Tradução

Boris Rýji: o último poeta soviético

Poeta comenta e traduz para o português autor inédito no Brasil

TEXTO ASTIER BASÍLIO, DE MOSCOU

03 de Janeiro de 2022

O poeta Boris Rýji

O poeta Boris Rýji

FOTO Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 253 | janeiro de 2022]

Assine a Continente

Antes mesmo que Gorbachev terminasse o seu discurso de renúncia ao cargo de presidente da União Soviética, Boris Yeltsin deu a ordem para que no Kremlin houvesse a troca de bandeiras. Era 25 de dezembro de 1991. Aquela flâmula vermelha, na qual cruzavam-se a foice e o martelo encimados por uma estrela, era o símbolo de um país que acabava de ser extinto. Em seu lugar foi erguido o estandarte tricolor da Rússia. A ação toda durou seis minutos. O trauma daquela desintegração foi descrito com maestria por uma escritora que nasceu naquele país extinto, a prêmio Nobel de Literatura Svetlana Alexievich, em seu livro O fim do homem soviético.

Mas, como marco dos 30 anos do fim da União Soviética, resolvemos trazer algo novo. Decidimos falar sobre um escritor até então inédito em português e praticamente desconhecido do público brasileiro. Aquele a quem a crítica literária russa costuma se referir como “o último poeta soviético”. Nenhuma outra voz melhor retratou o tormentoso período da Rússia, que emergia dos escombros, do que Boris Rýji (Ryzhy, na grafia em inglês). Conforme disse o poeta Vladislav Khodassevitch, citado por Boris Rýji quando ele ganhou o Antibooker, prêmio nacional que o projetou: “O poeta deve ouvir a música do seu tempo, goste ou não dela”.

Vinha dos revólveres e das baionetas o som da música que tocava no período selvagem instaurado após o fim do socialismo. Não foram poucos os que tombaram feito “os primeiros soldados da Perestroika”, conforme Rýji escreveu em um de seus poemas mais conhecidos, “Vai obter um europeizado toque…”. A geração do poeta ficou conhecida como “a geração perdida”. Ficaram órfãos do glorioso porvir, os amigos de infância que se perfilavam na fotografia, emoldurada como lembrança da formatura da escola fundamental. Na estrofe final, aparece uma mulher, alheia, que observa aquela imagem não mais como um retrato íntimo, mas como um documento histórico: “(...) abrirá o álbum azul no qual/ o futuro nossas faces acalenta,/ onde éramos vivos, no azul do álbum./ Ralé local: bandidos e poetas”.

Não foi nada fácil para Boris Rýji ter sobrevivido enquanto as pessoas que ele amava e respeitava caíam ao seu lado, engolfadas pela onda de violência. Essa angústia é expressa em uma de suas mais pungentes composições, na qual o eu-lírico conversa sobre seu futuro com uma cigana: “(...) O filho vira outro, outra vira a mulher/ se torna inimigo o amigo./ Que vai te matar? Esta culpa. Porém/ cuide da sua culpa consigo. // Ante quem a culpa? Ante o estar vivo (...)" Este poema foi escrito meses antes de Boris Rýji se matar. “Eu amo todos. Sem brincadeira”, escreveu no bilhete de despedida, deixado na casa dos pais, onde se enforcou. O sucesso começava a lhe bater à porta. Havia publicado em importantes revistas literárias. Algo muito difícil para um poeta iniciante. Um livro seu foi editado por uma editora de prestígio em Moscou. O ano era 2001. Boris Rýji era um garoto de 26 anos.


Ao lado de amigos, Boris Rýji caminha pelas ruas da antiga Sverdlovsk (atual Ecaterimburgo). Imagem: Reprodução

Embora em toda sua obra haja a marca indelével do seu tempo, Boris Rýji não ficou como autor datado. A prova disso é sua crescente popularidade nos dias de hoje, sobretudo, entre o público jovem. Há dois anos, um poema de Rýji foi musicado pela banda Molchat Doma, que se define como pós-punk, synth-pop e dark wave. Aquela nem foi a primeira conversa com o mundo pop. Em 2017, o rapper Husky declamou “Vai obter um europeizado toque…”, poema que traduzimos para esta edição.


Por uma pataca, cigana, adivinha...
(2001)

Por uma pataca, cigana, adivinha,
Do que vou morrer, vai a fundo.
Responde a cigana o seguinte, não vive
quem é como tu neste mundo. 

O filho vira outro, outra vira a mulher
se torna inimigo o amigo.
Que vai te matar? Esta culpa. Porém
cuide da sua culpa consigo.

Ante quem a culpa? Ante o estar vivo
E sorri, nos olhos encara.
A gangue na feira ressoa o motivo,
os céus vão ficando mais claros.


Погадай мне, цыганка...

Погадай мне, цыганка, на медный грош,
растолкуй, отчего умру.
Отвечает цыганка, мол, ты умрёшь,
не живут такие в миру.

Станет сын чужим и чужой жена,
отвернутся друзья-враги.
Что убьёт тебя, молодой? Вина.
Но вину свою береги. 

Перед кем вина? Перед тем, что жив.
И смеётся, глядит в глаза.
И звучит с базара блатной мотив,
проясняются небеса.


O BAIRRO PROLETÁRIO DE VTORCHERMET
Dizem por aqui que a verdadeira Rússia não é Moscou, nem São Petersburgo. Boris Borisovich Rýji não é originário de nenhuma dessas duas cidades, que há séculos monopolizam o eixo cultural do país. O poeta veio de um chão de proletários. Nasceu, em 1974, na cidade de Chelyabinsk, na região dos Urais. Aos 7 anos, seu pai, de quem herdou o nome, o professor universitário e geólogo Boris Petrovich Rýji, foi transferido para Ecaterimburgo.


Cartaz do filme Boris Ryzhy (2008), da diretora
russoholandesa Aliona van der Horst.
Imagem: Reprodução

A vocação fabril vem desde a criação do município, em 1723, durante o reinado da imperatriz Catarina, que fundou a cidade para sediar uma fábrica metalúrgica e acabou também dando-lhe nome. Tal denominação manteve-se assim até 1924, quando foi alterada pelo governo bolchevique. A cidade passou a se chamar Sverdlovsk, em homenagem a um alto comissariado do Partido Comunista, Yakov Sverdlov. A ironia de tudo é que foi em Ecaterimburgo que a família real russa foi assassinada. E, segundo alguns historiadores, há fortes indícios de que a ordem para execução tenha partido do próprio Sverdlov.

Em uma das poucas aparições em vídeo de Boris Rýji, num programa da televisão local, o poeta visita o endereço em que viveu dos 7 aos 17 anos de idade. “Foi aqui que passei os 10 anos mais felizes da minha vida”, disse. O nome da localidade, Vtorchemet, é abreviatura de uma fábrica de metalurgia pesada, que reprocessa sucata. O bairro, que se tornou uma espécie de personagem da obra de Rýji, foi erguido ao redor de duas fábricas que foram construídas durante a Segunda Guerra para prover tanques e aviões de artefatos e peças de plástico.

 
Capa do livro La neige couvrira tout, tradução para o
francês dos poemas de Boris Rýji por Jean-Baptiste Para.
Imagem: Reprodução

Somente em Vtorchemet havia pelo menos três fábricas em atividade quando Rýji era criança. Sua família destoava do status social dos demais moradores. Funcionário qualificado, Boris Petrovich era levado ao trabalho em um automóvel com motorista. Autor de uma biografia do poeta, Ilya Falikov informa que era para aquele bairro que as autoridades soviéticas direcionavam não só as pessoas de baixa extração social como também ex-presidiários. “A família Rýji acabou indo para o bairro por um mal-entendido, mas, para ser mais preciso, pela falta de ambição de Boris Petrovich”, disse o biógrafo.

A GERAÇÃO DOS GUARDA-COSTAS
Um ano antes de morrer, Boris integrou a delegação russa que participou de um congresso internacional de poesia em Amsterdã. Em 2008, Aliona van der Horst, russa que desde a infância vive na Holanda, dirigiu o documentário Boris Ryzhy, produção que ganhou os prêmios de melhor documentário nos festivais internacionais de Edimburgo, na Alemanha, e em Montreal, no Canadá.

Em uma das cenas mais tocantes do filme, a viúva do poeta, Irina Knyazeva, caminha por um cemitério local observando as requintadas lápides de mármore preto sobre as quais estão impressas as imagens dos mortos em traços tão realistas, que dão a impressão de serem fotos. Uma alameda inteira composta de sepulturas onde foram enterrados jovens com pouco mais de 20 anos. “Nós fomos a geração dos guarda-costas. Quando terminamos a escola, Boris e eu fomos para a universidade, mas a maioria dos nossos colegas de escola foi trabalhar exatamente com estes aí”, e apontou para as lápides.

Registro do seu casamento com Irina Knyazeva. Imagem: Reprodução

Ao ser perguntada pela diretora “como eram aqueles anos”, Irina rebate com outra pergunta: “Os anos da Perestroika?”, para, então, explicar. “Foi como na América, no começo do século passado. Deram liberdade às pessoas, mas não se sabia o que fazer com aquilo. Começaram a desenvolver o capitalismo…”. É quando Irina fala sobre as sangrentas disputas por território. “O mais forte começou a devorar o mais fraco. Não ficou nada de sagrado entre as pessoas. Eles matavam... Foi um massacre”.

Tão logo se inicia o documentário, somos conduzidos a uma atmosfera pesada. Olga, irmã do poeta, ao chegar no endereço em que morou com o irmão, é recebida de forma amarga por uma idosa. Além de não permitir a entrada, briga com uma vizinha que autorizou a equipe a subir no prédio. O caminho de Olga, em busca das memórias do irmão, é um dos eixos narrativos do filme. Ao se encontrarem com Sergey Luzin, melhor amigo de infância de Rýji, ouvem a razão pela qual muitos rostos migraram do álbum azul da escola para o mármore negro das lápides. “Se a estrutura social não tivesse mudado, todos nós iríamos trabalhar nas fábricas. Mas tudo foi fraturado. Todo mundo partiu para o mundo do crime.”

O FILHO VIRA OUTRO”
Um dos momentos de maior tensão emocional é quando Aliona conversa com o filho do poeta, Artyom, na ocasião, um adolescente de 15 anos. É possível sentir muita revolta em sua fala. É perceptível a amargura em seu olhar. Ao ser perguntado se lia os poemas do pai, respondeu incisivamente que não.

Mas tudo indica que a revolta pública contra o legado do pai tenha ficado na adolescência. Em 2013, Artyom participou de um programa de televisão, em Ecaterimburgo, e, ao lado de especialistas na obra de Boris Rýji, falou com respeito, admiração e conhecimento sobre a obra paterna. “Na verdade, os poemas de meu pai são como contos de fada. Você os lê e é capaz de ver todos os detalhes”, opinou.


Rýji na casa dos pais, onde viria a se matar. Imagem: Reprodução

Quando era pequeno, Artyom comentou com a mãe, Irina, que Moscou era uma cidade grandiosa e lhe perguntou pelo que Ecaterimburgo era conhecida. “Aqui mataram o tzar e foi aqui que veio ao mundo Boris Yeltsin”. Tudo indica que, em pouco tempo, a cidade também será conhecida em todo mundo graças aos poemas de Boris Rýji. O Bairro de Vtorchermet já foi escrito em inglês, holandês, alemão e italiano. Em 2020, chegou às livrarias francesas La neige couvrira tout, coletânea com 35 poemas, com tradução de Jean-Baptiste Para.

