Ensaio

A passageira

Escritora narra sua passagem e suas vivências na Estônia, país que fez parte da antiga União Soviética

TEXTO Lorena Martins

01 de Junho de 2022

Garimpo no antik

Garimpo no antik

Foto ALINE BELFORT/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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Para Aline Belfort e Nicolas Behr

O texto não ‘comenta’ as imagens. As imagens não ‘ilustram’ o texto: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, aquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagens, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos.”
Roland Barthes, em O império dos signos


tram elétrico estoniano remonta aos anos 1930, e segue na ativa. Eu adoro pegar o tram, é o bonde que eu nunca tive a chance de usar no Brasil, não tive idade para viver o que meu país enterrou, mas sinto imensamente o que ele enterra. Na corrente de uma modernidade que não se confirmou, nada mais distante do Brasil e tão próximo do desenvolvimento que o velho tram, que hoje celebra, nostálgico, seus heróis. Os bondes são decorados com imagens daqueles que tentaram salvar o país de tantas dominações – alemã, dinamarquesa, sueca, russa, soviética e nazista. É bastante importante e igualmente melancólico. Enquanto a Estônia busca sua identidade atormentada, tento entender onde fui parar. O circuito do tram é curto, a cidade é pequena, eu poderia andar em círculos por horas. Como fazia na minha cidade, Porto Alegre, quando saía da Casa de Cultura Mário Quintana absolutamente impactada por algum filme, pedia suco de laranja às lágrimas ao vendedor de guarda-chuvas, pegava o ônibus C1 e rodava até que me mandassem embora.


Kuperjanov (no painel, atrás das passageiras) foi um dos heróis 
da Guerra da Libertação da Estônia, em 1919, contra a ofensiva soviética.
Foto: Lorena Martins 

O tram Kadriorg – Kopli leva-me do parque onde Pedro, o Grande, desfrutava os verões, até o Telliskivi, antiga zona industrial hoje transformada numa área de economia criativa, hipster. O fascinante da região é a insistência de um passado: as lojas de antiguidades – antiks – e os mercados de segunda mão transbordam uma certa estética russa, que se mistura às pretensões escandinavas dos estonianos. Os velhos russos vendendo vidros de pepino em conserva, luvas de lã e bugigangas, não nos deixam esquecer sua presença hoje renegada, disputada. A população russófona corresponde à metade dos cidadãos de Talin, ouve-se a língua eslava o tempo todo (das ocupações: Lydia Koidula, uma das principais poetas estonianas, escrevia em alemão).

Pego o tram pensando nos morangos que encontrarei no fim da linha. Os morangos são aguardados como o verão, fantásticos e emblemáticos. Cultivados ou selvagens, desde o século XVIII colhidos apenas entre junho e julho, os morangos respondem por uma espécie de sabor, frescor e vitalidade que os estonianos só acessam na curta e esperada estação, três meses em que um eventual calor de 30 graus faz desmaiarem as senhoras. Todos os outros morangos que comi parecem fake news diante desses morangos verdadeiros, os morangos de Bergman, os morangos do norte. Os morangos nórdicos representam uma espécie de confirmação de que há vida após o inverno.


Morango, MAASIKA, Estônia, EESTI, leste. “A Estônia é como um morango silvestre”.  
Foto: Lorena Martins 

A língua desconhecida, da qual capto no entanto a respiração, a aeração emotiva, numa palavra, a significância pura, forma à minha volta, à medida que me desloco, uma leve vertigem, arrasta-me em seu vazio artificial, que só se realiza para mim: vivo no interstício, livre de todo sentido pleno.

Antes de pegar este tram, foram oito meses de inverno. Das mitologias que eu posso traçar, nos fragmentos todos que me entrecortam nesta experiência estoniana, neste deslocamento, a oposição, digamos – existencial – entre inverno e verão é o começo e o fim de tudo. Cruzei uma daquelas passagens subterrâneas, no centro de Talin, em pleno janeiro, e senti uma vertigem: atravessar um inverno tão longo é como atravessar um desses caminhos sombrios, em que a aparição repentina de um transeunte, o outro, assusta. Na passagem-paisagem enclausurada, as lâmpadas fluorescentes insistem em piscar.


Passagem subterrânea do Viru. Foto: Lorena Martins 

No fundo a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.

BÁLTICA

I
Como separar a noite
do dia, ou sussurrar no teu
ouvido
que já amanheceu
as semanas intermináveis
pratos na pia, lixo, caras
inválidas
como entender que estamos vivos
se as pernas pouco se movem
roxas e frias
neste inverno incansável, cinza
tu me trazes um copo longo, uma água pesada
uma pílula e diz
amanhã parece que vai ter sol, meu bem
com a voz adormecida
acende
a luminária verde
esgotando no meu peito
um pedaço
do teu rosto.

