Engraçadinha
Um dos maiores êxitos da carreira do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues ganha nova edição
TEXTO Fernando Silva
03 de Janeiro de 2022
Nelson Rodrigues faz a primeira assinatura com seu nome em um romance com esta obra
Imagem Dilvulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 253 | janeiro de 2022]
Nelson Rodrigues tinha 47 anos quando decidiu assinar o primeiro romance. Reconhecido dramaturgo, autor de peças como Vestido de noiva (1943) e Os sete gatinhos (1958), o escritor já enveredara pelo gênero, sob os pseudônimos de Suzana Flag e Myrna, mas só colocou o nome pela primeira vez nos créditos em Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados. A estreia do pernambucano vingou: com paixões avassaladoras, questões filosóficas, mortes e muito erotismo, a história tomou as ruas do Rio de Janeiro, então capital federal.
Publicada no jornal carioca Última Hora, em 112 capítulos diários, esta intrincada trama de cama, mesa e banho caiu nas graças dos leitores, que de agosto de 1959 a fevereiro de 1960 a acompanharam como se estivessem vendo tudo por um buraco de fechadura, sem retoques. Um dos maiores êxitos da carreira de Nelson Rodrigues (1912-1980), o folhetim é dividido em duas fases da vida da protagonista Engraçadinha – Dos 12 aos 18 e Depois dos 30 – e ganhou em 2021 uma nova edição, lançada pela HarperCollins (512 páginas) em um único livro.
Na primeira parte, ambientada em Vitória (ES), no início dos anos 1940, Engraçadinha é a adolescente cheia de libido, um pequeno furacão sexual, a moça que coloca homens e mulheres de joelhos. Ao viver um amor proibido com Sílvio, criado na mesma casa e já noivo de Letícia, prima de ambos, ela muda a dinâmica do ambiente familiar e estremece ainda mais as relações com o pai, o doutor Arnaldo. Deputado estadual, ele acaba se suicidando.
Na outra metade, dá-se um salto de 20 anos no tempo, com a ação ocorrendo no mesmo momento em que Rodrigues escreve a história para o jornal, no fim da década de 1950. A personagem principal mora agora no Rio de Janeiro (RJ) com o marido, Zózimo, e os cinco filhos e se converteu ao protestantismo. Ali, em meio a investidas amorosas de um juiz de direito mais velho, o doutor Odorico Quintela, as preocupações com Silene, a caçula que saíra a ela no quesito voluptuosidade, e a questões morais envolvendo doutrinas de sua religião, Engraçadinha se perguntava se, já madura, encontraria felicidade e prazer. Inclusive o sexual.
Tal mergulho na alma dessa mulher foi possível ao escritor justamente pelas características do romance, “a forma mais rica, mais complexa, mais vasta que o artista pode encontrar”, como ele próprio disse ao Última Hora, em matéria da edição de 21 de setembro de 1959. Nessa entrevista, aliás, o Anjo Pornográfico explicou também que o projeto era um antigo desejo. “Desde menino que eu sonho levantar um mundo romanesco onde todos possam entrar, onde o homem possa aparecer como de fato é: abjeto e divino”.
Nelson Rodrigues publicou seu romance, originalmente,
no jornal carioca Última Hora, em 112 capítulos diários.
Imagem: Divulgação
Asfalto selvagem ia, assim, “até as raízes do ser”, vasculhando dramas e contradições de seus personagens. Um dos exemplos é o doutor Arnaldo, que ora defendia com unhas e dentes a família, ora considerava os parentes “uma corja”. Presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, tido como “homem de bem”, o político vivia imaginando, no íntimo, saídas nazistas para o que não concordava. Um de seus pensamentos é “O Brasil precisa de um Hitler”.
Entre as personagens de Rodrigues há ainda o doutor Odorico Quintela, apaixonado por Engraçadinha e que se considerava a encarnação do Poder Judiciário, brandindo a carteirinha de juiz para tentar satisfazer suas vontades; o garoto Leleco, um tímido que não se acha homem por ser virgem; e a menina Silene, adolescente ousada e curiosa. Todos cruzando os caminhos com personagens reais, casos dos jornalistas Amado Ribeiro (1929-1992), colega de Nelson em o Última Hora, e José Ramos Tinhorão (1928-2021), então na redação do Jornal do Brasil. Essa intersecção com o mundo real não para por aí, no entanto.
A obra também é um mosaico da época, com citações a nomes como o do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) e o da atriz e comediante Ema D’Ávila (1916-1985), e a empresas – o supermercado Disco ou o banco Prolar. Sem contar a constante discussão por meio de variadas vozes em torno do cenário da eleição presidencial de 1960, que definiria o sucessor de Juscelino Kubitschek (1902-1976) e seria vencida por Jânio Quadros (1917-1992).
Outro marco do período registrado no livro é o filme francês Os amantes, de 1958. A produção, dirigida por Louis Malle (1932-1995) e estrelada por Jeanne Moreau (1928-2017), trazia uma cena de sexo oral não explícita, apenas insinuada, e mexia tanto com a cabeça dos personagens de Asfalto selvagem, que era parte fundamental na trama. É de suas sessões que nascem algumas inspirações sexuais e até debates calorosos envolvendo a vida conjugal e a arte.
Em uma passagem, ao ser indagado por uma senhora a respeito da “indignidade” da obra, na saída do cinema, o doutor Odorico resolve desabafar na resposta. “De mais a mais, os culpados somos nós! Esse filme, quando estreou, era tão inocente, tão puro!” Nada mais rodriguiano.
Assim como o arsenal de frases. Umas têm lirismo inesperado como “Só conhece o amor quem possuiu a cunhada impossível”, dita por Dr. Arnaldo. Outras são incômodas: “Dr. Odorico, feliz, pensava que um dos bons achados da sociedade capitalista é a mulher bonita, pobre e voraz”.
Para Nelson Rodrigues, o mural da vida era pintado com tudo que acontecesse no cotidiano, além de suas obsessões, claro. Em ritmo alucinante, para segurar o público do dia seguinte, ele criava situações de grande carga emocional e reviravoltas na história de Engraçadinha. Com um sabor final de suspense, polêmicas, humor e tragédia grega, ele utilizava em sua receita incesto, adultério, jornalismo sensacionalista, alcoolismo, tortura policial e comentários acerca de política e literatura. E falava de nudez, do pudor e da libertação.
Romântico em sua mais profunda essência, com o tema do amor inundando as páginas, Asfalto selvagem é talvez uma narrativa sobre o desejo, todos os desejos humanos. Desde os de Durval e Zózimo, passando pelos de Janet e Letícia, até chegar aos do próprio leitor do romance. Seja o de rir, o de alcançar certa posição social, o de ser amado, o de acreditar em uma religião, o de vencer o medo, o de buscar o que acredita, o de ser leal, o de demonstrar amor, o de fazer um país, o de não ser traído, o de fazer sexo.
FERNANDO SILVA, jornalista.