Pena que Artyom não poderá ver o reconhecimento internacional de seu pai. Ano passado, o rapaz, que estava com 27 anos, foi encontrado morto no apartamento em que morava, em Israel. “Falam que poeta precisa de tragédia. A tragédia de um poeta é ele ser poeta. E só. Mais tragédia do que isso não deve haver”, opinou o próprio Boris Rýji, em uma das poucas entrevistas que deu em vida. Infelizmente, os fatos trágicos relacionados com Boris Rýji não se restringiram à sua poesia, como demonstram a sua morte precoce e a de seu filho.


Vai obter um europeizado toque...
(1998)

Vai obter um europeizado toque
a voz do transasiático poeta
esquecerei a fantástica Sverdlovsk
o pátio escolar de Vtorchermet

Mas onde quer que duro e frio eu caia
na fogosa Paris, úmida Londres,
enterrem minhas cinzas miseráveis
num cemitério de Sverdlovsk sem nome.

Nem é no plano do que é belo e falso,
mas pose artística e espalhafatosa,
porque é lá que estão os meus chegados
e os seus perfis em mármore e em rosas.
 
tão nos vitríolos de neve azuis
os que trupicaram, os ruins de nota,
com cobre em tartarugas como os
primeiros soldados da Perestroika.

Que a chaminé de Vtorchermet apite,
que a Plastpolimer assobie largo.
Uma mulher, que não estava comigo,
vai abrir o álbum e fumar com garbo.

Ela abrirá o álbum azul no qual o
futuro nossas faces acalenta,
onde éramos vivos, no azul do álbum.
Ralé local: bandidos e poetas.

Приобретут всеевропейский лоск...

Приобретут всеевропейский лоск
слова трансазиатского поэта,
я позабуду сказочный Свердловск
и школьный двор в районе Вторчермета.

Но где бы мне ни выпало остыть,
в Париже знойном, Лондоне промозглом,
мой жалкий прах советую зарыть
на безымянном кладбище свердловском.

Не в плане не лишенной красоты,
но вычурной и артистичной позы,
а потому что там мои кенты,
их профили на мраморе и розы.

На купоросных голубых снегах,
закончившие ШРМ на тройки,
они запнулись с медью в черепах
как первые солдаты перестройки.

Пусть Вторчермет гудит своей трубой,
Пластполимер пускай свистит протяжно.
А женщина, что не была со мной,
альбом откроет и закурит важно.

Она откроет голубой альбом,
где лица наши будущим согреты,
где живы мы, в альбоме голубом,
земная шваль: бандиты и поэты.


COMO TÃO BEM A GENTE VIVEU MAL”
Arriscaria dizer que há uma grande chance de Boris Rýji se tornar conhecido em escala mundial. Sua vida será tema de uma produção cinematográfica que ficará a cargo do jovem Semyon Serzin, estrela do filme A gripe de Petrov (2021), de Kirill Serebrennikov, cineasta que foi indicado à categoria de melhor direção na última edição do Festival de Cannes. Estreando como diretor de cinema com O homem de Podolsk (2020), Semyon Serzin é também diretor de teatro e foi responsável por levar aos palcos uma montagem baseada em poemas de Rýji, que estava até pouco tempo em cartaz, no Gogol Center, um dos mais importantes teatros de Moscou. Para dar nome ao espetáculo, Serzin escolheu um verso muito significativo da obra de Rýji, espécie de emblema, que nós traduzimos assim: “Como tão bem a gente viveu mal”.


O poeta durante a cerimônia de entrega do prêmio Antibook, que o tornou conhecido nacionalmente. Imagem: Reprodução

*A tradução contou com a consultoria de Rafael Frates.

ASTIER BASÍLIO, bolsista do governo russo, faz doutorado no Instituto de Literatura Maksim Gorky, em Moscou. É poeta, dramaturgo e vencedor do prêmio Funarte de Dramaturgia, em 2014.

Publicidade

Banner Prêmio Cepe

veja também

Quem tem medo de desistir?

Ante o estranhamento, o idioma do afeto

Memória e esquecimento