II
Queres a lenha pra acender o fogo?
aquecer?
Ou queres só este aroma de frio
de fim?

A lenha, eu guardo
é para queimar os pés.

III
O mar quando congela
deixa de ser o mar
serve para:
estarrecer os corações partidos
ludibriar os turistas
congelar as mãos

É o antimar
e eu o detesto
sua espuma congelada
me paralisa
inunda as minhas botas
não serve
para o poema.

IV
A noite branca
poderia ser um papel
bem fino.
Talvez pudesse ficar colada ao teu corpo, desmanchar-se –
o desejo imenso de te cobrir
vestir teu tempo
esparramar as tintas, a água, o suor

a noite branca sobre teu corpo.

V
De longe uma sombra, a margem
de um grande mamífero
de perto parecia a tua barba
um leão marinho sem ar
deitado sobre o gelo
estava muito frio
para devolvê-lo ao mar.

No verão que me separa deste túnel, ou que dele me afasta, sigo olhando pras pessoas com uma curiosidade insolúvel. Como terá sido sua experiência soviética? O que carregam e renegam de seus antepassados, o que hesitam contar? Há tanto silêncio em seus corpos vagarosos, cobertos de lã. Os antigos sempre usam chapéu, casacos muito pesados. Mesmo no verão, confundem-se com eles. Quero fotografá-los, na impossibilidade de ouvi-los. Desloco-me amadoramente para o lugar do Operator, mas deste que habita o século XXI. De posse de nossas câmeras portáteis, em telefones celulares, e diante da facilidade e da eventual banalidade na qual a experiência da fotografia pode se inscrever. O instante exato em que disparamos a foto: tocamos a foto.

Imagino (é tudo o que posso fazer, já que não sou fotógrafo) que o gesto essencial do Operator é o de surpreender alguma coisa ou alguém (pelo pequeno orifício da câmara) e que esse gesto é, portanto, perfeito quando se realiza sem que o sujeito fotografado tenha conhecimento dele. Desse gesto derivam abertamente todas as fotos cujo princípio (seria melhor dizer cujo álibi) é o “choque”; pois o “choque” fotográfico (bem diferente do punctum) consiste menos em traumatizar do que em revelar aquilo que estava tão bem oculto, que o próprio ator dele estava ignorante ou inconsciente. Assim, toda uma gama de “surpresas”.

No fim da linha, onde me aguardam os morangos, também estão os antiks. Cabeças de Lenin, brinquedos bizarros e relíquias horrendas do nazismo estão num prédio novo, moderno, ao lado da estação de trem.


Antik no mercado Balti Jaama Turg. Foto: Aline Belfort/Divulgação

As fotos antigas, entretanto, são o que mais me atraem – “eu gostaria de saber o que, nessa foto, me dá estalo. Assim, parecia-me que a palavra mais adequada para designar (provisoriamente) a atração que sobre mim exercem certas fotos era aventura. Aqui sou a mesma do tram, a que observa; a observadora, agora diante de fotografias, é aquela que Barthes define como Spectator: “Somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos” . Com a produção infindável e descartável de imagens a que estamos submetidos, o olhar circula entre o cansaço e o tédio, flana em busca do arrebatamento. Fotos antigas, raras, são um desvio.

O que sinto diante delas? Por que me tomam? O que terá levado alguém, ou uma família, a se desfazer dessas histórias? A casa vazia, a ausência de herdeiros? Interrupção. Destas imagens: passado que deixa de significar, jamais de existir. Colocar as fotos no lixo, rasgá-las, queimá-las. Há várias maneiras de tentar esquecer, apagar. Quanta dor (ou alheamento) poderá caber neste fim, pôr a cabo o signo, livrar-se dele? (Jogá-lo ou jogar-se ao mar.)

Fotos de casamento, de enterros, de dias na praia. Fotografias tão esperadas, tão rara era a presença das máquinas fotográficas: registros de grandes encontros, festividades. Preciosas fotos de boemia, onde ninguém posa ou veste sua roupa de domingo. Todas juntas em uma grande caixa de papelão, a um euro, todas vendidas por alguém. Histórias abandonadas, anônimas e misturadas. A palavra que me toma é: morte. O que são essas fotos senão um grande registro de mortos? Quem são eles? Qual o sentido do registro se dele nos distanciamos, se dele nos livramos, se tentamos apagar a memória? Sobra algo a dizer sobre estes corpos?



Fotos de casamento, enterro e dia de praia. Reunidas em caixas
de papelão, vendidas a um euro. 
Imagens: Autoria desconhecida/Acervo Lorena Martins 

E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.


Imagens: Autoria desconhecida/Acervo Lorena Martins 

Na fotografia, a presença da coisa (em um certo momento passado) jamais é metafórica; quanto aos seres animados, o mesmo ocorre com sua vida, salvo quando se fotografam cadáveres; (...) é a imagem viva de uma coisa morta.

