Sabe-se que os polvos são animais dotados de possibilidades quase ilimitadas de camuflagem. Eles trocam drasticamente de cor e textura de pele de acordo com o ambiente por onde passam e dominam uma gama cromática que vai dos azuis angelicais e laranjas estridentes aos efeitos metalizados de verde, prata e dourado. Entre rochas e conchas marinhas, eles brilham soberanos, dançam, sonham e são capazes de alterar o próprio código genético. Quando se sentem ameaçados, lançam nuvens de tinta preta para afastar e ludibriar predadores. Polvos atuam como artistas que manejam substâncias e pigmentos para simular formas e cenários, performar e ensaiar os seres que os circundam.
Entre abril e junho de 2021, quem chegava no galpão da Galeria Fortes D’Aloia e Gabriel para conferir a exposição individual da artista Yuli Yamagata em São Paulo, confrontava-se com um desengonçado polvo de tecido medindo quase três metros de altura. Recortes de elastano, veludo e seda davam forma a uma criatura algo distorcida que parecia migrada de um anime japonês simultaneamente divertido e monstruoso. Embora muitos outros personagens ali se expusessem para nós, visitantes, algo nas características desse animal em particular parecia se aproximar dos procedimentos e gestos da artista.
Chorume, 2021. Mixed media, fiberglass and resin, 33 x 182 x 149 cm. Imagem: Julia Thompson/Divulgação
Filha de mãe e avó costureiras, Yamagata se aproximou da prática artística através das histórias em quadrinhos, especialmente os comics e os mangás, e passou a percorrer os comércios populares do Brás e da Rua 25 de Março em busca de estampas kitsch, tecidos de baixa qualidade e produtos falsificados de grandes marcas; em outros termos, assimilações precárias de formas consideradas originalmente sofisticadas.
Ao contrário das referências eruditas da História da Arte, interessava-lhe as discussões em torno da cultura de massa e do universo pop; as relações entre original e cópia, bom e mau gosto, o tosco e o vulgar, moda e consumo. Daí, tecidos designados para servir de forros, cortinas ou protetores de sofá, padrões baratos de animal print, calças jeans stretch e lycras utilizadas para confeccionar roupas de academia, em geral compostas por cores intensas e sintéticas, passaram a ser apropriadas para constituir corpos estranhos e distorcidos que abusam da elasticidade do tecido.
Yoga baby, 2018. Calça jeans, linha de costura, fibra siliconada, 40 x 50 x 30 cm. Imagem: Julia Thompson/Divulgação
No âmbito da indústria esportiva, a artista investigava não apenas a passagem da alta-costura e do fast fashion ao produto falsificado de segunda linha, mas também como as formas e estampas desses materiais são adulteradas pela própria morfologia do corpo de quem veste (por exemplo, como pernas esgarçam e distorcem a estampa de uma calça de ginástica etc.).
Em Paola e Paulina (2018), por exemplo — cujo título toma emprestado o nome das personagens principais da novela A usurpadora, um grande sucesso entre a geração anos 1990 —, um tecido de snake print compõe duas longas cobras que vestem sapatos. Num mesmo trabalho, há muitas simulações: um tecido barato que imita um tecido caro, estampa e forma que imitam a pele e o corpo de um animal, o corpo do animal que se confunde com uma perna humana, convertendo-se em personagem, uma perna que imita a outra (aludindo às gêmeas do título), e por aí vai.
Na produção da Yamagata, é comum que motivos difusos e não humanos (cobras, milhos, salsichas, fumaças…) vistam acessórios como meias, tênis e luvas ou sejam posicionados de forma antropomórfica, assumindo traços de humanização e psicologismo, tal qual nas histórias em quadrinhos ou nas fábulas infantis. Por outro lado, também é comum que pernas, braços e outros fragmentos antropomórficos figurem como animais invertebrados que ostentam elasticidade, como é o caso de Yoga Baby (2019), Jogging Tigre (2018) ou Finger (2018). Ao objetificar o corpo e subjetivar as coisas, Yamagata nos leva a considerar o consumo como modo ativo de relação, meio pelo qual forjamos e ficcionalizamos nossos próprios personagens-produtos.
Vejamos Milho manteiga (2020), Fumaça (2020) e Gota com órgão (2020), obras nas quais fenômenos orgânicos, líquidos ou incorpóreos também se formalizam através de convenções de representação próximas das histórias em quadrinhos. Essas caricaturas preenchidas de espuma nos conectam a trabalhos da pop arte americana dos anos 1960, em especial às esculturas macias e agigantadas de Claes Oldenburg. Assim como ele, a artista tende a apostar nas contradições para transformar e animar os objetos do cotidiano. O duro se converte em macio, o pequeno, em grande, o funcional, em disfuncional, e o plano, em tridimensional.
