Toda língua é estrangeira”
Trecho de Língua, poema de Ana Martins Marques (Risque esta palavra, 2021)
Em um dos primeiros poemas da seção Noções de linguística, sobre a qual também se erige seu mais recente livro, a poeta mineira Ana Martins Marques fabula sobre os caminhos de interação, entre atração e repulsa, com a língua. “Fazer a língua chamar-se língua/chamar-se a si mesma pelo nome dela/língua”, escreve Ana, incitando-nos a “domá-la para ensinar-lhe uma coreografia sua, que ela, língua, por sua vez, ensina ao pensamento, cantando”. São vastas as chances de manejar as palavras e a linguagem. De uma certa forma, ou talvez de formas sutis e/ou explícitas, é isso também que nos ensina Fortaleza Hotel (Brasil, 2021), segundo longa-metragem do realizador cearense Armando Praça, com lançamento em circuito comercial no país inteiro em 27 de janeiro.
Pois está lá, nesses versos de Língua, uma outra definição para língua que se filia ao enredo do filme: “Ou é um dueto/ uma dança/ muito antiga”. Na sequência-chave da narrativa, as duas personagens principais, Pilar – (a atriz pernambucana Clébia Sousa), camareira da localidade que dá título ao filme, e Shin (a sul-coreana Lee Young-Lan), uma turista desnorteada que chega ao Brasil para lidar com a notícia e as consequências da súbita morte do marido e lá se hospeda – dançam juntas em uma madrugada. Ali, naquele momento, concretizam a coreografia de aproximação que já vinham desenhando, um bambolear muito próprio, mas ainda assim universal na transcendência das barreiras semânticas e geográficas. Risque esta palavra, elas poderiam dizer uma à outra, e venha bailar comigo: juntas vamos criar um novo idioma.
E esse idioma há de ser do afeto, brotando na aridez do estranhamento e da improbabilidade. “O forte do gesto solidário é você ser capaz de ser solidário com alguém com quem você não tem vínculo afetivo ou com quem estabelece um vínculo temporário e passageiro”, observa Armando Praça, que desenvolveu Fortaleza Hotel com o roteiro escrito por Isadora Rodrigues e Pedro Cândido durante o laboratório do Porto Iracema das Artes – uma escola vinculada ao Dragão do Mar, equipamento da Secretaria de Cultura do Ceará. “Maurício Macêdo, produtor do filme pela Moçambique Audiovisual, conheceu o projeto e achou que eu poderia me interessar. Ele me conhece muito, é meu amigo, foi coprodutor de Greta, então sabia que eu me interesso por relações humanas, por elos entre pessoas marginalizadas, e viu que aquela história poderia ter uma identificação com a minha maneira de dirigir”, completa o diretor.
Assista ao teaser do filme.
A menção ao seu primeiro longa é relevante porque ali também a história decola a partir do encontro entre duas pessoas que, não fosse o acaso, talvez nunca se cruzassem. E que, no redemoinho da aleatoriedade, forjam elos outrora improváveis. Em Greta, Pedro (Marco Nanini) é enfermeiro em um hospital público de Fortaleza e decide abrigar em sua casa Jean (Démick Lopes), um homem ferido e procurado pela polícia. Para isso, ele mente e rasga as normas da sua profissão. Em Fortaleza Hotel, Pilar sonha em morar fora no Brasil, e está com passagem comprada para a Irlanda, mas é mobilizada por Shin, que nada entende de português, muito menos dos motivos que levaram seu marido a desistir da vida, para auxiliá-la na burocracia pós-morte em solo estrangeiro. Entre elas, assim como entre Pedro e Jean, surge, no início, uma cumplicidade. “Dela você também se acerca/ toma as palavras emprestadas e empresta-lhes também sua energia/ sua coragem ou doçura”, prossegue Ana Martins Marques no poema epigrafado acima.
Assim como Pedro em Greta, contudo, Pilar cria uma ética própria para lidar não somente com aquela mulher, mas com a chance que ela lhe traz. Acuada pelo sequestro da filha Jamile (Larissa Góes), presa por um traficante que exige dinheiro para libertá-la, a camareira elabora um plano que tem Shin como válvula de escape. Com coragem, sim, mas não com doçura, ela planeja um roubo à estrangeira com a participação do seu namorado Robson (vivido por Démick Lopes, uma recorrência nas obras de Armando Praça, assim como tantos outros integrantes da equipe) e batiza a relação no signo da trapaça.
E é aí que as duas mulheres, traídas pela vida, porém reféns da situação que lhes acercou, vão se confrontar. Fortaleza Hotel foge da obviedade ao colocar Shin e Pilar frente a frente, não para que a assalariada negue à viúva a autoria do crime que lhe rendeu os R$ 15 mil necessários para reaver a filha, mas para que, da e na confissão, revelada na casa da camareira enquanto uma ocupação policial assola seu bairro, nasçam a dança e a sororidade. Na maior parte da cena, a câmera operada pela diretora de fotografia Heloísa Passos permanece estática e as atrizes enquadradas se movem não com os nacos de frases em inglês com que se comunicam, muito menos com o português e o idioma sul-coreano, mas, sim, com o corpo a forró e tango de acento asiático.
“A ideia de que Pilar e Shin ficassem presas na casa durante aquele tempo, o que estreita o laço entre elas, surgiu de um conto da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em que duas mulheres de tribos rivais ficam presas em um determinado local por 11 horas. Como o processo de escrita do roteiro durou dois anos, fomos trazendo elementos da vida antes de filmar. Trabalhei com os dois roteiristas o tempo inteiro, as minhas contribuições passaram por eles, e fomos adaptando o roteiro aos lugares onde queríamos filmar. Era um roteiro muito poroso e eu também precisava me aproximar daquela história, ela também precisava ser minha para que eu pudesse dirigi-la”, situa Armando em entrevista concedida à Continente durante o 31º Cine Ceará, de onde Fortaleza Hotel saiu em dezembro com os prêmios de melhor atriz para Clébia Sousa e de melhor ator para Vanderlei Bernardino, que interpreta o gerente do hotel. O conto em questão se chama Uma experiência privada e consta em No seu pescoço (The thing around your neck, de 2010, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2017).
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“A gente não é luz, a gente é sombra também”, constata Clébia, oriunda de Limoeiro, no agreste pernambucano, e aqui em seu primeiro papel como protagonista, “e Pilar tem essa dualidade”. Para ela, a incapacidade concreta de estabelecer uma comunicação verbal com Lee Young-Lan contribuiu para que juntas inventassem um léxico particular: “De fato, a gente não conseguia se comunicar. Às vezes, queríamos conversar e não conseguíamos. Tinha um intérprete com ela toda hora no set, mas às vezes a gente não queria usar aquela pessoa para isso. Eu entendo o inglês, mas não consigo formar frases para poder falar, então às vezes entendia o que ela falava, queria responder mas não conseguia, então eu falava em português mesmo. E em outros momentos ela me entendia pelo corpo, pelo gesto. Assim, fomos criando nossa relação, um código só nosso mesmo, através do olhar e dos gestos. Nessa cena da música mesmo, a gente tinha até ensaiado, feito uma preparação, mas sem experimentar muito para não cristalizar. Mas como foi rodada já no meio da filmagem, existia uma intimidade entre nós. Então, na hora, nós duas fomos tentando entender uma à outra, mesmo sem saber se comunicar com esse corpo”.
Diretor Armando Praça em debate no 31º Cine Ceará. Foto: Rômulo Santos/Divulgação
É curioso perceber que, assim como as personagens fabricam seus códigos, sua língua, seu idioma afetivo, o filme também inventa sua imagem, nesse caso subvertendo o que geralmente se espera de Fortaleza. Tanto em Greta como em Fortaleza Hotel, Armando Praça busca uma composição para longe dos clichês.
“Para mim, era importante construir a cidade de que filme precisava, o universo que o filme demanda. Em Greta, a ação se passa em um apartamento, com as pessoas encavernadas, então não havia razão dramática para mostrar uma Fortaleza solar. Isso fica mais evidente neste filme. Talvez quando você escuta o título Fortaleza Hotel já imagina que vai ver um filme com praia, água de coco, drinks coloridos, um paraíso tropical onde as pessoas vão passar férias. É uma imagem de fato muito construída, mas que não fazia sentido com o que o filme pede. Tínhamos que construir uma Fortaleza que a Pilar conhece, onde uma camareira de hotel não faz as compras no shopping, e, sim, no centro da cidade, e onde ela vai atrás do cara que vende ouro em uma galeria. Shin vem para a cidade não de férias, então a Fortaleza que ela vai conhecer não é dos restaurantes ou das barracas de praia, e, sim, a cidade soturna apresentada por Pilar, uma camareira que ganha um salário mínimo e mora numa comunidade”, pontua o cineasta.
Tal zelo se percebe também na convergência entre a fotografia e a direção de arte. Se, na tessitura dramática, Pilar e Shin vão se unindo aos poucos, entre descobertas e decepções, no campo estético, se descortina a aproximação entre Coreia do Sul e Ceará.
“Era interessante pensar a ideia do choque dos dois mundos. Armando tinha feito pesquisa na Coreia e fomos tentando mais aproximar esses dois mundos do que apartá-los. O hotel onde filmamos estava fechado há vários anos e fizemos muitas intervenções, no sentido de buscar elementos que juntassem os dois mundos. Tinha uma lanterna e o papel de parede, comprado no centro de Fortaleza, com um motivo estampado que lembra os desenhos orientais. A estrutura arquitetônica do hotel já nos permitia um tom de mistério, porque era naturalmente escuro, mas fomos nos aprofundando dentro do labirinto para valorizar os elementos que uniam esses dois universos, o da Shin e da Pilar, mas sem ser exatamente tudo muito direto. Foi um trabalho que fiz muito com Helô, que usava pouca luz; na maioria das vezes era só luz diegética mesmo, retirada da iluminação do quarto, do saguão. Naturalmente, a escolha da paleta também seguiu esses critérios: deixamos tudo mais frio, em tons azuis, como se aquele hotel fosse um grande aquário”, explica o diretor de arte Diogo Costa.
Um aquário pode ser tanto o exíguo espaço onde confinamos peixes e outros animais marítimos, transformados em bibelôs decorativos de estimação, ou aquele cômodo envidraçado onde os editores de jornais e revistas dão seu expediente diante de toda a redação. No primeiro, examinamos os peixes; no segundo, é aquele olhar onisciente que se espraia sobre o coletivo. A contradição remete à dualidade de Pilar, reconhecida por sua intérprete Clébia Sousa, e ao próprio esteio de Fortaleza Hotel: por fim, o filme também é sobre duas mulheres que anseiam estar onde estão, que desejam fugir dos desígnios impostos pela vida, que sonham com outra realidade. ‘A Coreia não faz mais sentido para mim”, diz Shin em determinado momento. “É, o Brasil também não faz mais sentido para mim”, responde Pilar. Mas para quem o Brasil faz sentido?
Responde Armando Praça: “Filmamos em maio de 2019, então já existia uma perspectiva muito sombria, muito difícil, e algumas coisas que não tinham no roteiro original foram acrescentadas, justamente porque já era 2019 e Jair Bolsonaro estava no poder. Ainda não havia a pandemia, mas já vivíamos um momento sombrio. Clébia tem a questão da filha, a precariedade do trabalho, mas quando ela tem essa fala, repetindo a frase da outra, acho que isso traduz muito a sororidade entre elas também nesse ponto de vista associado mais a uma questão existencial. Eu também tinha perdido a minha mãe em janeiro daquele ano, a gente era muito próximo, muito amigo, e pessoalmente estava muito melancólico, o que de alguma maneira ajuda a acrescentar essa camada de melancolia. Agora, é evidente que o filme também traz uma melancolia associada às questões políticas do nosso país”.
O luto pelas perdas, coletivas ou individuais, é recorrente neste início de 2022, quase dois anos após o início da pandemia, que só no Brasil provocou mais de 617 mil mortes. Tanto Pilar como Shin, forças matrizes e motrizes de Fortaleza Hotel, como de resto nós mesmos, necessitam elaborar seu luto e com ele diagramar uma nova travessia. Sem esquecer, jamais, de que mesmo ante a dor da perda, haverá sempre a possibilidade de novos encontros, que nos conduzirão a novos idiomas, afetivos ou linguísticos, novos deslocamentos, literais ou simbólicos, e novas formas de se reconectar – consigo mesmos ou com o outro que nos toma de assalto. Como alinhava Ana Martins Marques na derradeira estrofe de Língua, “As línguas são meios de viagem, são meios de transporte as palavras: carregam consigo o camelo/ o arranha-céu a baleia/não só a baleia/ todas as baleias/ não só o amor/ todo o amor”.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.