Escrevo este texto no dia 19 de junho de 2021, quando o Brasil ultrapassa a marca de 500 mil mortos pela Covid-19. Milhares de pessoas vão às ruas, em todo país, para gritar “FORA, BOLSONARO”. FORA, BOLSONARO. FORA. A peste. As pestes. Pairam sobre os mortos do antik. Minha amiga Juliana, que participa dos atos em Porto Alegre, me envia, em tempo real, fotos improvisadas de chuva e fúria, mas de onde também emana alguma força. A imagem viva sobre milhares de cadáveres.

Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só
enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento:
será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar?
Frescos morangos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.

O conceito barthesiano de studium diz respeito ao aspecto informativo da fotografia “É pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer as receba como testemunho político, quer as aprecie como bons quadros históricos”. Diante dos raros registros domésticos que seguem, o sentimento é outro. “O studium está, em definitivo, sempre decodificado, o punctum não.” Talvez pela ação do tempo, talvez pelo ato da revelação, umas das mulheres está desaparecendo. Diante de um lago, de uma paisagem que desvanece, uma mulher contempla o horizonte. Ao ver a foto, tive a sensação de que ela carregava uma valise e estava partindo. Será este o meu punctum?

Dessa vez, eu não vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. (...) A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere).




Fotos dos antiks: corpos anônimos.
Imagens: Autoria desconhecida/Acervo Lorena Martins 


O título original do clássico Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman, é Smultronstället, que significa literalmente “o canteiro de morangos silvestres”; mas a palavra guarda um outro sentido idiomático, que vem de smultronställe: uma joia de valor sentimental, pessoal, que está escondida em um determinado lugar. Dr. Isak Borg, protagonista do filme, revê sua vida a partir de uma passagem pela casa de campo de sua infância – a primeira sequência, ao chegar à casa, é de Sara, a mulher que amou (e que se casou com seu irmão, logo saberemos; é uma ferida para Borg), procurando e colhendo morangos silvestres. O filme, escrito quando Bergman estava hospitalizado, explora questões existenciais e introspectivas, passa por sonhos, pesadelos, acidentes e incidentes. Ao abrir as portas da casa da sua infância e da sua memória, as imagens ressurgem como num filme, o passado joga a própria vida diante de Borg e, com ela, a consciência da morte.

Imagens que remetem a uma historiografia do imaterial: odores, sons, sensações daquele instante, daquela infância – gênese do ser, estar irrecuperável.

Do passado, é minha infância que mais me fascina; somente ela, quando a olho, não me traz o pesar do tempo abolido. Pois não é o irresistível que nela descubro, é o irredutível: tudo o que ainda está em mim, por acessos; na criança, leio a corpo desconhecido o avesso negro de mim mesmo, o tédio, a vulnerabilidade, a aptidão aos desesperos (felizmente plurais), a emoção interna, cortada, para sua infelicidade, de toda a expressão.








Imagens: Autoria desconhecida/Acervo Lorena Martins 

ÁLBUM DE FOTOS

Você nua contra a janela
sentada na beira do mar
com as mãos enfiadas na areia
você ainda criança atravessando
o muro da escola
chorando diante de um dinossauro
colecionando anéis de princesa
distraída em frente a um prato de bolo
enquanto todos cantam
parabéns
muitas felicidades
muitos anos
de vida

Se é pela infância que conhecemos um país, uma terra, ou ela mesmo o único país existente , o seu registro é a demarcação de um lugar. A brevidade da infância persegue esse registro, a tentação (ou a romântica tentativa) de suspender aquele momento, aquele rosto – pará-lo no tempo, guardá-lo para sempre. A experiência da infância, fascinante e dolorida. Todas as sensações que uma imagem, como fragmento de memória, pode significar. “O que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”.

Espectros que agora se perdem em caixas cheias de pó. As fotografias sobrevivem às pessoas, imortalizam épocas – lugar este em que o corpo habita, sente. O corpo imóvel eternizado em sua imagem.

Meu corpo agora despede-se de seus anos em Talin. Sentiu o parto natural de um filho, em um hospital público cujo prédio fora construído na era soviética, e onde há muito as crianças chegam pelas mãos de parteiras, enfermeiras, médicas. Uma experiência absolutamente de mulheres, aquelas vozes todas em uma língua quase exótica, enquanto eu gritava, em português, para que meu filho chegasse logo, brasileiro nascido na Estônia, no esplendoroso verão dos morangos, dos mirtilos e de alguma alegria sazonal, num lugar tão distante de tudo que eu conhecera na minha infância. Os longos e escuros invernos, a sensação de perder o corpo num frio de -20 graus, as botas afogando-se na neve profunda, absolutamente estonteante, iluminada, a neve que me era tão estrangeira e agora recebia meu corpo agasalhado, minha respiração intensa e as nuvens e nuvens que se formavam ao redor do meu rosto. Vapor e cheiro algum, apenas a imagem embaçada, a luz indescritível de um janeiro ao norte do planeta.

