Comentário

Voz aos censurados

Livro ‘Mordaça’ traz relatos de bastidores dos vetos às músicas de compositores brasileiros durante a ditadura militar

TEXTO José Teles

02 de Maio de 2022

Ney Matogrosso passou dois anos sem se apresentar em Brasília, porque a mulher de um general reclamou de o cantor se apresentar sem camisa no palco

Ney Matogrosso passou dois anos sem se apresentar em Brasília, porque a mulher de um general reclamou de o cantor se apresentar sem camisa no palco

Imagem Janio Santos sobre reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 257 | maio de 2022]

Assine a Continente

O livro Mordaça – histórias de música e censura em tempos autoritários, de João Pimentel e Zé McGill (Sonora, 2021), conta uma série de episódios tragicômicos protagonizados por censores, advogados de gravadoras e compositores. Os censores, em sua maioria, despreparados. Um símbolo dessa época foi Augusto, capitão da Seleção Brasileira do ano 1950, que ganhou um cargo na censura federal. Episódios, não raro, apenas cômicos. A primeira vez que Ivan Lins e o parceiro Ronaldo Monteiro de Souza foram convidados para o lúgubre prédio da Polícia Federal, no Centro do Rio, foram recebidos por um censor munido de duas folhas de papel. Numa das folhas, o verso: “Deixei você me frequetar” estava riscado de vermelho. O cara achou que seria uma mensagem cifrada.

Esclareceram que foi um erro de datilografia. O correto era “frequentar”. O censor corrigiu, mas com um “m”, frequemtar. Na outra folha, o censor viu subversão em mais uma falha de um datilógrafo relapso, na palavra zmei. Claro, “amei”. Com os Secos & Molhados, visavam-se mais as performances de Ney Matogrosso. Ele não poderia usar rabo de cavalo, “coisa de mulher”, não poderia rebolar, nem olhar direto para a câmera, porque, assim, estava se comunicando diretamente com as pessoas. Quando o grupo foi divulgar o primeiro disco na TV Globo, ouviu-se uma voz: “Ninguém olha para a câmera”. Ney olhou.

Não poucas vezes o veto não vinha de órgãos oficiais, mas de mulheres de oficiais. Ney Matogrosso passou dois anos sem se apresentar em Brasília, porque a mulher de um general reclamou publicamente do fato de o cantor se apresentar sem camisa no palco. Quando o cantor voltou a Brasília, no primeiro show solo, foram-lhe vetados todos os teatros da cidade. Só lhe restou a quadra de um colégio, o show não poderia ser divulgado, e Ney estava proibido de aparecer em qualquer outro lugar da cidade que não fosse o palco. Claro, ele teve a menor plateia da sua vida. No ano 1976, na apresentação da turnê Bandido, pelo Distrito Federal, Ney Matogrosso teria mais encrenca, cujo pivô foi a música Seu Valdir (de Marcos Polo, do Ave Sangria, proibida no ano 1974). A letra conta a paixão de um rapaz por um coroa. Havia vários oficiais das forças armadas na plateia. Ney passaria mais duas temporadas sem ir a Brasília.


Zé McGill e João Pimentel entrevistaram, para o livro, diversos compositores. Foto: Luis Dantas/Divulgação

Ney é pouco citado quando o tema é censura no regime militar, mas tem um dos prontuários mais longos. Chegou a ter policiais à paisana estacionados diante do prédio em que morava, seu nome não poderia ser publicado pelo Jornal do Brasil, nem poderia abrir conta em banco. As penalidades variavam de acordo com o humor da Polícia Federal (PF).

No auge da censura prévia, Geraldo Azevedo dividiu com Alceu Valença o primeiro disco no ano 1972 (cujo título é o nome dos dois, mas é confundido com o som quadrifônico, nova técnica acústica empregada no álbum). O repertório lhes deu várias idas à censura federal. Trocaram nomes, versos. “Joana me deu um talismã, virou Diana me deu um talismã”, por exemplo. Geraldo Azevedo foi alvo de duas detenções, nas quais foi barbaramente torturado. Uma das suas músicas censuradas foi Canção da despedida, em parceria com Geraldo Vandré, quando este já estava clandestino. O problema era Vandré na parceria. Elba Ramalho achou um jeitinho para liberar a música. Como os autores se chamavam Geraldo, mandou a letra como sendo de Geraldo Azevedo e Geraldo. Passou.

