Trema! 2022
Réquiem para um festival de cênicas
TEXTO Márcio Bastos
01 de Abril de 2022
'Encantado', da Lia Rodrigues Companhia de Dança (RJ), abre o festival
Foto Sammi Landweer/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]
Assine a Continente
O Trema! Festival de Teatro se reinventou muitas vezes ao longo de sua trajetória. Em 2012, quando surgiu, seu foco era no teatro de grupo e nas possibilidades de criação conjunta. Em 2015, ampliou sua proposta, a partir do entendimento que a pesquisa contínua não estava restrita ao trabalho coletivo e passou a receber obras em vários formatos, como solo, e de outras linguagens, como dança e performance. Para além do recorte curatorial, o projeto também precisou lidar com as adversidades do campo cultural, como a privação de recursos e a não aprovação em editais de fomento, o que inviabilizou a realização de algumas edições e colocou em xeque seu futuro.
No ano em que completa uma década, o festival retorna ao Recife para sua sétima edição, que acontece entre os dias 19 de abril e 1º de maio, mas não com um caráter propriamente festivo. A curadoria parte da ideia de réquiem (missa em memória dos mortos), pois, em 2018, o festival foi dado como morto por seus organizadores. Ou melhor, após 2018, o Trema! morreu – e, agora, prepara uma sobrevida. Pedro Vilela e Mariana Holanda, idealizadores do projeto, que este ano retomam o festival junto a Thiago Liberdade, membro da equipe e presente desde a primeira edição, não falam em renascimento porque não é possível vislumbrar certezas diante da instabilidade política nacional.
Isso não quer dizer, entretanto, que o tom da maratona cênica será sombrio. É, antes de tudo, uma reflexão sobre o fracasso de projetos, principalmente o maior deles: o Brasil. Como aponta Jack Halberstam no livro A arte queer do fracasso, a falha não precisa ser enxergada como negativa. Há uma força na possibilidade de frustrar expectativas, reconstruir-se, transformar-se. E é isso que o Trema! propõe nesta nova edição – a mais robusta de sua história. A curadoria dividiu o festival em dois lados, A e B, pautados pelos eixos O princípio do fim e Todo fim é um princípio em si, respectivamente.
“Não nos interessava fazer o festival de forma virtual porque a gente percebeu que o Brasil, apesar de todas as dificuldades, acabou fazendo essa guinada para o virtual, através da Lei Aldir Blanc, então já existia uma demanda muito grande de virtualidade. Além disso, a gente sentia que o festival morreu sem uma despedida, simplesmente desapareceu. Ficava na minha cabeça a imagem de Antígona, que lutou até o final, contra o Estado, contra as estruturas de poder, para fazer o rito de celebração e enterrar o irmão dela. Sabemos que vamos lidar com restrições de público, possibilidades de cancelamentos, mas o público está muito desejoso por esse reencontro, nem que seja para celebrar nossos mortos, nossos fracassos, nossa destruição”, reflete Pedro, responsável pela curadoria.
Manifesto transpofágico, de Renata Carvalho, se baseia na sua
pesquisa Transpologia, iniciada em 2007.
Foto: Nereu Jr./Divulgação
Como explicam Pedro e Mariana, o Trema! nasce da dificuldade de alguns trabalhos nacionais chegarem ao Recife, prejudicando tanto a troca com a plateia local quanto o próprio intercâmbio entre artistas de diferentes regiões e países. Afinal, os festivais possuem essa potência de sensibilizar o olhar a partir de curadorias que reflitam o momento histórico e as inquietações estéticas. O risco, ressaltam, é uma característica intrínseca do Trema! e também um motivo, acreditam eles, da dificuldade de manutenção do festival.
“Poucas vezes a gente escolhe teatros de grande capacidade, que são espaços que poderiam trazer mais dinheiro, mas as obras que são curadas talvez não se adequassem para esses lugares. É um festival que sempre programou coisas que, de alguma maneira, pudessem impactar o contexto em que vivia, e que não cumprisse só um calendário ou a uma noção de teatro que já é pautada na cidade”, ressalta.
Entre as peças que passaram recentemente pelo Trema! estão O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, de Renata Carvalho, em 2018, que tem como protagonista Cristo enquanto uma mulher trans e posteriormente foi censurada no Festival de Inverno de Garanhuns, e DNA de DAN, do paranaense Maikon K, trabalho que também foi alvo de intervenção policial, em Brasília. O festival foi realizado em junho – em outubro, Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República.
PULSANTE
A grade deste ano é formada por 14 espetáculos pernambucanos (todos gratuitos), sete em cada etapa do festival, que conta ainda com seis trabalhos nacionais e quatro internacionais. Entre os artistas e companhias estão nomes que já passaram pelo Trema!, em um processo de reconexão com sua história.
A robustez de atrações foi possível por conta da aprovação em dois editais do Funcultura, em 2019 e 2020, e a edição acontece de forma presencial, no Recife e também com algumas atividades em Limoeiro. As obras dialogam com a proposta do festival não só para este ano, mas que norteiam suas ações desde o princípio.
O Encantado, da Lia Rodrigues Companhia de Danças (RJ), que estreou em dezembro do ano passado, em Paris, abre o Trema!. A partir das cosmologias indígenas, o trabalho de dança contemporânea busca tensionar outras formas de enxergar e sentir o mundo, tema que também norteia a outra atração do primeiro dia do festival, a performance Involuntários da pátria, de Fernanda Silva (PI) e Sonia Sobral (SP), criada a partir do texto de Eduardo Viveiros de Castro.
Altamira 2042, de Gabriel Carneiro da Cunha, trata da questão dos povos originários do Brasil. Foto: Nereu Jr./Divulgação
Altamira 2042, de Gabriela Carneiro da Cunha (RJ), também se debruça sobre a situação dos povos originários do Brasil e as disputas políticas e territoriais que acontecem no território amazônico. Trata-se da segunda etapa do projeto de pesquisa Margens – Sobre rios, crocodilos e vagalumes, focada nos povos ribeirinhos. Com o auxílio de caixas de som que ecoam as vozes de habitantes das margens do rio Xingu, a artista investiga o impacto da construção da hidrelétrica de Belo Monte para os moradores da região.
O festival também recebe algumas estreias, como os pernambucanos Poema, da Cia do Ator Nu, Solo fértil, do Coletiva Semente de Teatro, e Reluzir, de Marconi Bispo. A parceria entre o Teatro de Fronteira e o Coletivo Lugar Comum, intitulada Essa menina, ainda em andamento, faz abertura de processo para o público do evento. Algumas obras produzidas no estado também saem da capital e seguem para a cidade de Limoeiro, em um processo de descentralização proposto pelo Trema!.
O festival recebe mais uma vez no Recife a companhia portuguesa Circolando, com a obra Feedback. Do México, o grupo Lagartijas Tiradas al Sol apresenta Vera Cruz, parte do projeto La democracia en México, iniciativa que busca criar uma obra para discutir cada região do país, debruçando-se sobre questões sociopolíticas e culturais.
Para o encerramento da edição foi programado o retorno de Renata Carvalho, que se apresenta com Manifesto transpofágico. A obra se baseia na pesquisa Transpologia, iniciada em 2007, ano em que a atriz iniciou seus trabalhos como agente de prevenção voluntária de ISTs, Hepatites e Tuberculose, atuando junto a travestis e mulheres trans. No trabalho, ela discorre sobre o corpo travesti e como a percepção sobre ele foi moldada a partir de um olhar de patologização e criminalização.
Após dois anos pandêmicos, a maior parte deles com a impossibilidade da criação artística presencial e do encontro com o público, o cenário artístico e a sociedade ainda estão, atordoadamente, tentando entender as reconfigurações políticas, de espaços, afetos, sensibilidades. E, nesse sentido, o recorte pulsante da curadoria reforça o papel do Trema! como um espaço de questionamento, agitação e provocação capaz de contribuir para encontrar outros caminhos entre os escombros.
MÁRCIO BASTOS, jornalista e mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco.