Segundo o artista, o novo disco revela o inóspito e o trágico através da beleza como cura, tendo o sertão como signo da aridez e da riqueza do espírito. Por ser nordestino e ter essa relação de memória afetiva com a região, na época da elaboração do disco, o compositor, que ainda morava na Escócia, viajou pelo sertão pernambucano para visitar a Missa do Vaqueiro, em Serrita, e foi naquele lugar que Armando se encantou com o simbolismo religioso do evento.
Dentro das suas experiências pessoais ouvindo Luiz Gonzaga e pesquisando sobre a arte musical de vaqueiros em todo o mundo, ele decidiu homenagear a região. “Sempre gostei muito de viajar pelo Sertão e decidi fazer uma homenagem que não fosse um turismo cultural artificioso, mas um mergulho pluralista e visceral, extremamente pessoal, no universo rural nordestino”, conta o artista.
A partir dessa pluralidade, o compositor explora a linguagem artística, criando diferentes realidades em contextos que mexem com o ouvinte. A construção poética de Armando já vem de álbuns solos anteriores, como Vulgar e sublime (2008), Técnicas modernas do êxtase (2011), MyopicSerenade (2017) e Alegria dos homens (2020). Em todos os discos, ele se destaca pelo uso da criatividade e da licença poética, com uma mistura do clássico, pop, instrumental, erudito e do contemporâneo. Dando continuidade às suas experimentações musicais, Veneno bento faz uma leitura espiritual do sertão refletindo a relação emocional do artista com o ambiente. “O Sertão é para mim uma entidade aberta, um espaço infinito, sem tempo”, afirma Armando.
O novo disco de Lôbo contém 11 faixas e é marcado pela divisão em duas playlists, que abarcam a música popular e de concerto, fazendo, segundo o artista, uma provocação irônica e pragmática. Além disso, o material pode ser apreciado no formato audiovisual, com videoclipes, lyric vídeos e videopartituras. O trabalho será lançado em uma live no dia 17 de fevereiro, combinando show gravado com seis músicas, entrevistas, vídeos e a participação de repentistas que glosam sobre o phármakon: veneno, remédio e “cosmoética”, trocadilho que, segundo o artista, faz uma “piadinha” com o cosmético, que também é vendido na farmácia do phármakon.
Por ter um caráter eclético, Lôbo pensou a divisão das músicas no álbum com o intuito de refletir uma canção sobre a outra. “Uma playlist ecoa na outra, a diferença é que uma é mais técnica do que a outra; mas as duas são densas e angulosas, um feixe de espinhos e um mandacaru no Himalaia”, afirma. Essa provocação e diversidade de estilos musicais permeiam o processo criativo de Armando e sua identidade está impressa em todo o novo álbum. O artista explora o seu processo criativo compondo canções que fogem de clichês do cotidiano, provocando reflexões e inquietações acerca da música criando realidades que não existem. “Eu não quero fazer uma crônica e nem repetir caracteres do Nordeste, eu quero mostrar espiritualmente como eu sinto”, diz.
Fazendo um paralelo, as suas formas de criação, na primeira playlist, a de música popular, o cantor traz canções voltadas para a poética do sertão com tons expressionistas e reflete sobre o aboio progressivo psicodélico, o plano sertanejo do amor cortês medieval, e faz referência ao Rei do Baião, com A morte do vaqueiro, para mostrar um Gonzaga com outra roupagem. “Na verdade, minha intenção não foi revelar o Sertão real, mas o da alma. Agonia e redenção. Transcendência em intensa fisicalidade. Nunca houve seca no Sertão. Seca existe quando uma cultura se rebaixa à política. Gonzaga era uma cachoeira, um doce temporal”, pontua.
Já a segunda parte do álbum é marcada por um diferencial trazendo uma obra eletrovisual – neologismo cunhado pelo artista –, Alquimia da zabumba, que é uma criação videográfica inspirada em certos procedimentos da música eletroacústica. A faixa é marcada por uma produção que usa apenas sons extraídos de uma zabumba com baquetas, mãos e bolinhas de gude, provocando uma sensação de tensão, mistérios e curiosidade no ouvinte. Com essa intensidade musical, o artista busca provocar um jogo de timbres e texturas, chamando atenção para o novo e diferenciado. “No caso da Alquimia, a aposta na intensidade da escuta é consequência também da performance do grande percussionista Rodrigo Patropi, que é deficiente visual. Procuramos transformar a zabumba num cosmo, num material especulativo. Um instrumento interestelar errático”, relata.
O novo disco também contempla canções que são marcadas pela combinação instrumental com elementos que se relacionam com a música de concerto e a estética micropolifônica. Tendo como exemplo a música Aboio e disparada, que é dividida em duas partes e tem influência de três compositores clássicos do século XX – o húngaro György Ligeti, o brasileiro Heitor Villa-Lobos e o russo Alfred Schnittke –, envolvendo a textura musical em diferentes ritmos. “Certas estruturas estáticas usadas por Ligeti me inspiraram para criar o Aboio e disparada, que é um apelo à imensidão, ao que nos excede. O ritmo existencial da zona rural do leste europeu influenciou a escrita micropolifônica de Ligeti. No álbum Veneno bento, a peça tem performance de uma orquestra russa. Aboio é uma forma de abismo. Abismo é o grande signo deste álbum. O abismo existe, mas não entre culturas”, explica.
CARINA BARROS, jornalista em formação pela UFPE e repórter estagiária da Continente.