Nascida em Ijuí, no Rio Grande do Sul, Eliane foi reconhecida como a repórter mais premiada da história do Brasil, em 2020. Já são oito livros publicados em sua trajetória, no país e no exterior – entre os quais, A vida que ninguém vê e Brasil: construtor de ruínas, que apresenta sua interpretação sobre a conjuntura política do país nas últimas décadas. Pela Companhia das Letras, sua mais recente publicação é Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, que traz relatos de suas vivências nas Amazônias, a partir de uma apuração jornalística rigorosa e de denúncias da destruição que vem acontecendo na maior floresta tropical do planeta – cujo ponto de não retorno vem se tornando mais próximo nos últimos anos.
A primeira vez em que me encontrei com (um texto de) Eliane Brum foi em 2016. Estava no início do curso de jornalismo e, desde então, os mundos criados por ela nunca mais me desabitaram. Recordo-me com facilidade o título deste primeiro texto. Está no livro O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real e chama-se A floresta das parteiras. Nele, Eliane conta as histórias de Dorica, Jovelina e de outras mulheres com esse “dom de pegar menino” no Amapá. Como em outras que ela assina, nesta reportagem dá para sentir os sentidos, os gostos, os cheiros. Talvez seja por isso que nunca a deixei ir. Sempre volto a tatear seus caminhos. E quando dá, levo mais gente comigo, indicando a sua leitura. Essa maneira viva que a escritora gaúcha tem de contar – mas, sobretudo, de escutar – foi participando e tecendo parte da jornalista que nascia aqui dentro. Mas logo percebi que o envolvimento com seus textos, com as discussões que ela levanta e as batalhas linguísticas que engendra não se restringiam a mim, pois fazem parte da vida de muita gente, pelo país e pelo mundo.
No último mês de dezembro, no entanto, nós, seus leitores e leitoras, fomos surpreendidos com a notícia de que o El País, jornal que ela publicou sua coluna por oito anos, encerraria suas atividades no Brasil. Atualmente, ela continua escrevendo para o veículo espanhol, com textos em língua portuguesa e espanhola. Em um ano importante com este, com eleições presidenciais e o colapso climático acelerado, as interpretações de Eliane são de grande importância. Um pouco antes do encerramento do jornal ser anunciado, a Continente conversou com a escritora, através de uma videochamada, sobre diversos temas, entre os quais, seu mais recente livro, a decisão de mudar-se para Altamira, a importância da linguagem enquanto território de enfrentamento político das diferentes violências, seus processos de apuração e escrita, além dos impactos que Belo Monte e outras construções têm causando na vida dos povos da floresta e para a atual crise climática.
CONTINENTE Em 2017, você se muda para Altamira. Já venho acompanhando seus relatos desde a publicação do livro Brasil: construtor de ruínas. Como se dá sua decisão de deslocar o lugar de onde percebe o Brasil e o mundo? E como tem sido viver em Altamira nestes últimos tempos?
ELIANE BRUM A decisão, a razão consciente de vir para cá foi porque, há alguns anos, já antes de 2017, como outras pessoas, eu defendia que, em uma época de emergência climática e da sexta extinção em massa de espécies, é obrigatório deslocar os conceitos do que é centro e do que é periferia. Neste momento em que a gente vive, os enclaves da natureza, como oceanos, florestas tropicais, precisam obrigatoriamente ser os centros do nosso mundo. Eles são os verdadeiros centros do nosso mundo. Se a gente não compreender isso, não vai ter como enfrentar o que já está enfrentando. Não é uma questão de retórica, de discurso, mas algo que precisa acontecer concretamente. Eu defendia isso há vários anos. Aí, um dia, em 2016, eu estava andando, quando a gente estava começando o projeto Refugiados de Belo Monte, que era a escuta do sofrimento dos ribeirinhos expulsos por Belo Monte, estava lá acompanhando um grupo de psicanalistas e de outras pessoas, e tinha acabado de ter uma conversa superinspiradora com o Marcelo Salazar, ambientalista, que está em Altamira há muito tempo e virou um grande amigo. Ele criou o escritório do ISA (Instituto Socioambiental), aqui. Eu estava andando na rua e disse para minha amiga, a Ilana Katz, psicanalista: “Vou me mudar para Altamira”. Porque, ali, entendi que não basta a gente defender uma ideia, tem que viver essa ideia. Não fazia sentido eu, como jornalista, defender que a Amazônia é um dos principais centros do mundo. Por que, então, não estou vivendo no centro do mundo? Por que não estou cobrindo o mundo desde o centro do mundo? Percebi que para ser coerente, eu precisava fazer esse movimento com o meu corpo, precisava me deslocar. Então, deixei o maior centro brasileiro, no sentido convencional, que é São Paulo, para ir para um dos maiores centros do planeta nessa nova perspectiva. Isso não é uma ideia só de deslocamento geopolítico. É uma ideia de qual é e de onde está a centralidade. Ou seja, qual é o pensamento; qual o tipo de conhecimento; quem vai liderar a mudança que precisa ser feita para a gente ser capaz de nos transmutar na crise climática que já está aí. Esse deslocamento de centralidade também é um deslocamento de pensamento. Não mais a centralidade no pensamento de matriz ocidental, fundamentalmente europeu, binário, patriarcal, branco, que foi o que nos trouxe até o abismo da crise climática, que foi justamente o pensamento que produziu esta crise, que está produzindo a alteração da morfologia do clima do planeta. Mas, sim, o pensamento daqueles que, no caso da Amazônia, são os povos originários e outros povos da floresta, cujos antepassados plantaram parte da floresta e que vivem, há milênios, sem destruí-la. Então, é esse pensamento que tem que estar no centro. Que nem quando a Greta Thunberg diz: “Nossa casa está em chamas”. E, na Amazônia, as chamas são bastante literais. Se a tua casa está em chamas, tu não vais pedir ajuda para quem botou fogo na tua casa. Tu não vais pedir ajuda para o incendiário. Tu vais pedir ajuda para quem construiu a casa. Tu vais pedir ajuda para quem, há milênios, vive na casa sem destruí-la. Isso é óbvio. Só que a gente não está fazendo o óbvio. Esse deslocamento de centralidade é um deslocamento do pensamento e do modo de vida. Colocar no centro um outro jeito de ser e de estar e de habitar este planeta. Um jeito que não coloca a pessoa humana no centro, como hierarquicamente acima de todos, mas entende a vida como intercâmbio constante com todos os outros seres humanos, não humanos, visíveis, invisíveis. Esse deslocamento de centralidade vai muito além da Amazônia floresta, mas é um amazonizar-se, no sentido mais amplo, de deslocamento, de modo de viver. Já que, neste momento, a gente precisa rapidamente criar um outro tipo de gente, um outro tipo de sociedade capaz de viver com todos os outros sem destruir o planeta.
Essa é a razão consciente e também bem importante que me traz até aqui, em 2017. O que vai ficando mais claro quando já estou vivendo aqui é que venho em busca de me reflorestar, que é justamente fazer esse movimento, porque sou criada dentro dessa cultura eurocêntrica, de todo esse pensamento, desse que foi o mundo onde cresci. Vim para me tornar um outro tipo de gente. Vim para mudar o meu jeito de pensar, para mudar o meu jeito de viver, para mudar o meu jeito de estar no mundo, para mudar o meu corpo. Isso vai ficando mais claro à medida que vou vivendo. E viver em Altamira me deu uma outra percepção das coisas. Porque venho para a Amazônia – diferentes Amazônias –, desde 1998, e para Altamira, essa região daqui, desde 2004. Mas sempre usei Altamira como passagem. Ou seja, eu desembarcava no aeroporto e já pegava um barco para ir para a floresta, porque não estava interessada na cidade, estava interessada na floresta. Eu separava essas duas coisas. Vivendo aqui, pude entender que a cidade – assim como qualquer cidade amazônica – são ruínas da floresta. Nas periferias da cidade, estão aquelas pessoas que foram deflorestadas, que foram arrancadas da floresta e convertidas em pobres. Aí, entendi também que se a gente não agir sobre a cidade, se não reflorestar as pessoas que foram arrancadas, não tem como a gente fazer esse enfrentamento. O que foi bastante surpreendente na minha vida é que, de novo, eu ia usar a cidade só para morar, mas o meu interesse estava na floresta. E entendi que eram uma coisa só, em diferentes momentos do mesmo processo e que precisava atuar em todos eles. Também fui entender como é difícil viver aqui com todas as contradições que é viver, acreditar no que acredito, defender o que acredito, e viver em um sistema capitalista. Porque em uma cidade grande como São Paulo, tu perdes as conexões das cadeias. Tu chegas na prateleira do supermercado e a gente não vê o boi. A gente vê maminha, patinho, alcatra. Está lá, asséptico. O sangue foi “limpado” (Eliane faz o sinal de aspas com as mãos) para não ofender a nossa sensibilidade. Isso é só um exemplo. Aqui, as cadeias são muito mais curtas, então, se tu vais comprar uma mesa, tu vais ter que cuidar porque é quase 100% de chance daquela mesa ser produto de desmatamento, porque não existe madeira que não seja de desmatamento na Amazônia. A madeira que se diz certificada, que tem o selo, é tudo “esquentada”, é tudo fraude. Agora, estou fazendo uma casa, essa é a razão do barulho. A gente está há um ano comprando madeira de segunda mão, madeira de demolição, para não usar nenhuma madeira de desmatamento, porque a das lojas é toda de desmatamento. O marceneiro está rodando a região para procurar árvores caídas porque é o único jeito de a gente não ter madeira de desmatamento. Como conto no livro, fui alugar uma casa e estava quase assinando o contrato quando descobri que o dono daquele lugar era o Taradão (Regivaldo Pereira Galvão), que é o mandante do assassinato de Dorothy Stang. Não é que São Paulo ou qualquer outra cidade do Brasil seja melhor, é só que aqui as cadeias são mais curtas. Então, toda decisão, toda escolha de compra, de onde morar, do que usar, te faz ter que pensar. Nem sempre a gente consegue escapar das contradições. Tudo é muito mais próximo e isso também me ensinou muito. Viver aqui e olhar o mundo daqui ampliou muito a minha capacidade de enxergar e de me enxergar também nesse mundo.
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte trouxe enormes impactos para a região do Xingu. Foto: Agência Brasil
CONTINENTE Lendo o Banzeiro òkòtó, já no primeiro capítulo, me veio esta pergunta. A seu ver, qual a importância da linguagem na criação de outros mundos e no acolhimento de outras formas de vida para o enfrentamento político das violências que nos atravessam nestes tempos?
ELIANE BRUM É toda importância, porque a linguagem não é uma coisa que está fora da gente, não é uma outra coisa. A linguagem é um mundo que a gente habita. A linguagem é um corpo. É o corpo que a gente veste e anda por aí. Não é por acaso que tem um embate enorme em torno da linguagem, neste momento histórico. A ponto de o bolsonarismo estar destruindo a própria linguagem, no sentido de que já não há consenso no significado das palavras. No meu livro, isso está dito desde o início, desde a página da dedicatória, desde antes de começar a história do livro propriamente. Tento usar a linguagem chamada neutra de gênero ou inclusiva. Digo “tento” porque tento mesmo. Estou tateando, isso também é novo para mim. Busquei como fazer isso e achei que era fundamental fazer. Não conseguiria não fazer isso. É uma escolha porque sei que tem grande resistência a ela. Mas acolher o neutro de gênero é acolher pessoas que hoje não cabem (nessa linguagem). E não acho que a gente possa habitar um mundo em que não caibam pessoas, em que não caibam experiências de vidas, em que não caibam outros jeitos de estar nesse mundo. Usar todes, por exemplo, ou humanes, em vez de humanas, humanos, todos, todas, acolhe todes nós! Me sinto superincluída. Isso é uma coisa que o livro traz e é estranho porque tu és a primeira pessoa que me pergunta sobre. Achei que seria uma coisa que todo mundo ia perguntar, mas não. A outra coisa é que o colapso climático e o deslocamento da centralidade como enfrentamento legítimo é uma questão de linguagem também. Porque se a gente não mudar a linguagem, não vai se tornar outro tipo de gente, exatamente porque a linguagem não é algo que está fora da gente. Hoje, por exemplo, a Norte Energia, que é a dona da hidrelétrica de Belo Monte, controla a água do Rio Xingu, na Volta Grande do Xingu, que é uma região de 120 km, com uma das maiores biodiversidades da Amazônia, com povos indígenas, com comunidades ribeirinhas, com algumas espécies endêmicas, que só existem lá, portanto. Como ela controla a água, ela está sempre secando a água da Volta Grande do Xingu. Está matando, é um ecocídio em curso. Como uma empresa controla a água de um dos maiores rios da Amazônia? Como? Porque a água é chamada de recurso. Nesse modo de entender o mundo – o capitalista –, a água é recurso, a floresta é recurso, montanha é recurso, pedra é recurso. Tudo é convertido em mercadoria. Como a água é recurso, é mercadoria, então, pode matar uma região inteira, pode matar pessoas humanas, não humanas, pode matar um pedaço da floresta. Essa é a linguagem: recurso. O que os povos originários chamam o rio de avô, a montanha de mãe, árvores de irmãs. Não é porque eles são naïf ou são “primitivos” (Eliane faz o sinal de aspas), como tem gente que defende, mas é porque eles têm um outro entendimento de como estar no mundo. Eles têm relação com todos esses outros seres – que são seres, não são recursos. Esse é um exemplo de como a nossa linguagem precisa mudar, expressando um outro jeito de estar no mundo, porque só mudando a linguagem no sentido mais profundo que a gente vai ser capaz de viver nesse mundo sem destruí-lo. Essa é a importância fundamental da linguagem e que está se mostrando nesse embate político em todas as esferas. Estamos em um momento muito profundo dessa luta, tanto que o Bolsonaro, no discurso de posse ou em algum outro bem no começo, não fala de pobres, como acho que todos os presidentes brasileiros falaram antes dele. Mas ele fala que “tem que acabar com o politicamente correto”. Aí, se mostra a importância da disputa política da linguagem. E a gente está nessa guerra.
CONTINENTE Nas páginas iniciais do seu novo livro, você fala que “estranhar é preciso. O que não nos provoca estranhamento, não nos transforma”. Fiquei pensando nesses dizeres, já que me parece que atualmente muita gente prefere se resguardar ao máximo diante do que provoca estranhamento ou do que gera algum tipo de incômodo. Eliane, qual o potencial transformador de estar diante do que nos causa estranhamento?