Polvo nadando, 2021. Elastane, velvet, sewing thread, silicone fiber and stretcher, 295 x 210 x 17 cm. Imagem: Julia Thompson/Divulgação
Por vezes, esses recursos contraditórios e hiperbólicos acabam por produzir uma dissimulação precária da realidade, situando as obras enquanto simulacros que tiram sarro de si mesmos, já não levam a sério as ambições da representação. A cópia de má qualidade deixa de ser vista como subproduto de um original e passa a ser considerada enquanto singularidade estética, gênero em si mesmo (afinal, sabe-se que os julgamentos sobre o que é de bom ou mau gosto são definidos a partir de uma estrutura de privilégios de classe). Além disso, a ambiguidade também se instaura. O que pode soar fofo ou ingênuo tem potencial para rapidamente se converter em inquietante aberração – algo parecido com o efeito que clowns, papais-noéis e demais personagens excêntricos geram em crianças.
Recentemente, trabalhos mais novos têm explorado a condição aberrante com mais evidência, como é o caso de Perna de pijama (2021), Chorume (2021) e Perna de cyborg (2021), não mais feitos apenas com tecido e espuma, mas também fibra de vidro e resina. Aqui, flertamos com o gênero do terror, do grotesco e do macabro, mais especificamente com a comédia de terror. Se o jogo da artista se concentrava sobretudo nos arranjos entre sujeito e objeto, um novo elemento entra em cena: o abjeto. O estado de abjeção se associa a corpos defeituosos, deformados ou fragmentados cheios de fluidos corporais, nos provocando a um só tempo repulsa e sedução.
Ironicamente, Yamagata é capaz de dotar essas experiências abjetas de fascinação. A poça de chorume, repleta de cores que se assemelham a diferentes fases da decomposição e do apodrecimento das coisas, também se assemelha à paleta de pintor. Noutros casos, é possível imaginar sangue, pus, bile, fezes, suor e vômito. Os temas centrais são justamente aquilo que costuma estar excluído do imperativo das imagens estéticas, pondo em crise as oposições entre beleza e repugnância. Rompem-se as fronteiras que separam o interior do exterior, o contido do liberado, orgânico e inorgânico, morte e vida. O abjeto fragiliza as fronteiras, problematiza as passagens da natureza a cultura, e vice-versa.
Milho na manteiga, 2019. Lycra, sewing thread, silicone fiber, 100 × 110 × 32 cm. Imagem: Julia Thompson/Divulgação
Aliás, tanto o motivo do ciborgue quanto o do chorume (ambos necessariamente, híbridos, heterogêneos) contestam a expectativa de uma identidade bem-definida, um dos aspectos centrais dessa artista. Como você já deve ter notado, quem confronta tal corpo de obras em busca de coerências temáticas bem-definidas tende a encontrar desafios.
Yamagata integra uma geração cuja lida com as imagens e referências culturais tem os dois pés fincados no século XXI. Por isso, transitamos por uma miríade de tópicos, assuntos, ícones, símbolos e narrativas de origens distintas, como alguém que navega por uma infinidade de abas abertas na internet ou um polvo que projeta seus oito tentáculos para oito direções diferentes. Junto aos milhos, cobras e fumaças, há bruxas, verrugas, unhas enormes, gatos pretos, bocas e línguas lascivas, escorpiões, pizzas tristes, orelhas, caveiras, diabos e o que mais for possível imaginar.
Esse tanto de mosaicos e quimeras nos induzem a estímulos necessariamente contraditórios e resistem a qualquer sentido unívoco. Dadas as circunstâncias de um capitalismo pós-humano, cuja realidade transgênica excede qualquer binarismo, é possível dizer que a artista abusa da teatralidade para estressar as relações entre naturalidade e artificialidade sem buscar dissociá-las (o que a afasta, consequentemente, das perspectivas moralizantes em torno desses tópicos). Em outras palavras, eis uma produção que não está a serviço de lei alguma, antes, existe na aposta de sua própria fragmentação – espécie de rebeldia e insubordinação, propriedade do que é monstrum.
À esquerda, Paola e Paolina, 2017. Tecido estampado, fibra de silicone e tênis infantil, 200x 80 x 50 cm. À direita, Gota com órgãos, 2020. Lycra, fibra solicitada e spray anti UV, dimensões variáveis.
Imagens: Julia Thompson/Divulgação
Peter Godfrey-Smith diz que os polvos são, provavelmente, “o mais perto que chegaremos de um alienígena inteligente”. Dotados de um corpo mole, nove cérebros, três corações e centenas de ventosas, esses animais têm se convertido num hit cultural, e são alvo de uma multiplicidade de novos livros, filmes e documentários (aliás, a obra de Yamagata que citei no início desse texto foi inspirada em My octopus teacher, 2020, produção pop da Netflix que viralizou).
Nosso deslumbramento com os polvos, apesar de toda alteridade, parece se aproximar de um sintoma coletivo cada vez mais frequente: a incapacidade de distinguir realidade e ficção, verdade e mentira. O polvo engana, ludibria e encena, finge ser o que não é. Parece que isso nos provoca certo alívio, certa sensação de que é possível jogar propositivamente com a farsa, ao contrário de ceder à melancolia. Se não temos mais parâmetros coletivos para ler o real e forjar saídas para as inúmeras catástrofes que nos atravessam, talvez estejamos apegados ainda a modelos caducos, binarismos modernos cujas formulações estão fadadas a fracassar. Rodopiando sobre si mesma, a obra-polvo de Yamagata perscruta tais fantasias e nos convida a encenar, não sem alguma diversão.
POLLYANA QUINTELLA, curadora, pesquisadora e crítica cultural. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição.