Ao elencar alguns símbolos ou cores presentes de forma recorrente em seus trabalhos – o açúcar, a âncora, o barco, a bússola ou rosa dos ventos, os sapatos que aparecem como fator de distinção social, os casarões coloniais –, Tiago Sant’Ana produz um tipo de manifestação latente, que emprega a polissemia e a subjetividade de seu vocabulário imagético como força poética.
É assim que obras como Rota de fuga operam no destravamento da nossa capacidade de fabulação. Composta por uma bandeira azul com os dizeres “A linha do mar está sempre na altura dos seus olhos” bordados em branco, trazendo a sugestão dessa imagem, “a frase traz uma afirmação real, já que, de fato, há essa perspectiva óptica, mas também um sentido metafórico, idealista, de que, mesmo dentro de um cativeiro, ao recordar sua memória atlântica, o mar continuará na linha dos olhos, podendo ser um refúgio”, diz o artista em texto no seu site oficial.
Em uma passagem que podemos relacionar a essa e outras imagens sugeridas pelo artista, Jacques Derrida escreveu: “a imagem é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível. Enquanto o horizonte nos promete o todo, constantemente oculto atrás de sua grande ‘linha’ de fuga.”
Da série Sapatos de açúcar, fotografia (pigmento mineral sobre papel de algodão), 50 x 73 cm, 2018. Foto: Tiago Sant'Ana/Divulgação
Rota de fuga foi parte de sua exposição individual mais recente, chamada Irmãos de barco, que aconteceu na Galeria Leme, São Paulo, em 2021. Como no trágico episódio que criou um laço e cumplicidade únicos entre as irmãs Bibiana e Belonísia em Torto arado, Tiago também fala desses elos intangíveis que se formaram nas travessias forçadas da África para o Brasil e que permanecem até hoje.
“A ideia dos irmãos de barco é especificamente algo polissêmico. Primeiro, é irmão de barco porque é a experiência de sobrevivência da travessia em si, ou seja, o que une muitas pessoas afrodescendentes é ter antepassados que resistiram a essas travessias. Então, é uma grande família imaginária, que continua existindo ao longo do tempo, mesmo com todo o sistema apostando o contrário. Esse termo vem do candomblé, pois quando você é iniciado junto com outra pessoa na religião, você chama essa pessoa de irmão de barco. Obviamente, estamos falando também do lugar do afeto, porque é uma experiência que liga todas essas pessoas”, explica o artista, que, aos 30 anos, possui obras no acervo permanente de instituições como a Pinacoteca e o MASP, ambos em São Paulo.
Ainda sobre Irmãos de barco, elabora: “O mar, o Atlântico, é um lugar político. As tensões começam no mar. Se a gente pensar no próprio fluxo da escravidão, são pessoas de diversos lugares, de diversos costumes, grupos étnicos que são postos juntos dentro de um barco que vai para o mar. Então, o mar é um espaço onde essas coisas acontecem, mas ele é quase que algo vivo também. Ele tem sua própria dinâmica, e essa dinâmica do mar também influencia nas dinâmicas humanas que aconteceram na história. Ao mesmo tempo, ele te dá esse dado da dor, da nostalgia, de algo que você nem viveu mas do qual você ainda carrega memórias que talvez você nem saiba que tem, memórias que estão ali na identidade de fato.”
Rota de fuga, objeto (bordado com linha de algodão sobre tecido de algodão), 115 x 190 cm, 2021. Foto: Tiago Sant'Ana/Divulgação
Na mesma exposição, o artista fazia uma relação direta com a Revolta da Chibata. O motim naval ocorreu no Rio de Janeiro em 1910, mais de 20 anos depois da Lei Áurea, devido aos castigos similares aos da escravidão aplicados em marinhos afro-brasileiros. Em Couraçado, o artista coloca uma imagem de arquivo da Revolta da Chibata juntamente a uma âncora de aço, cuja corda perpassa a moldura da foto e segue próxima ao chão, segurando o objeto. No levante, os marinheiros tomaram o controle de quatro embarcações da marinha brasileira, e redigiram um manifesto contra as condições de trabalho análogas à escravidão. Foram, por ora, vitoriosos, tendo os termos propostos aceitos pelo governo de Hermes da Fonseca, fincando em terra, como a âncora de aço, a segurança necessária. A promessa do governo, no entanto, foi descumprida.