ELIANE BRUM Acho que se a gente não estranha, a gente não muda. Aí, as pessoas podem me dizer: “Não, mas não quero mudar”. É uma escolha de como estar nesse mundo. Acho que escolher não mudar é mudar também, mudar para não mudar (risos). Porque minha experiência é que o novo, o surpreendente, o que faz com que eu me mova vem pelo inesperado, vem pelo espanto, que é uma outra palavra talvez até melhor do que estranhamento. Esse é o exercício da minha vida como jornalista. Mas antes de ser jornalista, talvez o que tenha também me levado para o jornalismo é uma escolha de me espantar também como um ato de resistência à domesticação do meu olhar. Quando começo a ter muitas certezas, imediatamente, duvido de mim. Porque o excesso de certezas ou quando acho que entendo tudo e que tudo está claro são armadilhas. Aí, continuo duvidando, questionando e descubro que não, que tenho vários mundos para entender ainda. Essa é uma escolha minha de vida quando estou muito confortável. Que nem quando vim para cá, eu estava muito confortável em São Paulo, em todos os sentidos. Poderia ter uma vida muito confortável para sempre. Só que o confortável me incomoda. Para mim, o confortável é um tipo de morte. E acho que uma vida viva vem pelo permanente espanto, pelo estranhamento, pela necessidade de se recriar e recriar os sentidos constantemente. Senão a gente fica segmentada. É um pouco isso que acontece na natureza mesmo, uma constante recriação.
CONTINENTE Em outro momento de Banzeiro òkòtó, você traz: “É fácil se afogar na escrita. Difícil é não se afogar”. Após ler vários de seus livros e reportagens, queria saber sobre seu processo de escrita. Como é esse momento de escrever antes de os textos serem colocados no mundo?
ELIANE BRUM (Abre um sorriso). Ah, depende do que estou escrevendo. Mas acho que o que une o meu processo é que escrevo como leitora. Tem muitos escritores que antes de começar o livro, fazem, digamos, uma arquitetura. Eles planejam todo o livro. O primeiro capítulo vai ter isso, o segundo isso… O livro, então, está todo planejado. Me lembro de que tive um dos meus chefes que também exigia que os repórteres fizessem um esquema das suas reportagens antes de escrever. Eu nunca fiz. Se eu souber o que vai acontecer num livro, não escrevo. Porque, para mim, é como ler o final do livro. Nunca leio o final do livro, tem gente que faz isso. Se eu souber o que vai acontecer, perco a vontade de ler e perco a vontade de escrever. Porque, sim, eu sei uma parte do que vou escrever. Sei aquela parte que é a da investigação jornalística, mas o como isso vai se dar, como isso vai ser contado, como é que as coisas vão se articular, ali, como vai ser essa conversa entre as pessoas, aí, eu não sei. Isso vai acontecendo. Esse livro Banzeiro Òkòtó, por exemplo, começou não foi no Brasil. Lancei, dois anos atrás, um livro nos Estados Unidos e no Reino Unido. É um livro em inglês que não tem aqui, com algumas das minhas principais reportagens. Ele se chama, em inglês, O colecionador das almas sobradas (The collector of leftover souls: Dispatches from Brazil), aí, eu e a editora americana, a Fiona, a gente se encontrou em Londres e ela disse que queria um outro livro meu. Eu disse: “Vou escrever um livro sobre a Amazônia”. Foi um ato de superconfiança deles. Eu tinha a intenção, falei para ela, de escrever um outro livro sobre um outro jeito de escrever sobre a Amazônia. Quando comecei, achei que seria isso, só que aconteceu de outro jeito. Essa história está dentro de mim sendo costurada, tecida e não sei bem como ela está sendo tecida. O livro é sempre uma surpresa para mim. Sou minha primeira leitora e me surpreendo muito sempre com o que vai acontecer, nunca sei qual o próximo capítulo. É sempre uma alegria também sentar para escrever. “Nossa, o que vai acontecer hoje?”
CONTINENTE Altamira, banhada pelo Xingu, foi considerada, em 2017, a cidade mais violenta da Amazônia. Na verdade, tornou-se a mais violenta da Amazônia. Digo“tornou-se”, porque essa violência foi construída. Além das violências ambientais, do ecocídio, como tem sido esse processo para os moradores de Altamira desde a expulsão para os RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos)? E queria pedir também para que você falasse sobre o processo de conversão de povos da floresta em pessoas pobres urbanizadas.
