe uma voz muito específica que fala do mundo atual com comprometimento e generosidade, denunciando a antiga lógica e os truques tradicionais dos opressores. Em Só nós: Uma conversa americana (Todavia, tradução de Stephanie Borges), Rankine mescla ensaio, poesia, fotografia e autobiografia para contar uma história sobre “justiça”. A poesia – e, com ela, o desafio ao pensamento crítico – começa já no título: “só nós” é a tradução de just us, mas a locução original ecoa também a palavra justice, “justiça”. Entre o falado e o escrito, corre um rio subterrâneo feito de multiplicidade e disseminação de sentidos, que Rankine utiliza de forma deliberada, levando o leitor em direção àquilo que está escondido. Sua literatura – sua exploração complexa da linguagem como arte – é feita desse desejo de romper as convenções racistas, misóginas e preconceituosas das sociedades contemporâneas, culminando em livros de rara força e beleza.

Nascida na Jamaica em 1963, Rankine se estabelece como poeta e ensaísta no mundo anglófono ao longo dos anos 1990, percurso coroado em 2016 com o célebre Prêmio MacArthur, a “bolsa dos gênios”. Com o dinheiro, Rankine funda o Instituto do Imaginário Racial (TRII), um coletivo interdisciplinar que fomenta o trabalho de artistas e escritores dedicados à crítica da branquitude e dos dispositivos de opressão racial. Em um de seus trabalhos mais celebrados, Cidadã: Uma lírica americana (Jabuticaba, tradução de Stephanie Borges), Rankine articula poesia, ensaio e arte visual em sete capítulos meticulosamente construídos, abordando o racismo tanto pelo viés pessoal quanto pelo viés coletivo.

O livro percorre uma série de casos e exemplos, de Serena Williams a Hennessy Youngman (personagem de Jayson Musson), passando pelo furacão Katrina, pelos assassinatos de Trayvon Martin e James Craig Anderson, o discurso de inauguração de Obama, a cabeçada de Zidane em Materazzi na Copa do Mundo de 2006 e assim por diante. Os textos de Rankine falam da agressão e do silêncio, do corpo e da sexualidade, dos estímulos midiáticos e afetivos, da sensação de esgotamento típica da vida sob o capitalismo tardio. Existe um ponto em que se torna difícil descrever ou comentar o trabalho de Rankine – sua poética exige um contato direto, uma imersão, dada a complexidade de seu ofício de condensação de camadas de sentido.

Em paralelo aos livros de Rankine, é preciso também celebrar o recente lançamento do monumental trabalho de Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos: Histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais (Fósforo, tradução de Floresta). Hartman, que leciona na Universidade Columbia, em Nova York, define seu método neste livro como aquele “da fabulação crítica”, combinando escrita criativa com pesquisa em arquivos e documentos, analisando imagens, textos literários, depoimentos e trabalhos teóricos, atravessando referências como Paul Laurence Dunbar, W.E.B. Du Bois e Billie Holiday. Ela afirma que seu livro é um “álbum”, “um arquivo do exorbitante”, ou ainda, “um livro dos sonhos pela existência diversa”: “A ideia disparatada que anima este livro”, continua Hartman, “é a de que jovens negras foram pensadoras radicais que imaginaram incansavelmente outras maneiras de viver e nunca deixaram de considerar como o mundo poderia ser de outra forma”. Ela busca suas personagens sobretudo na população dos cinturões negros da Filadélfia e de Nova York, afligida por décadas de políticas discriminatórias – que geram não só as “desordeiras” e “encrenqueiras” do título, mas também seus “belos experimentos” de reinvenção diante da dificuldade.

Hartman examina a revolução da vida íntima dessas populações no início do século XX: amor livre, casamentos transitórios, parceiros em série, coabitação fora do casamento, relações queer e maternidade solteira estavam entre as mudanças radicais que alteraram a vida cotidiana e desafiaram as crenças tradicionais sobre namoro, amor e casamento. Ao lidar com a questão do que é uma vida livre, muitas jovens criaram formas de intimidade e parentesco que eram indiferentes às regras de respeitabilidade que vinham sempre “de fora”. Elas escolheram e rejeitaram amantes, revisando na prática o significado do casamento e realizando experimentos – entre a saudade e o desejo – sobre como viver. “Por décadas fiquei obcecada por figuras anônimas, e muito do meu trabalho intelectual se dedicou a reconstruir a experiência do desconhecido e a recuperar as vidas menores do esquecimento”, escreve a autora, e continua: “Essa foi a minha maneira de retificar a violência da história, compondo uma carta de amor a todos aqueles que foram prejudicados e, sem estar totalmente ciente disso, lidando com o inevitável desaparecimento que me esperava”. Vidas rebeldes, belos experimentos, em outras palavras, pode ser encarado como um magistral esforço de ligar o particular e o coletivo, ou seja, as biografias individuais às grandes forças sociais, que moldam as vidas em comunidade.


Obras de Hartman, Rankine, Eilenberger, Martin, Cixous e Le Guin recentemente lançadas no Brasil. Imagens: Reprodução

Hartman já havia explorado um pouco esse filão em um livro anterior, Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão (Bazar do Tempo, tradução de José Luiz Pereira da Costa). A autora viaja a Gana, percorrendo o caminho dos cativos do interior até a costa, retraçando detalhes do comércio escravista no Atlântico, ao mesmo tempo em que investiga pistas de sua própria linhagem. A “perda da mãe” diz respeito à imposição do esquecimento ancestral realizada pela escravidão – Hartman retorna à África, tantas gerações depois, mas não encontra ninguém de sua família (como ela própria escreve, vê-se como “uma estranha em busca de estranhos”). Como Rankine, Hartman também utiliza a própria vivência como instrumento para melhor abrir as questões do contemporâneo, pensando – simultaneamente – em como as raízes do passado influenciam nas vivências do presente.

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Essa estratégia de articulação entre o geral e o particular tem sido decisiva para a renovação da literatura e da arte dos últimos anos. Em vários casos, a mescla entre subjetivo e coletivo é enfatizada por um experimento na forma, no gênero e no estilo da escrita – novas formas de estar no mundo acarretam novas formas de utilização da linguagem e das formas literárias tradicionais. Isso é flagrante em Rankine, Hartman e também em uma jovem autora francesa, Nastassja Martin, autora de um breve e impressionante livro, Escute as feras (Editora 34, tradução de Camila Boldrini e Daniel Lühmann). Martin parte de uma experiência pessoal traumática: o encontro com um urso durante suas pesquisas etnográficas na Sibéria. Um ensaio sobre a vida no extremo norte do mundo se transforma em uma meditação poética sobre os contatos entre o humano e o animal; uma reflexão antropológica sobre exóticas formas de vida se transforma em exercício narrativo acerca do medo e da fragilidade da existência – tudo isso está contido em Escute as feras. Imbuída do aparato teórico e conceitual conquistado em uma universidade francesa de elite, Martin se vê sozinha diante da vastidão do gelo, diante da solenidade abrupta do urso. A partir daí, sua perspectiva se transforma e ela já não é mais a mesma: “Só os humanos dão tamanha importância ao que os outros pensam deles. Viver na floresta é um pouco isso: ser um vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles”.

As palavras de Martin resumem o que vem sendo dito até aqui sobre as estratégias crítico-artísticas na contemporaneidade: “ser um vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles”. Oscilar entre registros estilísticos, entre pertencimentos ontológicos, entre reivindicações de justiça e liberdade. É preciso reconhecer o outro, reivindicar urgentemente esse reconhecimento. Como escreve Rankine em Só nós: “Algumas realidades não são divertidas. Elas são feitas de verdades mais vitais do que risíveis, não importa o quanto ou quão pouco tempo você tenha”.

Hartman, por sua vez, ao comentar a obra Black Reconstruction in America, de Du Bois, afirma que ele busca “transformar radicalmente nosso entendimento da democracia ao abordar o estado das pessoas escravizadas e se referir à greve e à fuga dos escravizados como a reconstrução da democracia estadunidense”, e que isso só é possível quando o sujeito se coloca “em primeiro plano”, imaginando “visões, aspirações e práticas que nunca foram arquivadas”. Oscilar entre outros seres viventes e, nesse movimento, imaginar visões e práticas que sejam justas e libertárias, especialmente para as parcelas menos favorecidas das comunidades – em qualquer quadrante do mundo.

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Gostaria de reter esse termo explorado por Hartman, visões, e o modo como a palavra evoca uma ampliação dos sentidos em direção tanto ao passado quanto ao futuro. Essa ideia constitui o ponto de sustentação do livro As visionárias, do filósofo alemão Wolfram Eilenberger, recentemente lançado no Brasil (Todavia, tradução de Claudia Abeling). O trabalho de Eilenberger tem um recorte temporal específico, cobrindo o período de 1933 a 1943, e dedicando-se ao resgate das obras de quatro pensadoras de enorme relevância: Simone de Beauvoir (1908-1986), Simone Weil (1909-1943), Ayn Rand (1905-1982) e Hannah Arendt (1906-1975) (o subtítulo também é revelador: “Quatro mulheres e a salvação da filosofia em tempos sombrios”). Analisando detalhadamente o pensamento dessas quatro “visionárias”, Eilenberger argumenta que a emancipação do pensamento pode ocorrer também durante situações extremas, que tornam ainda mais evidente a importância de categorias como as de justiça e liberdade.

Trata-se de uma espécie de biografia coletiva, feita de quatro personalidades que se cruzam e se atravessam. Em paralelo, encontramos também um registro narrativo de uma época precisa, entreguerras e os anos iniciais da Segunda Guerra Mundial. Eilenberger começa com quatro fotografias em preto e branco, que dialogam entre si: Hannah Arendt durante o doutorado em Heidelberg, 1927; Ayn Rand em uma fotografia de 1930; Simone Weil no uniforme das Brigadas Internacionais, 1936; Simone de Beauvoir em Paris, em um quarto de hotel, 1945. Essa visualidade episódica se mantém ao longo de todo o livro, que é dividido em uma série de capítulos que trazem um título, um intervalo de tempo de referência e uma descrição rápida dos rumos que cada vida tomará naquele período. Dentro das seções, a montagem é feita de parágrafos que fazem a narrativa oscilar entre uma personagem e outra, sem uma preocupação muito rigorosa em delimitar as conexões entre elas – o fundo histórico compartilhado opera a costura: a ascensão de Hitler, a guerra, a filosofia como espelho da vida. A paisagem construída por Eilenberger é, em certo sentido, “quadrifônica”, uma espécie de corrente alternada que capta as singularidades das quatro “visionárias”, afastando-se de uma ideia da História como relato contínuo e cronologicamente organizado (e, sim, um relato feito de anedotas, fábulas, detalhes, amores e viagens).

Lendo este livro com os olhos voltados para o presente, percebemos que a “tempestade do progresso” de que fala Walter Benjamin nos trouxe ao ponto que as quatro visionárias desejavam, mas de maneira diversas: Rand e Arendt discordam a respeito das relações entre individualismo e universalismo, por exemplo (e qual dos dois termos deve prevalecer); Weil e de Beauvoir discordam sobre o nível de envolvimento e imersão pessoal nas lutas ideológicas e coletivas.

Mas a consequência mais evidente do “progresso”, no final do século XX e início do século XXI, é que as novas gerações raramente atribuem uma natureza política aos seus problemas. Consequentemente, muitas vezes não buscam uma solução desse tipo para eles, ou seja, uma solução global, que coloca os assuntos de outros e os próprios no mesmo nível (o desejo de “ser um vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles”, como escreve Nastassja Martin). Para as visionárias dos anos 1930, contudo, foi diferente: é possível dizer que não fazem nada além de buscar soluções políticas e comunitárias para problemas pessoais. A curta linha biográfica que Simone Weil entrega ao Dr. Broderick, o médico de plantão que um dia a recebeu no sanatório Kent, resume bem: “Sou filósofa e me interesso pela humanidade”.


Arte de Janio Santos sobre fotos de Divulgação

Esse interesse foi transmitido adiante e alcançou outra filósofa, Hélène Cixous, que publica nos anos 1970 uma obra transformadora, O riso da Medusa, lançada recentemente no Brasil (Bazar do Tempo, tradução de Natália Guerellus e Raísa França Bastos). Cixous parte de um problema conhecido e recorrente: a ausência de vozes femininas nos registros de discursos das sociedades ocidentais, desde a teoria até a literatura, passando pela crítica, pela política, pelo cinema, pelo sistema judiciário e assim por diante. Em primeiro lugar, o que chama a atenção do leitor no texto de Cixous é seu empenho em dificultar o sentido. Ou seja, seu esforço de fazer do texto uma conquista, um processo e um exercício, algo que possa envolver as duas extremidades (emissão e recepção) em uma dinâmica compartilhada de pensamento. Cixous recorre à filosofia, à psicanálise e à literatura para montar um ensaio que não está inteiramente em nenhuma dessas posições, e é dessa indeterminação que retira sua potência estética. Assim como a Medusa, que leva ao extremo a dificuldade inerente a todo relacionamento, também o raciocínio ensaístico de Cixous gravita ao redor do impossível: é preciso defender e estimular a “escrita feminina” até o ponto em que ela já não seja possível ou desejável, até o ponto em que ela seja apenas “escrita”, sem a marca obrigatória de uma exceção.

Esse panorama construído a partir das presenças de Rankine, Hartman, Martin e Cixous fica cada vez mais complexo à medida que ampliamos o foco. A Editora Relicário, por exemplo, iniciou em 2022 a publicação da Coleção Marguerite Duras, tendo já lançado as obras Escrever (tradução de Luciene Guimarães de Oliveira) e Hiroshima meu amor (tradução de Adriana Lisboa) da grande escritora francesa. Recentemente tivemos acesso também ao trabalho de Ursula K. Le Guin, romancista, ensaísta e poeta, ligada sobretudo aos gêneros da fantasia e ficção científica: seu ensaio A teoria da bolsa de ficção, que desafia a mitologia do Herói e sua lógica bélica, foi publicado pela N-1 Edições (tradução de Luciana Chieregati). Basta procurar com um pouco de atenção, desviando o foco dos centros habituais de informação, para descobrir novas vozes, não apenas contemporâneas, mas também resgatadas de uma tradição sempre em vias de transformação. Observando esse panorama, notamos que não se trata apenas de variedade, mas sobretudo de multiplicidade: diferentes visões de um mesmo mundo, não aquele que temos, mas aquele que devemos lutar para ver nascer.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).

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