Entre uma entrevista e outra para divulgar o livro, além de lives com o mesmo propósito, Thereza comentou por que demorou a lançar o material. “Muitas pessoas diziam que eu precisava lançar um livro com as minhas fotos, mas não sentia firmeza nas propostas que cheguei a receber. Eu ainda não havia encontrado a pessoa certa, até Augusto me procurar e propor um projeto que achei cuidadoso. Eu já havia gostado das fotobiografias que ele organizou de Chico Buarque e Dom Helder Câmara, então confiei na empreitada. Fiquei muito feliz com o resultado. Dedico este livro inteiramente aos meus seguidores, porque não existiria sem os pedidos constantes deles ao longo desses anos”, explicou a artista.
COMEÇOS
Um suposto flagrante de crime captado por um fotógrafo de moda em um registro casual estimulou Thereza a produzir as próprias imagens. Em 1966, o enigma desenvolvido ao longo do filme Blow up, de Michelangelo Antonioni, acionou um gatilho na trajetória da então recém-formada enfermeira, que, nas décadas seguintes, se consolidaria como um dos nomes mais expressivos da fotografia brasileira. Atraída pela atmosfera de mistério atribuída à prática fotográfica e pela potência das imagens de uma Londres culturalmente efervescente, conforme apresentava Antonioni, Thereza havia tomado uma decisão: seria fotógrafa.
Natural de Serrinha, a 125 km de Salvador, ela havia se mudado para o Rio de Janeiro após ter concluído o curso na Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, na capital do estado. A sessão de Blow up no Cine Paissandu, no Bairro do Flamengo, ocorreu entre um plantão e outro nos hospitais em que ela se revezava para se sustentar na nova cidade. Naquele mês, uma parte de seu orçamento foi destinada à aquisição de uma câmera Werra, importada da Alemanha Oriental, escolhida por ser relativamente acessível e compacta para excursões fotográficas pela cidade. Inicialmente, Thereza utilizou o equipamento para registrar momentos íntimos de amigos e familiares, como a irmã caçula Zezeca, que brincava de modelar para ela desde quando eram crianças.
Blow up foi um ponto de virada importante, que a conduziu a um comprometimento profissional com a fotografia, mas não o ponto zero do desejo de produzir imagens. Na Serrinha dos anos 1950, Thereza e as irmãs já experimentavam essa magia peculiar entre si. Fotografavam-se com uma câmera de caixa (Brownie Kodak) de seu pai, contador e fotógrafo amador, e frequentavam com curiosidade a sala escura utilizada para revelação de imagens que havia sido improvisada pela avó em casa. Thereza chegou a adquirir um modelo de máquina semelhante quando cursava Enfermagem em Salvador (uma Kapsa, também em formato de caixa), mas os estudos intensivos a impossibilitaram de desenvolver a prática.
O apreço pela música, que no futuro seria tão bem- fundido ao amor pela imagem dentro de seu trabalho em fotografia, também foi gestado na infância vivida no sertão baiano. “Serrinha tinha um luar deslumbrante e serenatas melancólicas nas janelas. Eu também cresci ouvindo a voz de Ângela Maria e Nora Ney na Rádio Nacional. Minha relação com a música começou ali, assim como o desejo de conhecer o Rio de Janeiro, um lugar que sempre considerei místico. Assim que me formei, em 1964, decidi me mudar para o Rio, onde moro até hoje. Sempre fui muito comprometida com tudo o que fazia, e também um pouco obsessiva. Depois de Blow up, direcionei essa energia para a fotografia”, contou.
Munida de sua Werra, Thereza passou a frequentar toda sorte de eventos culturais na cidade, em especial os espetáculos musicais. “Como sempre adorei a música brasileira, fotografar o artista que eu gostava era uma maneira de levar um pedaço dele comigo”, comentou. Um desses espetáculos foi Comigo me desavim, em cartaz no Teatro Miguel Lemos, em 1967, protagonizado por uma Maria Bethânia que tentava se desvencilhar do estereótipo agreste alimentado pela imprensa sudestina, após o sucesso de Carcará. “Acho que foi o primeiro show que fotografei. Um amigo em comum mostrou as fotos a Bethânia e ela gostou tanto de uma, que quis colocar como capa de seu disco seguinte, mas seu produtor de então disse que não era uma imagem comercial e vetou”, recordou.