ELIANE BRUM Esse é o processo das grandes obras na Amazônia, todas elas. É um processo de conversão de povos-floresta em pobres urbanos. A perversão ficou bem clara, por exemplo, agora na pandemia. Quando os indígenas não aldeados, portanto os indígenas que não estão nas suas aldeias, não eram computados como indígenas. Fica claro qual é a intenção, né? É toda uma construção muito perversa de tudo. Desde 2011, acompanho, aqui, algumas famílias ribeirinhas que foram expulsas por Belo Monte. Acompanho elas nessa conversão de pessoas-floresta, pessoas-natureza para pobres urbanos. É avassalador. Algumas pessoas não resistiram, morreram. E a morte vem como AVCs. Duas pessoas a que tive acesso, uma morreu logo depois da “negociação” (Eliane faz sinal de aspas), que não é negociação, da imposição da empresa. Uma morreu de AVC; a outra teve um AVC e sobreviveu, que é o Seu João. Aconteceram outros casos, acompanho só alguns, porque é um processo extremamente violento. Várias dessas pessoas nunca tinham precisado pagar por energia elétrica, que é caríssima aqui. Nunca tinham precisado pagar por água. Elas nunca tinham precisado pagar por comida. Elas também nunca tinham passado fome. Algumas não tinham CPF. É assim que as pessoas se tornam pobres, quando elas precisam pagar. Pagar pelo básico e se tornar um número, um cadastro oficial. Para mim, o exemplo que mais conta isso é do Seu Otávio das Chagas, que conto no livro, um ribeirinho que sempre viveu na ilha. Entendi isso quando vou entrevistá-lo já na periferia de Altamira e ele não tem como me contar do que era a vida lá, falta. Aí, ele começa a mostrar cicatrizes do corpo, começa a contar a partir das cicatrizes. Aí, entendo o que é isso que depois vou chamar de “refugiado dentro do seu próprio país”. O mundo cada vez mais vai ter refugiados – refugiados climáticos, especialmente –, mas aquele que deixa sua terra por guerra, por epidemia, por seca, por violências, pelas mais variadas coisas, mesmo que ele nunca volte, pelo menos tem uma materialidade naquela terra que ele deixou. Nem que sejam os túmulos dos seus mortos. Mas tem algo que existe, algo que ficou, que documenta sua passagem por ali. A sua ancestralidade, a sua história. Aqui, com Belo Monte, a memória, o que documentava a vida das pessoas, o que dizia que as pessoas tiveram uma vida, virou água, literalmente. Foi afogado. Os ossos do pai do Seu Otávio estão debaixo do paredão de Belo Monte. Não restou nada do que era a vida dele. Só as cicatrizes do próprio corpo. Ele foi reduzido ao seu próprio corpo. Todo o território que restou para o Seu Otávio é o território do próprio corpo. Isso é de uma violência avassaladora. É uma perdição, porque as pessoas não têm mais referência de nada. Além disso, todos os laços com a vizinhança, os laços com a comunidade estão cortados brutalmente. E eles já não sabem onde estão. Eles são jogados em uma periferia muito longe do rio, já não têm mais acesso ao rio, porque o transporte é muito caro. Eles estão em casas planejadas não para ribeirinhos. Não têm nem onde amarrar uma rede. Em bairros padronizados, onde com frequência chega a faltar semanas de água, por exemplo. Bairros que imediatamente se convertem em sinônimos de violência na cidade. Isso passa a ser um estigma. Os Reassentamentos Urbanos Coletivos são vistos como enclaves de violência por conta do crime organizado que cresceu enormemente neste processo junto com a cidade.
Indígena Aritã’hi, da aldeia Paratati, em Altamira (PA), cuja comunidade lutou contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Foto: Lalo de Almeida/FolhaPress
CONTINENTE E tudo isso aconteceu em muito pouco tempo, né?