112 anos após a Revolta da Chibata, a suposta (e falsa) democracia racial é assegurada em âncoras de açúcar. É nesse tipo de costura entre as espessuras do tempo que Tiago evidencia as fragilidades da libertação do povo negro no Brasil até os dias de hoje. Os sapatos, outro elemento característico do léxico que o artista vem construindo ao longo do seu corpo de trabalho, aparecem em diversas obras, sejam os modelos facilmente encontrados nos dias de hoje, sejam os tamancos de forra encobertos por açúcar.
“Os sapatos são objetos muito corriqueiros, que a gente já está acostumado a ver, mas se pensa muito pouco sobre o significado histórico deles. Os sapatos estão intimamente ligados a um símbolo muito precário de libertação, porque era culturalmente vedado às pessoas escravizadas usarem sapatos, e isso se tornou, pela ausência, um símbolo de poder. Então, quem não calça, não tem poder, ou não é livre ou não goza de uma plena cidadania”, enfatiza Tiago.
No vídeo Ao rés do chão, vê-se o que parece ser um tipo de casarão colonial, com portas de madeira e azulejos azuis, sem móveis, de aparência inabitada. Com o torso nu, vestindo apenas shorts brancos, vários homens negros vão surgindo na casa. Com sapatos a tiracolo, eles andam pelos cantos da habitação e, de maneira organizada, como um tipo de coreografia, vão tomando as escadas, o salão principal, surgem pelas portas, quase como um sonho, uma visão surrealista. Ao final do vídeo, eles se retiram da casa deixando para trás os sapatos. Não se sabe se largam os calçados ali porque já não precisam deles para demonstrar essa frágil libertação, ou, porque, de fato, ela não existe.
Fluxo e refluxo (Barco de açúcar), fotografia (pigmento mineral sobre papel de algodão), 2021. Foto: Divulgação
Sobre a pesquisa para Ao rés do chão, Tiago relata: “Achei um registro num livro que dizia que um dia após a abolição, várias pessoas recorreram aos sapatos. Obviamente, esse é um relato muito romantizado, mas o que dizia é que, muitos deles, por não estarem acostumados a calçar os pés, levavam os sapatos a tiracolo. Então, eu peguei esse relato histórico de um frei, de um padre, e comecei a investigar essa imagem dos sapatos como um símbolo de uma libertação, só que de uma libertação muito precária. Nesse vídeo, tento cruzar os tempos com os objetos, trazendo sapatos com design contemporâneo”.
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Contemplado com a Bolsa Zum de Fotografia 2021, atualmente o artista trabalha no projeto Chão de estrelas, que “propõe a investigação de estratégias de fuga e libertação no período colonial brasileiro, discutindo como essas táticas criam reverberações no imaginário visual brasileiro”, segundo descrição no site da Revista Zum.
“Esse projeto vai pensar como algumas dessas pessoas escravizadas conseguiam conquistar sua própria liberdade a partir de coisas que não eram consideradas legais. Vou mergulhar em ditados populares e histórias da memória coletiva que tem a ver com isso. Por exemplo, tem aquele ditado ‘lavou a égua’. Dizem que isso era porque nos lugares de mineração essas pessoas guardavam nas crinas dos cavalos pequenas pepitas de ouro e depois, na hora de dar banho nesses cavalos, elas resgatavam essas pepitas e com um tempo conseguiam dinheiro suficiente para conquistar sua própria alforria ou davam para irmandades. Então, é algo ilegal, mas que proporcionava essa libertação”, descreve em entrevista à Continente. Ainda no primeiro semestre de 2022, ele realiza também uma exposição individual na Roberto Alban Galeria, em Salvador.
Ao rés do chão, vídeo, 5’31’’, 2018. Imagem: Reprodução
Como a personagem que perde a língua em Torto arado que, na falta do canto, encontrou em gestos silenciosos a possibilidade de libertação, é nas sutilezas que Tiago Sant’Ana revela linhas de fuga possíveis. Reelaborando dispositivos simbólicos, ele subverte, reorganiza e reconfigura a narrativa da história, acendendo nossa capacidade de fabulação, tão necessária para que outros modos de cantar possam surgir.
SOFIA LUCCHESI, jornalista com formação pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), fotógrafa e art dealer.