Em entrevista à Continente, Maria Bethânia recordou da parceria com Thereza, que continuou após o espetáculo. “Eu conheci Thereza logo que cheguei ao Rio. Sempre fomos amicíssimas. Para a foto da capa do disco Ciclo (1983), fui para o laboratoriozinho dela, no apartamento dela, montar com ela como eu queria. Sempre tivemos muita aproximação. Nada muito profissional, muito mais amigável, de entendimento e reverência mútuos a cada trabalho. As imagens de Thereza são muito íntimas, próximas. Eu tenho intimidade com elas. As fotografias (que estão no livro) são todas do meu convívio, do meu conhecimento. Sempre com um sorriso e gostando dos momentos que ela flagra – sempre interessantes, diferentes, com o olhar bem dela. Thereza tem o olhinho dela interessado, brincalhão, e registra isso com muita maestria”, opinou a intérprete.
Aos poucos, Thereza conhecia artistas, produtores e assessores de imprensa que se interessavam pelo seu trabalho. Em 1970, ela foi convidada por uma assessora para fazer fotos na estreia de Roberto Carlos no Canecão. Sem material adequado para a tarefa, conseguiu uma lente emprestada do gerente da casa, que comentou com a assessora: “Essa mulher mal sabe segurar uma câmera”. Roberto, que, como Bethânia, vivenciava uma transição de imagem significativa – de um broto aventureiro para um romântico incontornável – ficou tocado pela dramaticidade captada em uma das imagens, e exigiu que ela estampasse a capa de seu álbum de 1970, na qual segura o microfone de olhos fechados. Aquele havia sido o primeiro reconhecimento público do talento de Thereza.
Nos retratos de Thereza, Caetano Veloso incorpora uma Carmen Miranda andrógina em show pós-exílio, em 1972. Em 1973, Maria Bethânia é registrada para a capa do disco Drama/Luz da Noite. Imagens: Arquivo Thereza Eugenia
ESPELHO DE NARCISO
Quando Caetano Veloso, Gilberto Gil e o empresário Guilherme Araújo voltaram do exílio londrino, em 11 janeiro de 1972, Thereza havia se tornado uma habituée da cena contracultural carioca. À época, ela já havia fotografado informalmente os espetáculos em que Gal Costa se colocava contra a ditadura militar e cantava a ausência dos amigos tropicalistas – desde os shows na boate Sucata (1969) a Deixa sangrar (1970), no Teatro Opinião, e o mítico Gal a todo vapor (1971-1972), no Teatro no Tereza Rachel.
“Nessa época, eu frequentava as Dunas da Gal (trecho alternativo da praia de Ipanema) com os intelectuais e artistas do Rio. Saía do hospital às duas da tarde e ia me bronzear e socializar. Quando fotografava os shows à noite, pagava para alguém me substituir no segundo plantão. Eu fui tanto ao Gal a todo vapor, que sabia exatamente os melhores momentos para fotografar. Nas minhas fotos, só usava luz natural ou a luz do palco. Já estava pronto. Bastava saber o momento exato, captar as emoções que surgiam”, detalhou.
À época, ela já tinha adquirido câmeras mais sofisticadas: uma Pentax e uma Nikon. No frisson provocado pelo retorno dos tropicalistas, Caetano apresentou no Teatro João Caetano um espetáculo com canções que remetiam ao período no exílio. Quando ele performou O que é que a baiana tem, incorporando uma Carmen Miranda andrógina, com um top de babados e cabelos/batom à Gal, Thereza registrou seus gestos transgressores. As imagens chegaram a Guilherme, e foram a primeira ligação entre o produtor e Thereza.
Depois disso, eles descobriram um no outro não apenas uma parceria profissional longeva e criativa, mas sobretudo uma relação de amizade e cumplicidade que duraria anos a fio.