ELIANE BRUM A minha interpretação é que, a partir da investigação que faço durante toda essa segunda década do século, quando foi construída Belo Monte, foi uma crise climática localizada. Aqui, em 10 anos, toda a cidade se transformou e a vida das pessoas se transfigurou. A gente pode aprender com o que aconteceu em Altamira, porque o que aconteceu em Altamira vai acontecer em muitos lugares no contexto da escalada do colapso climático. Os impactos, aqui, só estão começando. Hoje, os impactos são gravíssimos com a Volta Grande do Xingu secando, com uma crise humanitária, um ecocídio. Os peixes sem conseguir se reproduzir. Está se tornando um lugar de morte. E está ameaçado da mineradora canadense Belo Sun abrir uma mina de ouro nesse mesmo lugar. Isso chega ao ponto de, no começo de 2020, antes da pandemia começar, ter uma série de suicídios de adolescentes. Na cidade, chegaram a ter dois suicídios por dia, várias tentativas de suicídios no mesmo dia, todos de adolescentes. Só não tiveram mais mortes porque a comunidade se organizou e se criou mecanismos pelos quais as pessoas reconheciam as postagens quando alguém estava avisando que ia se suicidar. Imediatamente, alguém se deslocava para as casas. Adolescentes que não queriam viver nesse mundo, que eram crianças pequenas quando a hidrelétrica começou a ser construída e eram a parte mais frágil, porque seus pais ficaram desamparados. A vida toda das famílias se transfigurou para muito pior. Os pais adoeceram e as crianças cresceram nesse lugar. Então, os jovens estão morrendo tanto de violência como se autoaniquilando. Tudo isso são impactos. Na minha forma de ver, de interpretar, que documentei, é como se fosse uma crise climática localizada. Em 10 anos, esse mundo aqui foi destruído e as pessoas, algumas conseguiram dar um jeito, mas muitas não conseguiram. Tem uma geração também de crianças órfãs de pai e mãe, que é justamente a geração que virou adulta nesse processo de violência. Por exemplo, uma família de oleiros que perdeu o lugar. Não era mais possível ter olaria e foram para o crime organizado. Hoje, só restam seus filhos pequenos porque eles (os pais) foram mortos. Tem uma geração, a “geração Belo Monte”, de crianças órfãs, muitas delas de pai e de mãe, e de crianças que não sabem que moram na Amazônia. Seguidamente, tenho que explicar para algumas crianças que elas moram na Amazônia, porque tudo o que elas lembram, elas eram muito pequenas ou nasceram neste tempo. Elas já nasceram na periferia e não têm dinheiro para ir e vir. Acompanhei crianças de nove anos que nunca tinham visto o rio e o rio está na orla de Altamira. Lembro quando a classe média dizia que não era pelos 20 centavos, nos protestos da passagem de ônibus. Sim, é claro que os 20 centavos significavam muitas outras coisas. Mas também era por 20 centavos, porque para muita gente 20 centavos significa a diferença entre poder ir e vir. Aqui, isso é muito visível. As pessoas ficam confinadas na periferia.
CONTINENTE Vou fazer uma pergunta difícil, que sempre quis fazer para você. Os governos do Partido dos Trabalhadores fizeram coisas muito importantes para o Brasil, entre as quais, a PEC das domésticas e a implementação das cotas raciais, a distribuição de renda para as populações mais vulnerabilizadas. Isso não é pouco, porém, Belo Monte é um grande incômodo para o PT. Um projeto gigante, que se pauta no discurso de “desenvolvimento” que o neoliberalismo adora, mas que vem destruindo vidas humanas e secando a Volta Grande do Xingu. Por que você acha que é tão difícil para alguns progressistas reconhecerem os impactos de uma construção como essa? Por que é tão difícil enfrentarmos essas contradições?
ELIANE BRUM É difícil. Acho que essa pergunta tem que ser feita para eles. Tem que fazer para o Lula, para a Dilma. Mas é difícil por razões políticas. Se tem uma coisa que aprendi na minha vida é que ou a gente vai com as contradições ou a gente não vai. Ficar contornando as contradições foi parte do que nos trouxe até este momento. Sou sempre bastante criticada por uma parte dos petistas por fazer essa crítica persistente. Muita gente me diz: “Ah, mas por que tu continua falando de Belo Monte?”. Continuo falando de Belo Monte porque Belo Monte continua aniquilando vidas. É por isso que continuo falando de Belo Monte e vou continuar falando de Belo Monte, enquanto Belo Monte continuar a aniquilar vidas. Não estou falando só de vidas humanas. Mas, primeiro, não foi só Belo Monte. Falo muito de Belo Monte, acho um exemplo paradigmático, até, porque ela é lançada como a maior hidrelétrica do Brasil, totalmente brasileira, já que Itaipu é binacional, o que também não é bem assim. Mas o projeto do PT traz de volta as grandes hidrelétricas da Amazônia. A primeira nem foi Belo Monte, foram Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia. Se eu ou qualquer repórter for – e alguns foram e vão para lá –, é no mesmo nível de destruição. Em alguns aspectos, até mais. Teve também Teles Pires, que pouco se fala. E não teve Tapajós, o Complexo de Hidrelétricas do Tapajós, por conta de tudo o que aconteceu. Por várias razões, inclusive, o processo de crise no próprio governo, que culminou com o impeachment. Mas o PT trouxe de volta com muita força o projeto das hidrelétricas na Amazônia, que é um projeto, um modo de ver a Amazônia da ditadura empresarial militar. Isso é indiscutível. Belo Monte virou o símbolo disso por ser a maior delas nesse projeto. Reconhecer a importância de várias políticas públicas que o PT fez não nos obriga a apagar o crime que foi feito com as hidrelétricas na Amazônia. Pelo contrário, a gente precisa ver por todos os ângulos de tudo. Precisa ver o que foram os governos do PT, em todos os contextos, em toda a sua complexidade. No meu livro Brasil, construtor de ruínas, falo muito sobre o que o PT fez de importante, mas também falo muito do horror que foi carregar o projeto da ditadura para o primeiro partido mais à esquerda que a gente teve no governo em toda a história do Brasil. É crucial que isso seja visto e entendido, porque aqui é o centro. A Amazônia é o centro e o que vai se fazer agora é determinante. Se o Lula é o candidato com maior chance de se eleger nas próximas eleições, é fundamental que isso seja entendido. Belo Monte só foi feita aqui depois de décadas de resistência dos povos indígenas e dos movimentos sociais do Xingu. Só foi feita aqui exatamente porque era o PT (no poder), porque parte das lideranças do movimento social de Altamira eram fundadores do PT daqui e não conseguiam acreditar. Demoraram para acreditar, então demoraram para se mover. Também só foi feita porque o governo conhecia como os movimentos sociais operavam. Isso foi usado para dividir os movimentos sociais. Na construção de Belo Monte, várias famílias de ribeirinhos, a maioria deles é de analfabetos nas letras, mas alfabetizados em rio, alfabetizados em floresta, assinaram papéis que não eram capazes de ler, que lhes tiravam tudo. Os protestos de indígenas, de ribeirinhos, de militantes do movimento social foram reprimidos com a Força Nacional, assim como a greve dos trabalhadores. Foi descoberto um agente da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) nas reuniões do Movimento Xingu Vivo para Sempre. O nível de violência do que aconteceu nesse processo de construção de Belo Monte é avassalador, por isso que a gente tem impactos dessa magnitude. É um fato de que a ditadura empresarial militar criou uma imagem da Amazônia que não corresponde de maneira nenhuma à realidade. Mas é a imagem que, até hoje, persiste para muitos brasileiros, que é a do “deserto verde”, da “terra sem homens para homens sem-terra”, não é exatamente isto, mas algo como “ocupar para não entregar”, a coisa da segurança nacional... Isso não foi enfrentado por nenhum dos governos da redemocratização. Mas nenhum foi capaz de implantar. Nenhum outro fez o que o PT fez de implantar, de fazer, de repetir, de reproduzir a mesma política da ditadura empresarial militar na Amazônia sem escutar as populações locais, sem respeito pelo conhecimento das populações locais, sem respeito pela autodeterminação das populações locais de escolher os seus destinos na lógica da exploração predatória. A Amazônia como um corpo para violação, para a exploração. Ou seja, o PT reproduziu o olhar colonizador. Vai para a floresta, destrói a floresta, não liga para os seus povos, tira o que tem que tirar e era isso; (como se) a floresta fosse um objeto. Sim, é verdade que o Bolsonaro leva isso a níveis sem precedentes. A floresta está chegando ao ponto de não retorno, já é uma questão de anos, não mais de décadas. Mas também é verdade que não foi Bolsonaro quem inventou isso. Essa é a história de todos os governos. Belo Monte é um crime. Belo Monte é um ecocídio e não vai dar para limpar essa marca. Ou o PT vai com essa marca, ou não vai, porque ele não vai conseguir apagar. Essa memória está sendo contada, essa memória continuará sendo contada, essa memória não será apagada. Pessoalmente, não acredito em apagamento da memória. Acho que esse país tem pagado muito caro pelo apagamento da memória. Não sei se respondi a tua pergunta.
Em suas obras, a repórter lança um olhar sobre questões fundamentais para a sociedade brasileira. Imagens: Divulgação
CONTINENTE Respondeu, sim. No lançamento do Banzeiro Òkòtó, você chamou a atenção que a imprensa brasileira deveria estar cobrindo a Amazônia ainda mais do que cobre Brasília. No seu entendimento, por que há esses silêncios por grande parte da imprensa do país com relação à Amazônia?
ELIANE BRUM Tem uma coisa que não é o principal, mas que é importante. Cobrir a Amazônia é caro. Especialmente, se tu cobres como um enviado especial. A viagem é longa, é cara. O deslocamento de barco é caro na floresta, precisa de um investimento grande em reportagem. E a imprensa, como se sabe, há muitos anos, está numa crise muito grande. Por essa razão, liderada pelo Jonathan Watts, do The Guardian, a gente criou o Rainforest Jornalism Fund, para financiar reportagens na Amazônia. Como uma forma de enfrentar essa dificuldade financeira e de estimular a cobertura da Amazônia, e, principalmente, de estimular que indígenas, ribeirinhos, quilombolas façam suas reportagens. Ampliar esse gueto do jornalismo que até pouco tempo era quase que exclusivamente branco e de classe média. Só que essa é uma razão e essa é mais fácil de enfrentar. Mas acho que a principal razão não diz respeito só à imprensa, a imprensa faz parte dessa sociedade e é parecida com essa sociedade. Acho que é correto, mas também é fácil chamar o Bolsonaro de negacionista, o Trump de negacionista, toda essa corja de negacionistas. Estou escrevendo sobre isso. Eles são negacionistas, mas eles são negacionistas por estratégia, são negacionistas porque estão a serviço das corporações que causaram e seguem causando o colapso climático. Bolsonaro é negacionista porque está a serviço das corporações, a serviço do agronegócio predatório, que tem pouco tempo para colocar as terras protegidas da Amazônia, que são basicamente os Territórios Indígenas e as Unidades de Conservação, no estoque de terras comercializáveis para que essas terras tornem-se privadas. Eles têm pouco tempo porque a reação está ficando cada vez maior, está ficando muito difícil para os produtos brasileiros lá fora por conta do desmatamento. Ele está a serviço. O negacionismo dessa gente é estratégico, é proposital, tem uma função. A questão é o negacionismo, digamos, “sincero e entranhado”. Acho que a maioria das pessoas vai dizer que “sim, existe crise climática”, que “sim, não pode destruir a Amazônia”, que “sim, tem extinção em massa de espécies”, mas dizer isso é fácil. A questão é viver de acordo com o que se diz. Me parece que a gente está vivendo um negacionismo generalizado. No sentido de que a gente está vivendo agora, neste momento, um colapso climático. Uma minoria de humanos composta por bilionários e supermilionários e o seu entorno, que vão compor o 1% mais rico da população global, causou a crise climática. Eles estão mudando a morfologia e o clima do planeta. Isso está levando ao superaquecimento global com enormes consequências. Partes vão simplesmente sumir. Muita gente vai morrer. Já está acontecendo e as pessoas estão sentindo isso. A gente está vivendo uma extinção em massa de espécies. Como é que tu não acordas e dormes pensando em como enfrentar isso? Quando a Greta Thumberg diz: “Nossa casa está em chamas. Eu não quero a esperança de vocês, quero o pânico de vocês. Quero que vocês entrem em pânico, porque estou em pânico”. É exatamente isso. Qual seria o instinto mais básico, não só de humanos, mas de organismos muito menos complexos biologicamente? Tua casa, teu habitat está em chamas, está pegando fogo. Aqui, literalmente, às vezes. O que tu vais fazer? Tu vais te levantar imediatamente e tentar te salvar. Tu vais tentar te salvar primeiro e salvar a tua casa depois. Essa é a reação óbvia de quem vive. Mas nós estamos contrariando nossos instintos mais evidentes. A maioria está vivendo e dizendo: “Sim, isso acontece”. Mas não está vivendo como se isso estivesse acontecendo. Isso é o que eu chamo de um negacionismo “sincero”. Esse negacionismo está comprometendo, talvez de forma definitiva, o enfrentamento da nossa extinção. Ou, pelo menos, das próximas gerações, gerações que já estão vivas, que já nasceram e que vão ter que viver em um planeta muito mais hostil, porque nada do que a gente viveu como espécie foi maior do que isso. Mas onde está o pânico? Onde está a reação? O que a gente vai fazer para se salvar? E fazer juntos como comunidade, lutando pelo comum que é a própria vida, que é manter o planeta. Onde está isso? É muito mais grave. Por isso que essa geração dos muito jovens está em pânico, porque ela olha para os adultos e tem uma inversão total dos papéis. Os filhotes estão protegendo, os filhotes são lúcidos, os filhotes encaram a realidade, os filhotes têm que proteger o mundo dos adultos que estão em negacionismo, em negação. Deve ser avassalador o desamparo. Não sei o que é ter 14, 15, dez anos nesse momento vendo “a casa em chamas” e as pessoas sentadas, conversando.
CONTINENTE Para finalizarmos, “a alegria também é uma ferramenta de resistência”. Nesses tempos, de onde vem essa sua força e o que tem lhe feito feliz?
ELIANE BRUM (Abre um sorriso) Tenho pensado sobre isso, porque sou muito feliz. Não essa felicidade de consumo, essa “felicidade mercadoria” do capitalismo, mas a alegria como instrumento de resistência. Tenho muita alegria na minha vida, me sinto muito viva e acho que vem da comunidade. Primeiro, viver na natureza. Por mais que eu esteja em contato sempre com a permanente destruição, vivo na natureza, vivo com a natureza e vivo nesse processo de buscar o meu reflorestamento, que sei que vou morrer sem conseguir completar, mas estou em movimento. Estar em movimento, me sentir em movimento e com comunidade. Ou seja, estou vivendo perto e lutando junto com muitas pessoas que também estão se movendo, criando coisas, inventando coisas. A gente está lutando por esse comum. Acho que a única forma de enfrentar é criando comunidade. É isso que me dá alegria de lutar junto, me dá alegria de viver na natureza. Nossa, tem muitos motivos para ter alegria! Acho que é isso, a alegria é uma grande forma de resistência. Aprendi isso aqui, porque as pessoas daqui acabaram de viver um fim de mundo que foi Belo Monte e não é que não tem sofrimentos atrozes, mas toda possibilidade é de criar um momento de alegria. Só o fato de estarem juntas umas com as outras, comendo açaí ou (tomando) um suco de cupuaçu ou tomando banho no rio, mesmo que o rio já esteja muito mais poluído… É alegria, a gente está vivo! A gente está lutando pela vida, vivendo uma vida viva no presente.
ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.