Em Pesadelo, das canções mais incisivas sobre aquele momento de sufoco, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós (“Você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto”), Agnaldo Timóteo colaborou sem saber. Paulo César trabalhava em algumas produções para a Odeon. Fez amizade com um certo Salmiro, que datilografava as letras que iam para a censura. Datilografadas, eram postas numa pasta com o nome do artista. Ele notou que determinadas pastas demoravam a voltar, menos as dos nomes mais populares, roqueiros, bregas. Paulo César enfiou a letra na pasta com o nome Agnaldo Timóteo. A pasta voltou no dia seguinte, com Pesadelo liberada. O MPB4 gravou. Depois veio o rolo. Mesmo liberada, as rádios não ousavam tocar. Só foi tocada, na época, em shows do grupo.

APESAR DE VOCÊ
Chico Buarque não foi o compositor que teve mais músicas vetadas pela censura. Gonzaguinha ou Taiguara tiveram muito mais proibições. Chico Buarque se tornou o alvo mais visado, virou o artista símbolo da era da censura prévia. No seu caso, as proibições não vinham do chefe da censura, mas diretamente do andar superior: dos generais. O samba Apesar de você foi o responsável pela implicância das altas patentes ao compositor.

A letra foi enviada para a censura. Uma censora interpretou como um desabafo depois de uma desilusão amorosa e a liberou. O compacto, do ano 1970, passou a tocar no rádio e a vender. Chegou a 100 mil cópias vendidas, quando num jornal carioca apontou-se que o “você” era o general Garrastazu Médici. De imediato, o Exército invadiu a fábrica da gravadora Philips, recolheu e destruiu todos os discos, então, a música foi proibida. Os militares se sentiram enganados, alvo de galhofas.


Imagem: Reprodução 

Chico conta aos autores do livro que foi convocado umas 50 vezes a depor na PF. Chico foi aprendendo a lidar com os censores: “Comecei a incluir alguns trechos de letras em outras letras. Por exemplo, eu mandava para a censura a letra de uma música como Corrente. Mas, antes de entrar na letra, eu escrevia uma bobagem qualquer, algo do tipo: ‘meu amor, eu te amo’ etc. Os censores tinham que examinar não sei quantas letras por dia. Quando olhavam aquela letra, pensavam que era uma música de amor, uma bobagem que não tem problema. Daí, liberavam. Eu não era obrigado a gravar a letra inteira”.

De artifícios também se valiam os advogados das gravadoras. Foi João Carlos Muller quem conseguiu a liberação de Construção. O álbum que Chico estava gravando já estava com várias músicas vetadas. Muller ia recorrer a Brasília para a liberação. Prestes a viajar, recebeu a última letra, a de Construção. Achou tão boa que armou uma tática para a sua liberação. Chegou para um censor e falou: “Galeno, você pode vetar esta merda logo, de uma vez? O censor perguntou se ele tinha ficado maluco. Explicou: “Não. É que isso é bom demais. Vocês não vão entender. Vão vetar a letra de qualquer maneira. Eu preciso ir a Brasília, já levo essa letra também”. O censor leu a letra e elogiou: “Porra, é muito boa, mesmo”. Construção foi liberada.

_________________________________
Extra:
Leia entrevista com os autores
_________________________________

Chico Buarque é contrário à ideia dos que acreditam que a censura incitava a criatividade dos compositores: “Isso é bobagem. A censura, no máximo, estimulava a malandragem. Mas a criação, não, de jeito nenhum. Eu não compunha melhor por causa da censura”. E comprovou numericamente: “Um dia peguei um songbook meu e mostrei que, em termos numéricos, a quantidade de músicas que compus durante o tempo mais brabo da ditadura e da censura, mais ou menos, até os anos 1975 e 1976, foi muito menor. Gravei e compus muito menos do que depois, quando as música começaram a sair com mais fluência. Então, foi uma liberdade que se foi conquistando aos poucos”.

JOSÉ TELES, jornalista, crítico musical, pesquisador e escritor.

veja também

A anatomia do Cangaço

Silva João

Imagens de Pablo Neruda no cinema e no teatro