De 1972 até meados dos anos 1980, Thereza fotografou formal e informalmente todos os artistas que em algum momento foram empresariados por Guilherme – não apenas Gal, Bethânia, Gil e Caetano, mas também Zezé Motta, Ney Matogrosso, Raul Seixas e Elza Soares. Nesse período, além de registrar imagens de espetáculos, fotos de divulgação e momentos informais desses artistas, ela clicou as imagens que estampariam capas de discos importantes, como Drama 3º Ato (1973), de Maria Bethânia; Temporada de verão (1974), de Caetano, Gil e Gal; a adaptação brasileira do musical Rocky horror show (1975), produzido por Guilherme; e o songbook de sucesso Gal canta Caymmi (1976).
Zezé Motta no Rio, entre 1976 e 1977, quando passou a
se dedicar à carreira de cantora. Imagem: Arquivo Thereza Eugenia
Além de uma companheira de trabalho excepcional, Thereza se tornou uma espécie de espelho de Narciso do empresário carioca. “Eu e Guilherme estávamos juntos em todos os lugares: na casa um do outro, festas, eventos, shows, camarins. Com as minhas fotos, eu me tornei os olhos dele, uma máquina de suas selfies. Ele adorava ser fotografado. Era vaidoso, festivo e carismático, além de bastante cuidadoso com os seus empresariados. Registrei ele ladeado por amigos e personalidades em momentos de alegria, desde os artistas da MPB ao Papa João Paulo II, além das grandes festas e bailes que ele organizava anualmente”, recordou.
Thereza se referiu especialmente aos faraônicos Sugar Loaf Carnival Balls, bailes carnavalescos organizados por Guilherme, de 1978 a meados dos anos 1980, em pleno Pão de Açúcar, que reunia artistas, socialites, empresários e figurões do jet set internacional, como as cantoras estadunidenses Liza Minelli e Grace Jones.
No fim dos anos 1980, Guilherme se afastou do ramo artístico, o que fez com que Thereza gradualmente diminuísse o ritmo profissional na fotografia. Ela continuou a trabalhar como enfermeira, cargo que nunca havia deixado de exercer, até se aposentar dos plantões nos anos 1990. Nos anos seguintes, seguiu registrando paisagens do Rio, que geraram postais turísticos que ela mesma distribuía em pontos de venda pela cidade, além de continuar a fazer retratos para capas de disco, como um álbum de poemas lidos por Ferreira Gullar. Quando Guilherme precisou de cuidados médicos em decorrência de uma diabetes severa, Thereza auxiliou o amigo ativamente nos cuidados que ele demandava, e permaneceu ao seu lado até o fim de sua vida, em 2007, aos 70 anos.
REDES SOCIAIS
Quando teve seu trabalho redescoberto por novas gerações, ao começar a publicar seu acervo no Instagram, em 2015, Thereza voltou a ter um contato mais ativo com o próprio legado. No entanto, este ainda está distante de ter condições de preservação ideais, ainda que a artista reitere que o recorte que lhe interessa está relativamente protegido.
“Guardo os negativos em caixas de plástico, sem climatização propícia. Para reproduzir as fotos, lavo manualmente os negativos e deixo secarem ao natural, antes de passar para o scanner. Já digitalizei tudo o que me interessava e salvei na nuvem, para não correr o risco de perder algo que eu considero importante. Ainda há bastante material que não foi publicado no livro, mas não tenho pretensão de lançar um outro volume”, antecipou.
No Instagram, Thereza vem publicando fotos recentes de paisagens e transeuntes cariocas, geralmente clicadas de um Iphone 11 Pro Max (“Acho prático porque já vem com todas as configurações automáticas para cada tipo de imagem”, justificou). Ela também voltou a registrar espetáculos musicais, que frequentava com assiduidade até a pandemia da Covid-19, como de Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Fafá de Belém e Letrux. No caso dos espetáculos, ela não abre mão de uma de suas câmeras analógicas da marca alemã Leica, “para a luz não ‘estourar’ nos rostos dos artistas sobre o palco”.