As fotos do antik seguem comigo, um último aceno do meu estar na Estônia. Desloco-me, passageira, carregando o sabor das frutas vermelhas, o choro do filho recém-nascido, o inverno nos ossos; espectros meus e de outros, memórias perdidas que se misturam às minhas, reinventam-se. Diante do mar báltico, minha imagem também desvanece, lentamente se perde – apaga-se – na paisagem.

CORPO CONTINENTE

Chegar em casa e descobrir
onde não moro mais:

Um livro comprado há dez anos
empoeirado numa tarde de verão
em que existir bastava
ler, bastava
amar, amava-se

Uma fotografia no Bar João
a Avenida Paulista vazia no carnaval
um prato com a imagem do Cristo
redentor:
já não estou

A pele descascada em março
a ressaca interminável dos dias
as mesas na calçada
até a exaustão

Percebo que não tenho peixes
gatos, cachorros. Plantas.
a estante de madeira
que não existe mais
eu lustro todos os dias
os nós acaramelados
os cupins exterminados
os arranhões de São Paulo
que viajaram até o Irã
seguiram para Itália
e aqui guardam alguma história
dos anos 40:
corro os dedos em seus deslizes
até que sangrem

Não troco o disco há semanas
o vinil roça a agulha
como um bambolê
Time Out sempre me leva
às maravilhas
de lugar algum, às mesmas noites
hoje com duas luas
hoje em carne viva

Chegar em casa e descobrir
que as mãos me traem
as unhas roídas
agora vermelhas
avançam clandestinamente
sobre estátuas de mármore

Descobrir que esqueci todos os nomes
da semana passada
que aquele barco
nunca existiu
que todas as minhas miragens
não são melhores
que meus olhos na fonte
mergulhados sempre por um instante
um segundo apenas:
meus olhos d’água

antes de tudo recomeçar.


“Voltar a Porto Alegre, ao Rio Grande do Sul, e reencontrar o
lugar da minha infância.” Foto: Acervo Lorena Martins 

Voltar a Porto Alegre, ao Rio Grande do Sul, e reencontrar o lugar da minha infância: território formador, cheio de afetos e lembranças, fragmentos que me surpreendem e se desencontram em esquinas que já desconheço. O estranhamento de não mais fazer parte, nem de lá, nem de cá, de lugar algum. Ao mesmo tempo, resgatar a prova de que estive aqui, aqui cresci: “Toda fotografia é um certificado de presença”. Meu smultronstället: minhas fotos, poucas, guardadas em álbuns dos anos 1980, cuja proteção de plástico já amarela e seca, são um registro incontestável de que estive lá, existo em imagem e memória – o corpo como continente da experiência. Fotografias guardadas em caixas, na casa de minha mãe. Caixas que devo levar antes que desapareçam. Caixas que posso deixar para os meu filhos; ou posso abandonar. Fotografias (pistas, rastros) que perderam, perdem cor – ou precisamente conservam a cor fosca daqueles tempos. Parecem menos vivas, desbotadas, como a própria ideia de passado.

Tudo isso deve ser
considerado
como dito por uma
personagem
de romance.

PORTO ALEGRE

O que é a cidade
senão nós mesmos
madrugada adentro
invadindo suas pontes?
O que é o tempo
senão teu corpo
o calendário das mãos?
Permaneço em teu verão
tórrido, nas esquinas onde uma noite
deixei partir e a vida
nunca mais foi a mesma, a se repetir com os brindes
a mesa depois do jantar, o barulho das gentes
as luzes do bairro.
Onde te posso encontrar
senão nos bustos esquecidos nas praças
nas fotografias que por acaso caem
de dentro dos livros?
Guardo recortes de jornal, o parque
as ruas que se perderam de nós
o veludo da sala de cinema
o último dia –
éramos milhares na beira do rio
fevereiro
nunca chegou ao fim.
Permaneço entre teus mercados e muros
nos bares, nos chapéus
que já não usamos mais;
reencontro teu andar único
teu céu que acordava
todas as cores do mundo:
a cidade onde se foi criança
o mapa da casa
os olhares guardados.
Permanecer
é meu continente.

LORENA MARTINS, mestranda em Escrita Criativa pela PUCRS. Graduada em Letras pela UFRGS, com habilitação em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa, e pós-graduada em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona/Unesco. É autora dos livros de poemas Água para viagem (7Letras, 2011), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura; e Corpo continente (7Letras, 2019), finalista do Prêmio Minuano de Literatura. Contato: lorena.martins@gmail.com

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