Nas redes sociais, a artista interage ativamente com os seus seguidores. Ela também os tem como aliados para a notificarem se suas imagens forem eventualmente publicadas sem os devidos créditos, tanto em outros perfis quanto na imprensa (em quase todas as imagens publicadas por ela no Instagram, sua assinatura está inserida em destaque).
Não raro, Thereza comenta em publicações que não lhe deram crédito e pede que acrescentem a autoria. “No começo, não acreditavam que eu era a fotógrafa, como se aquelas fotos não tivessem um autor. Hoje em dia, acho que as pessoas estão mais preocupadas em creditar a autoria das imagens”, comentou. Quando se trata da iconografia da MPB dos anos 1970 e 1980, não é exagero dizer que Thereza estimulou um debate sobre direitos autorais entre os usuários que consomem e publicam esse tipo de conteúdo nas redes sociais.
Ney Matogrosso "flutua" sobre o palco, em 1981, no show que ficou conhecido como Homem com H. Imagem: Arquivo Thereza Eugenia
OLHARES
Thereza diz que seu olhar não tem segredos ou fórmulas. “A fotografia não é um retrato da realidade, mas um olhar pessoal, uma interpretação do mundo. Não existe segredo no que eu faço em termos de fotografia”, comentou. Ela também destaca que a maior influência estética que recebeu, especialmente em seus retratos, vem do cinema – no trabalho desenvolvido por cineastas como Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman – e de fotógrafos como Miro e Antonio Guerreiro, outros dois importantes pares de olhos da música brasileira dos anos 1970 e 1980. “Miro me disse recentemente que eu retrato ídolos como seres humanos. Achei isso de uma grande delicadeza”, destacou a artista.
O designer Augusto Lins Soares, que organizou o livro com parte do acervo de Thereza, descreve a técnica da artista como intuitiva e afetiva. “Descobri as imagens de Thereza em pesquisas iconográficas para outros projetos. Fiquei encantado com o olhar dela. Acho que o diferencial de suas imagens é não trabalhar com fórmulas pré-estabelecidas – de luz, ângulo, composição, por exemplo. Ela trabalha com um retrato mais livre e intuitivo. Sua técnica era a imersão, quando ia muito a um mesmo show para estudar os melhores momentos para fotografar. Ela também experimentava nos processos de revelação, especialmente em termos de granulação das imagens”, explicou o curador.
O poeta Antônio Cícero, que escreveu um dos textos do livro, disse por que “ela sempre conseguiu capturar o estado de espírito de muitos dos grandes artistas – sobretudo da música – desde 1970 até hoje”. A cantora e atriz Zezé Motta também guarda lembranças cativantes dos momentos vividos com a fotógrafa. “Tenho inúmeras recordações dela pelo final dos anos 1970, quando comecei a andar com a turma da música. Thereza estava em todas. Também tenho a honra de ter inúmeros registros meus que foram clicados por ela. É generosa, querida e atenta”, definiu. Já para a cantora Letrux, registrada pelas lentes de Thereza mais recentemente, suas imagens são poderosas e hipnóticas. “Ela vê brilho em tudo. E com seu olhar libriano, regida por Vênus, enxerga beleza em detalhes maravilhosos. A fotografia dela parece ter um cheiro, uma energia do local”, definiu.
Pelas conversas recentes que tivemos, Thereza está visivelmente contente com a repercussão que o livro vem obtendo na mídia e nas redes sociais. Ela falou mais de uma vez que dedica o projeto aos seguidores, que, ao longo dos últimos anos, a estimularam a rever o próprio legado com olhos mais justos e carinhosos, como o são os olhos que ela destina indiscriminadamente a fotografados célebres e anônimos. Como sugeriu a ensaísta Susan Sontag, registrar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa – e “justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo”. Em sua obra, Thereza expõe justamente a nossa vulnerabilidade irrevogável e os rastros de beleza que o tempo eventualmente deixa em sua passagem.
RENATO CONTENTE, mestre em Comunicação e doutorando em Sociologia pela UFPE. É autor do livro Não se assuste, pessoa! – As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar.