Entrevista

“Fui minha própria inspiração”

Bailarina Ingrid Silva fala sobre sua trajetória e os fatos de sua autobiografia na qual narra seus passos até se tornar a primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem

TEXTO Débora Nascimento

02 de Dezembro de 2021

foto Angela Zaremba/Divulgação

[conteúdo na íntegra na edição impressa e digital | ed. 252 | dezembro de 2021]

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Quem visitar o Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana Smithsonian, em Washington (DC), vai encontrar, dentre os documentos e objetos expostos, um artefato singular. A descrição do item, com dois parágrafos, começa informando: “Uma sapatilha de ponta de balé de cor personalizada com cosméticos em um marrom escuro para combinar com o tom de pele da dançarina”. E sobre esta: “Silva, Ingrid, Brazilian, born 1988”.

Quando saiu do Benfica, bairro da zona norte do Rio, em janeiro de 2008, com parcas roupas de frio, poucos dólares e uma quantidade menor ainda de palavras em inglês, Ingrid Silva não suspeitava de que seu nome estaria no acervo de um dos mais conceituados museus dos Estados Unidos, como mais uma prova da vitória profissional que teria na cidade mais competitiva daquele país, Nova York.

Filha de Maureny, então empregada doméstica, e de Claudio, um funcionário da Força Aérea Brasileira, ela precisou de ajuda para realizar a viagem. Uma das pessoas que contribuíram enxergou naquela ida da jovem apenas uma louca aventura e lançou a aposta: “Tenho certeza de que estou gastando o meu dinheiro à toa, tenho certeza de que em breve você volta para o Brasil”. Não poderia estar mais errada.

A trajetória exitosa, ao custo de muito trabalho, força de vontade e disciplina da brasileira Ingrid Silva, lhe garantiu a conquista da vaga de primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem, uma renomada companhia de dança, fundada em 1969, que prioriza a participação de dançarinos negros. Hoje, a garota e adolescente, que não tivera em quem se espelhar quando ainda era estudante de balé, tornou-se referência para diversas meninas negras – e também brancas.

Ingrid foi para Nova York após ter sido descoberta pela então primeira bailarina da companhia, Bethânia Gomes, filha da historiadora e ativista Beatriz Nascimento. A coreógrafa estava, em 2007, em visita ao Brasil e conheceu o projeto Dançando para não dançar, na Vila Olímpica da Mangueira, onde observou a jovem se apresentando ao lado de outras alunas. A estudante carioca também fez cursos na companhia de Deborah Colker, no Rio, e no Grupo Corpo, em Minas Gerais. Mas o interesse maior era mesmo o balé clássico.


Lançada neste segundo semestre, autobiografia também é composta de fotos da vida de Ingrid. Imagens: Divulgação

Ao ser aprovada pelo próprio fundador e diretor do Dance Theatre of Harlem, o coreógrafo Arthur Mitchell (primeiro dançarino negro do New York City Ballet), Ingrid ganhou uma bolsa, mas precisou trabalhar como garçonete para completar o orçamento em uma cidade muito onerosa de se viver. Lá, enfrentou dificuldades como falta de dinheiro, competição e a saudade da família e dos amigos. Mas resistiu. E desde então vem realizando cada um dos sonhos que alimentaram sua carreira e até outros que surgiram pelo caminho, como ser convidada pela cantora Alicia Keys para participar da campanha She’s a king e ter sua trajetória narrada pela voz da tenista Serena Williams em um comercial da Nike.

Dentre os sonhos também estava o lançamento de uma autobiografia, que foi realizado no final do mês de agosto. Na foto da capa de A sapatilha que mudou meu mundo (Globo Livros), a bailarina aparece com o calçado que passou 11 anos pintando para que tivesse uma cor aproximada da sua pele – os bailarinos da companhia faziam isso desde 1970. O processo de cobrir com uma base de rosto levava quase uma hora e era uma demonstração do enfrentamento ao racismo em um mercado que insistia, até então, em apenas fabricar para clientes brancos. Em novembro de 2019, após um ano de negociação com um fabricante, ela conseguiu finalmente as sapatilhas da cor de sua pele. O antigo par virou peça de museu. Como também deveria ocorrer com o racismo.

Nesta entrevista para a Continente, por videochamada, Ingrid Silva destrincha os temas que envolvem a autobiografia, escrita durante a pandemia e enquanto amamentava a filha Laura, que esteve em seu colo em alguns momentos desta conversa e que, em novembro, mês do aniversário de 33 anos de sua mãe, completou um ano de nascimento. A bailarina fala sobre os seus feitos, a competição no balé, a ansiedade que enfrentou, o empoderamento, o enfrentamento do racismo, a relação com as redes sociais, os projetos, próximos sonhos e sobre uma trajetória felizmente não invisibilizada, como as de suas antecessoras negras nessa arte.

CONTINENTE Como surgiu a ideia de fazer essa autobiografia?
INGRID SILVA Esse convite surgiu através da Globo Livros, que já havia visto um pouco da minha história pelas redes sociais, e como que eu falo com as pessoas que me seguem, conto um pouco da minha jornada. Sempre gostei muito de escrever, sempre gostei muito, sempre fui muito entretida nessa área. Já era um sonho meu escrever um livro, só nunca imaginei que ia receber esse convite da Globo Livros, que foi até muito incrível receber esse convite, porque também mudou toda a minha perspectiva. Escrever esse livro foi uma terapia maravilhosa de autoconhecimento, de entender mais sobre a minha história, até mesmo expor muita coisa que as pessoas não conhecem da minha jornada, porque eu sou uma pessoa muito privada... Eu falo de muitos assuntos específicos, mas a minha vida pessoal, pra mim, é muito importante, então eu consegui contar pras pessoas, eu mesma, sobre a minha vida, eu acho que isso foi muito especial. Escrever esse livro foi um dos melhores momentos, porque eu estava com tempo, né? A gente foi pego de surpresa com a pandemia, eu estava escrevendo durante a minha gravidez, então se eu estivesse, talvez, viajando, ou dançando com a companhia, eu não teria tido esse tempo pra escrever o livro. E foi de um momento de bastante calmaria. Veio no melhor momento mesmo.

CONTINENTE Alguma vez lhe passou pela cabeça escrever uma autobiografia?
INGRID SILVA Já! Sempre sonhei em escrever um livro. Eu só não achei que talvez teria a possibilidade de alguém realmente falar assim: “Olha, você quer escrever seu livro?” E o término quase nunca saiu, porque eu sempre queria adicionar mais alguma coisa. Era para o livro ter saído em junho, e eu não estava pronta ainda, porque eu queria adicionar mais coisas no livro, e por isso ele saiu em setembro... Então esse livro terminou, vamos dizer, em julho.

CONTINENTE Você tem autores favoritos?
INGRID SILVA Olha, honestamente, faz muito tempo que eu não venho lendo livros. Tenho autores favoritos, mas tenho livros de pessoas em que eu me inspiro e faço questão de conhecer a história delas. Então, o último livro que eu li foi da Frida Kahlo e o outro livro que eu li foi da Michelle Obama, que é o livro que a gente tem aqui em casa, que é um dos livros que eu mais gosto. E que eu mais amei ler, que eu mais amei conhecer a história dela.

CONTINENTE Na autobiografia, você também passa dicas, dá conselhos... Qual era o teu objetivo com o livro?
INGRID SILVA O meu objetivo, no geral, era ter uma conversa com o público, que fosse uma conversa especificamente genuína, orgânica, e ao mesmo tempo inteligente, mas que também mexesse com o que as pessoas fossem ler. Eu sempre falo, a pessoa não precisa ser negra, mãe, bailarina, artista... Ela pode ser uma pessoa normal. Mas ela tem que ler o livro e eu quero que ela se sinta tocada, sabe? Eu quero que ela se sinta parte dessa história também, que ela entenda como é que funciona isso tudo. Então o livro foi exatamente isso que eu sempre sonhei, sabe? Ele tocou todas essas áreas. Ele conseguiu trazer essa visibilidade em assuntos que muitas pessoas às vezes têm dificuldade de abordar ou de falar sobre. São coisas que a gente vive no nosso dia a dia. E eu acho que esse livro, pra mim, foi sobre isso. Foi sobre trazer essa conversa, genuinamente, sem parecer que, tipo assim “Ah, eu tô te falando o que é certo e errado”. Eu nunca pensei dessa forma. Mas eu queria que fosse uma conversa orgânica.

CONTINENTE Uma pergunta bem prática: como foi escrever esse livro, estando nesse período, amamentando? Porque você começou logo quando sua filha nasceu.
INGRID SILVA Depois que a Laura nasceu, bateu um medo de não conseguir terminar o livro, porque eu estava muito cansada, eu não estava conseguindo ter tempo... Ter um filho é um full time job, né? Você tem criança e o seu trabalho o dia inteiro é cuidar da criança. Então isso pra mim foi muito puxado. Comprei uma mesinha pequena, eu sentava no chão, dava de mamar pra ela, e ali eu escrevia. Quando ela acordava, botava o peito na boca dela de novo e aí eu escrevia. E aí foi chegando um momento em que falei: “Cara, será que eu vou conseguir? Será que vai dar certo?” E, graças a Deus, deu certo, né? Graças a Deus, eu consegui, mas eu tive uns momentos em que eu falei: “Caramba, ser mãe é isso? Meu Deus, que difícil!” Sabe? Como essas mães conseguem? Como eu vou terminar de escrever esse livro? E aí eu acho que foi tudo fluindo. No final, também eu fui pedindo ajuda de mais pessoas que sempre me ajudaram... Uma amiga vinha aqui em casa, aí ficava com ela, eu deixava elas na sala brincando e ia pro quarto e mandava ver! E deu certo, sabe? A gente tem que criar essa comunidade que nos ajuda quando a gente precisa.

CONTINENTE Você teve total liberdade, deu-se essa liberdade ou se censurou em alguns momentos da escrita?
INGRID SILVA Não. Eu acho que eu tive total liberdade de escrever tudo o que eu queria, na verdade. Eu escrevi tudo mesmo. A gente sentou pra fazer a estrutura do que seria o livro, porque eu me dei conta de que eu tenho muita coisa pra contar. Então a gente falou: “Vamos escolher as coisas mais importantes aqui que estão de acordo com o que você gostaria de falar, o que você gostaria de compartilhar, as coisas que você acha que são importantes no mundo atual agora, a sua história”. Então eu fui escrevendo tudo com total liberdade e total narrativa, porque eu acho que isso é importante. Eu não queria, em nenhum momento, contar metade de uma história ou contar o que o público gostaria de ouvir. Porque a história é minha. Então é muito importante que eu possa contar ela sendo uma pessoa livre. Livre da minha própria narrativa. Então isso foi muito bacana. Eu acho que eu poderia, sim, ter adicionado mais coisas, porque eu fui vendo ao longo da escrita, que eu ia escrevendo cada vez mais, aí eu ia lembrando. Aí eu queria adicionar mais coisas. Eu lembro do meu editor falou assim: “Mas Ingrid, se você continuar adicionando mais coisas, a gente nunca vai terminar esse livro”. Isso é coisa de novo escritor. Você vai lembrando de mais coisas, você quer ir adicionando mais coisas. Então essa terapia muito boa, onde eu me dei conta também de muitas das minhas conquistas e de tudo o que eu já vivi. Óbvio que eu sei tudo o que eu já vivi, mas quando você senta e bota na ponta do papel, é diferente. Muito mais gratificante.

CONTINENTE Mas percebi que, de alguma forma, você evitou dar um mergulho maior na sua vida amorosa, por exemplo. De repente, tem um noivo e acabou o noivado. Aí a gente não tem ideia de como foi que você começou esse noivado, quanto tempo durou... Você não quis mexer nisso? Foi por isso que fiz a pergunta sobre se você se censurou, de alguma forma.
INGRID SILVA É, sim. Então. Eu acho que assim... Tem muitas coisas que eu acho, na minha vida pessoal, em termos de essas coisas amorosas, parentes, familiares... Nem todo mundo quer estar envolvido. Nem todo mundo quer ter sua vida exposta. Ali, eu achei que foi um momento em que eu não estaria só me expondo, mas também ia expor a pessoa que teve esse relacionamento comigo. Então eu achei que não tinha que ter muitos detalhes ali sobre isso. Óbvio que esse é o meu primeiro livro. Então agora eu sei como é que funciona. Sabe, agora eu sei como é que eu posso trazer um pouco mais de detalhes pra história sem ser tão específica com que situação eu vou estar falando. Ou vou estar expondo. E também, por mais que eu seja uma figura pública, a minha família, ou as pessoas que estão à minha volta, elas não são figuras públicas, e nem todas elas querem estar expostas, então eu tenho que respeitar isso também. E eu acho que também é tranquilo pra mim não me expor tanto. Hoje em dia a gente vê nas redes sociais que tem gente que vive disso, que é o blogueiro. Ele acorda de manhã já contando pra você que ele foi para o banheiro e que ele comeu um ovo. Essa não é a pessoa que eu sou. Eu quero mais que você conheça muito da minha história no geral, do que sempre todos os detalhes aqui e ali. Então acho que eu aprendi um pouco a… Tô aprendendo como lidar com isso também.

CONTINENTE No livro, você fala que você e seu irmão (o modelo e dançarino Bruno Silva) sempre faziam atividades esportivas, artísticas. Queria saber como isso influenciou e modificou a infância de vocês e também se os amigos do bairro participavam desses mesmos cursos.
INGRID SILVA Não, nenhum dos nossos amigos participava. Inclusive, hoje em dia, muitos deles, alguns estão vivos, outros não... Outros seguem outras profissões... Nós sempre fomos os únicos envolvidos com esportes no bairro. Também cada um tem uma mãe que tem prioridades diferentes. A nossa sempre foi de nos incentivar. A gente teve essas oportunidades para ascender e poder crescer. E nem todo mundo teve essas oportunidades, ou um pai ou uma mãe que tinha tempo pra isso. Tipo, minha mãe teve que parar de trabalhar pra poder fazer essas coisas com a gente. Então, eu acho que isso realmente mudou a nossa vida, ter uma mãe que nos deu total suporte no que a gente poderia ser futuramente. Onde os meus filhos podem ir? Até onde eles podem ir? Eu acho que isso nos ajudou muito. E era engraçado, quando a gente era pequeno, a gente falava para os nossos amigos, “Ah, a gente vai fazer isso, vai fazer aquilo...” – “Mas vocês vão dançar balé? Como assim, vão dançar balé? Que coisa estranha!” E, assim, olha, graças a Deus, essa coisa estranha, que realmente mudou a gente, que nos trouxe a arte de uma maneira diferente... A gente está aí hoje em dia, o Bruno super bem como modelo, bailarino, fazendo as campanhas dele, fazendo tudo direitinho. Eu tô aqui no Dance Theatre of Harlem já vai fazer 14 anos. Então isso tudo tem feito total diferença. Acho que, se os nossos amigos tivessem tido essas oportunidades também, talvez a vida deles seria diferente.


Os irmãos Bruno e Ingrid, ambos bailarinos.
Foto: Angela Zaremba/Divulgação

CONTINENTE E você diz que alguns morreram. Mas foi por violência?
INGRID SILVA É. Alguns por violência, ou por outras coisas.

CONTINENTE Você fala que, antes do projeto Dançando para não dançar, nunca tinha assistido a um balé. Mas você já tinha visto alguma imagem de balé ou de bailarina? E o que é que essa imagem transmitia pra você?
INGRID SILVA Na verdade, eu acho que a primeira vez que vi uma bailarina foi quando a Ana Botafogo foi no projeto. Ela foi a primeira bailarina que eu conheci. Não tinha nenhuma bailarina antes dela. Até porque a nossa jornada com a dança era totalmente diferente. Minha mãe nunca tinha entrado num teatro, eu nunca tinha entrado num teatro. Então a primeira vez que eu vi Ana Botafogo, no Municipal, eu falei, “Caramba, ela é uma bailarina!” Me identifico com ela por ser uma bailarina? Sim. Mas não tinha ninguém que se parecesse comigo. Então ainda era muito distante pra eu falar assim, “Caramba, essa é uma bailarina de verdade e eu acho que eu posso ser igual a ela!” Eu não tinha ninguém assim, na minha época, que eu poderia ver e falar assim, “Nossa, quando eu crescer, vou ser igual a essa bailarina aqui”. Isso também não me desmotivou a seguir a minha jornada. Ela foi simplesmente um pouco mais difícil por não ter inspiração. Na verdade, por eu ter sido a minha própria inspiração.

CONTINENTE Não ter essa representatividade, né?
INGRID SILVA É. Não tinha representatividade nenhuma. Foi muito difícil.

CONTINENTE Os ricos e a classe média tinham e ainda têm essa tradição de colocar as meninas pra fazer balé, como se fosse uma herança aristocrática ou elitista... Porque, muitas vezes, as meninas nem seguem o balé, às vezes fazem só por imposição mesmo. Essa imagem aristocrática que as pessoas têm da vida de uma bailarina é uma imagem que você considera equivocada?
INGRID SILVA Eu acho, porque até o século em que a gente vive não é mais esse, né? A gente está evoluindo, tentando evoluir em tantas outras áreas. O balé é, sim, elitista, continua sendo. No Brasil, pior ainda, porque as pessoas vivem ainda na era dos dinossauros, onde elas acham que simplesmente pelo balé ser europeu e por ser branco, ele tem que permanecer branco, mesmo tendo pessoas de comunidade ou não... É muito difícil você ver bailarinas negras brasileiras em grandes companhias clássicas. A gente não tem ainda. Não sei por quê, e não sei como as pessoas podem mudar isso. Elas simplesmente têm que mudar. Não tem uma receita, ali, específica. Mas eu acho que a gente já tem oportunidade de ter balé em comunidades, em projetos sociais, que é de onde eu vim, e isso já faz toda a diferença. Já faz a inclusão da diversidade, em que essas pessoas possam fazer parte também desses mundos.

CONTINENTE A bailarina tem uma imagem muito forte de disciplina, de perfeição, e no livro você fala dessa questão do perfeccionismo. Queria que falasse o quanto isso prejudicou e ajudou a sua carreira.
INGRID SILVA Olha, o perfeccionismo prejudicou muito quando eu era mais nova. Chorava por tudo. Tudo o que eu fazia e às vezes não dava certo na apresentação, fechava a cara... Eu não queria mais interagir com ninguém, eu achava que eu era muito ruim: “Por que eu estava fazendo aquilo ali?”. Tinha o negócio também da síndrome do impostor, que eu falava assim, “Caraca, será? Será que isso aqui é pra mim? Por que é que tô aqui?” Comecei a me questionar. E não era sobre isso. Eu acho que eu acabei passando por situações por exigir demais de mim. E, por muitas vezes, não entender que todo ser humano erra! Ninguém é perfeito. Por que é que eu que tinha que ser perfeita? Mas, de certa forma, eu também sempre me vi num patamar muito elevado para conseguir chegar onde eu cheguei. Sempre me segurei em níveis muito altos, até mesmo para poder ser respeitada. Talvez uma pessoa branca não tenha que fazer isso. Mas uma pessoa negra tem. Então vem daí também.

CONTINENTE Você acha que era uma pressão a mais ser uma pessoa negra e também ter vindo do Brasil? Até, em um capítulo, relata que foi parar no hospital, quando estava fazendo um teste decisivo em 2010. Esse estresse era agravado também por esses componentes?
INGRID SILVA Exatamente. Esse estresse era tipo assim: “Meu Deus, eu tenho que ser boa, perfeitamente boa, porque se isso não der certo, eu não vou conseguir chegar onde eu tenho que chegar”. Só que, hoje em dia, esse estresse vem diminuindo muito mais. Não diminuindo muito mais, mas eu sei, hoje em dia, do que eu sou capaz. Eu tenho essa confiança em mim. São coisas que não me deixam tão desesperada quanto antes.

CONTINENTE Mas você avalia que, a partir de que ano, começou a saber administrar essa ansiedade que era muito pesada?
INGRID SILVA Olha, eu vou dizer, sinceramente, 2018. Tipo, ontem. A louca. Mas é... Em 2018, eu posso dizer que eu comecei a administrar bem melhor.

CONTINENTE O que foi determinante para essa mudança?
INGRID SILVA Eu acho que não teve nenhum episódio específico na minha vida. Eu acho que eu só fui achando um pouco de mais calmaria na minha vida. E também a idade, né?

CONTINENTE Foi quando você fez 30, né?
INGRID SILVA É. Quando eu fiz 30, eu falei: “Olha, você já fez o máximo que você poderia como ser humano, você sabe onde você pode chegar, você sabe as suas qualidades, você sabe as coisas incríveis que você é responsável e pode fazer, então, relaxa, vai seguindo”. E eu acho que isso tem me ajudado muito. Até mesmo a manter minha saúde mental. Porque, imagina, você se achar perfeito todos os dias, e quando não der certo, continuar chorando até hoje? Não. Eu não me vejo mais nesse momento da minha vida.


À esquerda, Ingrid bebê com o pai, Claudio. À direita, com a mãe Maureny e o irmão Bruno em apresentação na Estação Central do Brasil (RJ). Imagens: Reprodução/Acervo Ingrid Silva

CONTINENTE Você também relata episódios de competição, de humilhação... O quanto isso também resulta em ansiedade e estresse?
INGRID SILVA Com certeza. Eu acho que a dança tem esse costume de pisar nos bailarinos e deixar as pessoas bem desestabilizadas, como forma de “Só assim você consegue”. E isso é uma coisa muito velha e muito ultrapassada também. Porque eu acho que você não precisa competir com ninguém especificamente para conseguir um posto ou um lugar que é seu de direito, pelo seu talento. Mas a dança tem isso. Tanto clássica, quanto contemporânea. O balé tem muito dessa… A palavra me fugiu à cabeça. Mas essa coisa de “Os humilhados vão ser exaltados”. Ou, que você tem que passar por uma coisa muito difícil pra conseguir aquele papel. Sendo que a gente não está mais vivendo nesse mundo. Você não precisa mais humilhar ninguém. Antigamente as pessoas batiam nos bailarinos com as varinhas... Pra que isso, gente? A gente não vive mais nesse mundo, e eu acho que é isso que, às vezes, as pessoas ainda não sabem. No livro, eu queria explicar mais a fundo o que era isso.

CONTINENTE Uma estratégia que era usada. Mas essa competição, ela é estimulada pelos professores ou ela também parte dos alunos?
INGRID SILVA Dos professores! Dos professores, dos coordenadores... É porque o balé é uma coisa hereditariamente, dependendo da direção do lugar em que você trabalha, tóxica. Vamos dizer, você é uma bailarina, chegou antes de mim. Talvez a pessoa que veio antes de mim não tenha sido bem-sucedida, não teve sucesso na dança. Então, quando ela começar a dar aula pra mim, toda aquela mágoa, aquela loucura que ela passou, ela passa pro próximo. E aí o próximo passa pro próximo. É esse nível de loucura. Então, se você não tem um lado psicológico muito forte e não tem o apoio de pessoas ao seu redor, isso dificulta muito.

CONTINENTE Essa competição existia mesmo entre os bailarinos negros?
INGRID SILVA Em todo mundo que dança. Assim... Não sei entre os bailarinos negros especificamente, porque eu não posso falar sobre isso, porque eu nunca fui profissional no Brasil ou numa companhia no início de vida. Por exemplo, a companhia em que eu danço hoje em dia tem um pouco dessa competição, sim, que é estimulada pela direção, e aí os bailarinos acabam pegando isso. Só que eu, como pessoa, nunca participei desse tipo de competição. Porque, na minha educação, graças a Deus, sempre fui muito estimulada pelo meu trabalho. Se eu não fui boa hoje, amanhã eu tenho que ser melhor. Independente do fulano ou não, não vai fazer diferença pra mim. Eu tenho que ser boa no que eu faço. E isso me ajudou bastante. Me ajudou a chegar onde eu cheguei hoje em dia. Talvez se eu estivesse preocupada em competir com o próximo, teria perdido muitas outras oportunidades. Mas não é todo mundo que vive isso. Então, tem muita gente no mundo da dança que ainda vive esses momentos.

CONTINENTE Você recebe muitas mensagens de meninas que estão começando no balé. São mais meninas negras do que meninas brancas?
INGRID SILVA É misturado. Tem bastante meninas negras falando de assuntos específicos, mas também tem meninas brancas. Tem mães, professores, e isso é muito bacana.

CONTINENTE E aí você procura responder a todos?
INGRID SILVA Sim, respondo sempre a todo mundo.


Fotos: Angela Zaremba/Divulgação

CONTINENTE Mas com relação às meninas negras, especificamente, você percebe que as dúvidas, as angústias, são semelhantes às que você tinha no começo da sua carreira, ou elas já são outras?
INGRID SILVA São as mesmas dúvidas. O que me faz refletir: “Caramba, nada mudou, né?”. A gente fala sobre diversidade, inclusão, a gente fala “vamos fazer um mundo melhor!”. A gente realmente está fazendo esse mundo melhor? Quantos amigos negros a gente tem? Quantos ambientes a gente vai em que a gente vê uma pessoa negra num restaurante, em ascensão, ou uma criança negra sendo feliz e super bem-sucedida na escola? A gente está vendo isso acontecer ou a gente não está vendo isso acontecer? Esse tipo de reflexão a gente está colocando em prática? Em muitos ambientes a gente está colocando em prática, em outros ambientes, não.

CONTINENTE Eu queria que você falasse da importância de Bethania Gomes para sua carreira.
INGRID SILVA Nossa, Betha é um ícone. Primeiro, que eu acho que se ela não tivesse entrado naquela sala e me visto no cantinho, dançando, e falado: “Olha, eu acho que você deveria mandar seu vídeo para o Dance Theatre of Harlem”, talvez eu não teria tido essa oportunidade de ser a pessoa que eu sou hoje. Até porque eu nem conhecia o Dance Theatre of Harlem. Eu não sabia que essa companhia existia. Então isso me trouxe muitas possibilidades, inexistentes até então. Mas que realmente mudaram a minha visão. Além disso, ela é filha de uma mulher importantíssima nessa história brasileira, que muitas vezes não é exaltada do jeito que deveria, que é Beatriz Nascimento, que fez todo um trabalho histórico com os negros brasileiros e muitas pessoas ainda não a conhecem.

CONTINENTE Outros nomes também. Você destaca Mercedes Baptista, dizendo que conheceu depois.
INGRID SILVA Exatamente! Quando eu já tinha 18 anos, gente! Por que não se aprendeu sobre Mercedes Baptista na escola? Por que é que demorou tanto tempo pra aprender? Eu não entendo essa invisibilidade de histórias importantes para nossa história, para nossa formação. Uma outra coisa muito importante também sobre a história da Mercedes Baptista é que hoje em dia a gente exalta muito ela, mas, na época em que ela viveu, ela não foi nem um pouco exaltada. Ela nem chegou a dançar direito no Teatro Municipal. Hoje em dia, a própria instituição fala assim: “A Mercedes Baptista começou aqui”. Ela nunca nem dançou um clássico. Eles não deixavam ela colocar a ponta e subir no palco! Então ela ficava sempre atrás e participava de todos os balés contemporâneos. Ela só conseguiu realmente ser exaltada e ter seu trabalho reconhecido depois que ela saiu do Brasil. Então a gente vê que a história se repete sempre, não muda.

CONTINENTE Ela sofreu vários episódios de sabotagem. Mas você chegou a sofrer alguma sabotagem, que você conseguiu identificar?
INGRID SILVA Sim. Eu estava dançando uma vez, eu ia fazer um papel muito importante em Black Swan, e, do nada, a minha tiara sumiu. Até hoje eu não sei quem pegou essa tiara. Mas, assim, uma tiara não some. Provavelmente alguém deve ter pego. Mas eu não sei quem foi até hoje. Esse foi o único episódio. Nunca passei por nada do filme Black Swan, que a pessoa bota vidro na sapatilha... [risos] Ou dá uma droga pra você não entrar no palco... Graças a Deus, nunca passei por isso. Mas deve ter gente que passa.

CONTINENTE Sei que não foi sabotagem, mas fiquei chocada com o episódio em que você deu um salto e o bailarino estava olhando para o espelho (Ingrid se acidentou, sofreu uma torção nas costas e passou dois meses fora dos ensaios)...
INGRID SILVA Pro espelho! Aquilo dali foi muito difícil. Acho que ele aprendeu também. Acho que foi um problema específico dele, em termos de atenção, era muito novo também, era o primeiro trabalho, não estava focado no que estava fazendo. Para a mulher, a competição na dança, para ela ser vista e ter as oportunidades que ela tem, é sempre muito mais difícil do que para o homem, porque nunca tem homem e quando tem, “Ah, ele fez... Ah, ele tá bom, ah, ele pode fazer isso”. Como as pessoas veem as mulheres e os homens, é diferente. Não tem essa pressão para o homem que tem pra mulher.

CONTINENTE Você teve passagens pela Companhia de Deborah Colker e pelo Grupo Corpo. Por que o balé contemporâneo não a conquistou?
INGRID SILVA Eu achava o contemporâneo incrível, mas eu sempre quis ser clássica. Acho que fiquei na Deborah por dois anos, fazendo aulas, vários tipos de aulas, contemporânea, hip hop, balé clássico... E no Grupo Corpo fiquei seis meses, eu acho. Foi por um estágio também.

CONTINENTE A propósito, quais são os outros tipos de dança que você gosta, fora o balé clássico? Porque eu vejo, de vez em quando, no seu Instagram, você dançando coisas que não têm a ver com o clássico.
INGRID SILVA Hoje em dia eu gosto de bastante coisa, e eu fico bem tranquila quando eu, tipo assim, “Ah, vamo lá se arriscar num hip hop? Vamos ver como é que vai ser?”. Confesso que não vai sair perfeito ou incrível, talvez não vai. Mas eu me jogo. Eu me jogo porque eu gosto.

CONTINENTE E o que é que você acha dessa inclusão da break dance nas Olimpíadas?
INGRID SILVA Ah, eu acho incrível! Eu só quero saber como é que as pessoas vão dar nota pra essas coisas. Porque não é uma coisa... fazer um break dance em menos de 10 segundos, não é uma coisa atleticamente esportiva. É uma coisa que tem a ver com a arte. Eu estava até brincando com um amigo, no outro dia, falando que daqui a pouco vão enfiar balé! Mas como é que vai julgar o balé? Quantos fouettes têm pra fazer? Em quanto tempo... É interessante.

CONTINENTE Quando você chega numa companhia e está numa situação como essa, agora, confortável, a primeira bailarina da companhia, tem alguma vontade de ir pra outra companhia? Ou não é apropriado e não há mais tempo para isso?
INGRID SILVA Na verdade, você pode ser bailarino de qualquer outra companhia. Não tenho contrato com eles pra vida. Não é uma coisa fixa. Mas, se eu tiver uma outra oportunidade, que eu ache que seja boa pra mim, eu posso pegar a chance e ir. Não tenho nada que me segure com isso. Mas também não é aquela coisa confortável, como a gente imagina que seja. Porque tem aquela coisa de você estar sempre mostrando para os seus diretores, seus professores, que você está sempre evoluindo, que a sua técnica está sempre boa, que está sempre dando tudo certo... Não é sempre assim. Não que você é boa no que faz, mas que você é... Tem uma palavra específica: consistente no que você faz. Porque todos os anos vai entrar alguém que é muito mais novo do que você, com muito mais gás, com muito mais energia... E não é que você está tirando a atenção de ninguém, mas você precisa estar mostrando que o seu trabalho é válido. Sabe, então tem muito disso. Mas eu não tenho nenhum contrato assinado pra vida, eu posso ir pra qualquer companhia, se eu quiser.


Ela (dir.) como uma das fadas no espetáculo A Bela Adormecida, do projeto Dançando para não dançar (RJ). Imagem: Reprodução/Acervo Ingrid Silva

CONTINENTE É uma expressão horrível, mas tem um “prazo de validade” a vida de um bailarino, como tem no esporte?
INGRID SILVA Não mais. Tinha muito disso antigamente. Por isso, muitos bailarinos acabavam terminando sua carreira com 30 anos, que era o que eu achava antigamente, eu falava, “Ah, quando eu chegar nos 30, eu não vou dançar mais...”

CONTINENTE Então isso também alimentava o estresse?
INGRID SILVA Antigamente, sim. Quando eu fui vendo que, hoje em dia, tem muitas técnicas, muitas comidas, muitos exercícios que prolongam a carreira de um bailarino, isso mudou a minha visão. E hoje em dia a gente vê bailarino dançando com 50 anos.

CONTINENTE E a rotina, você acha que é muito puxada, ou hoje em dia ela já faz parte da sua vida e você já não sente mais o peso disso?
INGRID SILVA Já faz parte da minha vida.

CONTINENTE Pergunto isso porque, mesmo sabendo que não tem nada a ver com balé, eu me lembro de uma entrevista com Daiane dos Santos, quando ela despontou. Ela falava da rotina, que era muito puxada, e praticamente não tinha vida social, porque eram 10 horas por dia de treino, e até a comida era muito regrada, tinha que ter sempre a mesma quantidade. Porque ela tinha que estar sempre com o mesmo peso, para garantir a mesma consciência corporal.
INGRID SILVA É, o balé não tem muito disso. Você tem que ser específico na sua disciplina, mas não é igual a ela, que é uma atleta, e que com 25 anos já não vai mais poder fazer nada. Não vai mais poder dançar, porque ela chegou na idade limite. Ao contrário do atleta, a gente ainda pode dançar por muito tempo. E, em termos desses horários ou regras, por exemplo, eu danço todos os dias, sete horas por dia. Mas a minha alimentação, óbvio, eu não vou comer um hambúrguer. Como é que eu vou comer um hambúrguer e vou ter um bailarino me levantando? Não tem como. A gente não está falando de corpos extremamente magros, que não podem dançar, não é sobre isso, mas é sobre a coisa estética, de uma certa forma, né? Você precisa ter uma leveza de que o balé fala, essa leveza, pra poder fluir com a dança. Para arte, é sobre isso.

CONTINENTE No livro, você relata também a sua chegada em Nova York, que foi difícil. Você percebe alguma diferença na cidade, desde então, e, principalmente, na abordagem a pessoas negras, pessoas de outros países?
INGRID SILVA Pra mim, a cidade mudou muito, em termos de evolução, na verdade... A abordagem continua a mesma, agora eu acho que eu falo inglês, então eu entendo... Antigamente, quando eu tinha chegado, eu não entendia nada, eu não conseguia falar nada, então foi bem difícil. Esse início foi beeem difícil, sabe? Eu achei que eu não ia conseguir mesmo. Mas eu posso dizer que muita coisa mudou, e pra melhor.

CONTINENTE Você percebe que era mais xenofobia, ou uma xenofobia misturada com racismo, o que você enfrentou na época?
INGRID SILVA Olha, as pessoas nem sabiam que eu era brasileira. Então eu acho que não teve essa xenofobia não. Na verdade, eu acho que, no início, vindo pra Nova York, o que eu posso dizer é que eu vim com uma bolha da diversidade. Nova York sempre foi esse lugar muito acolhedor. Eu vim dançar numa companhia onde se falava sobre a diversidade. Então eu não sofri racismo nesses dois lugares. Mas eu sofria muito racismo no Brasil, onde foi o lugar em que eu fui nascida e criada, e não era aceita como tal. Então somente quando eu vim para os Estados Unidos tive a oportunidade de me reconhecer e me aceitar como mulher negra. Então, estando aqui, eu não tive isso, mas no Brasil, eu tive.

CONTINENTE Como você estabeleceria a diferença entre o racismo nos Estados Unidos e no Brasil?
INGRID SILVA Racismo, no Brasil, sempre existiu, e a gente nem sabia que era racismo. Por exemplo, uma mulher negra casada com um homem branco, a criança é automaticamente, aqui, negra. Independente se ela é clara ou não. O cabelo dela é encaracolado, ela tem traços negróides, ela é negra... Uma criança que é de uma família negra é negra. No Brasil, muitas das minhas amigas que têm os pais escuros, ou mais claros, ou não sei quê, não se consideram negros. “Ah, eu não sou negro, porque o negro é considerado apenas a pessoa que é mais escura...” E não é. Então acho que essa é a diferença, também. É de você saber ... Porque a gente também, no Brasil, a gente tem mil e uma subcategorias do que é que é um negro. Então as pessoas dificilmente reconhecem o racismo. Elas não conseguem ver o racismo. E eu acho que o racismo, no Brasil, ainda é muito velado. Aqui é diferente. Aqui, a pessoa especificamente fala na sua cara o que ela acha, e você fala de volta. Então aqui parece que as pessoas brigam muito pra se estabelecer, falarem em seus espaços na sociedade. Que é uma coisa que eu aprendi muito, e que está sendo muito boa ao longo da minha construção como ser humano, porque eu vivi bastante tempo da minha vida, nova, no Brasil, e depois, da minha adolescência e vida adulta aqui. Então, essa parte da adolescência e da vida adulta fez uma grande diferença. Eu acho que, talvez, se eu tivesse passado minha adolescência e minha vida adulta no Brasil, eu não teria visto o tanto de coisa que eu vejo hoje em dia, que eu falo, mas está errado. Mas a pessoa nem se dá conta que está errado. Mas está errado. Então eu acho que essa é a diferença.

CONTINENTE No livro, você fala da morte de George Floyd e de que você foi grávida para os protestos. Queria que comentasse o choque que foi pra você essa morte, e também sobre as notícias que chegam do Brasil em relação aos assassinatos relacionados ao racismo.
INGRID SILVA Eu tenho Globo em casa, então eu estou sempre acompanhando tudo o que está acontecendo no Brasil. Eu sempre faço questão de acompanhar, porque eu sempre estou no Brasil, minha família toda mora no Brasil, então pra mim é muito importante. A morte de George Floyd, aqui, foi uma das coisas mais horríveis, mas, infelizmente, é de se esperar de um mundo que não vê os negros como pessoas. Aí você tem pessoas despreparadas, que foi essa pessoa que estava totalmente despreparada, que acabou assassinando ele na frente de câmeras, e você acaba gerando um desconforto muito grande na comunidade negra, mas também numa guerra civil sobre direitos humanos, o direito de ir e vir e de existir. Então eu acho que isso também trouxe muita reflexão do que as pessoas veem do corpo negro no espaço, mas o corpo do ser humano em geral. Que tipo de sociedade a gente é? Que tipo de sociedade vai assistir a um vídeo desse e achar que tá tudo ok? Não, não tá ok. Tá tudo errado. Isso não pode acontecer. Isso não pode ser tolerado. As pessoas não podem ver isso e achar que é tranquilo. As pessoas não podem fazer isso. Então acho que isso faz toda a diferença, também.


Ingrid durante a gravidez. Imagem: Reprodução/Acervo pessoal

CONTINENTE Mas você percebe que algum desses assassinatos, aqui no Brasil, teve a mesma repercussão nos Estados Unidos? Por exemplo, a morte do menino Miguel?
INGRID SILVA Eu acho que não teve tanta repercussão quanto, que o caso não foi levado à frente, até porque a mulher está solta até hoje. Ela não está solta até hoje? Pra ela foi só mais um corpo negro que, infelizmente, era de um menininho tão novo, que tinha um futuro tão brilhante, morreu e ficou por isso mesmo. Eu acho que às vezes a justiça do Brasil, a gente fala que a justiça tarda mas não falha, ela tarda muito! Então quando essa mulher vai ser presa? Em algum momento da vida a gente vai ver isso acontecer? Ou isso nunca vai acontecer? Ah, porque ela é esposa de um dos prefeitos de não sei aonde... Mas ela cometeu um erro. Ela também tem um filho. E se isso fosse com o filho dela, será que seria tratado da mesma forma? Então acho que é sobre entender como as pessoas veem os corpos negros e o que eles representam, e como as pessoas veem esse tipo de coisa acontecendo e que tipo de repercussão. Outra coisa, até mesmo pras pessoas no Estado ou no Brasil repudiarem esse tipo de ações, elas também sofrem ameaças. Não é que você vai fazer uma passeata aqui nos Estados Unidos e o policial vai estar do seu lado, vai respeitar o seu espaço, e você vai respeitar o dele. No Brasil, você sai pra fazer uma passeata pacífica, tem uma pessoa já com uma arma na sua cara. Você não fez nada. Então, é muito perigoso. E isso silencia muitas vozes.

CONTINENTE Outro tema que eu queria abordar é a presença mínima das meninas negras retintas no balé, você faz questão de usar essa palavra. Você menciona, no livro, o balé do Municipal e também de São Paulo. Você tem alguma ideia do porquê disso, fora a questão do racismo? Diminuíram também os projetos culturais nas comunidades? Você tem informações sobre isso? E se isso influencia essa ausência de meninas negras nesses balés?
INGRID SILVA Olha, especificamente eu não tenho dados concretos pra te dar sobre isso, porque eu não estou aí. Mas a pesquisa que eu fiz foi de pessoas que trabalham nessas instituições e o diferencial que elas veem, e eu mesma já estive nessas instituições e vi com os meus próprios olhos. Não são coisas recorrentes de agora. O porquê que não se tem projetos sociais vinculados a essas instituições só cabe a essas instituições darem essa resposta, não tem como a gente saber, é muito difícil. Mas eu espero que, em algum momento, a gente possa ter. É importante que se tenha. É importante que a gente tenha esses projetos, é importante que a gente tenha essas crianças tendo oportunidades.

CONTINENTE Gostaria que você falasse dos projetos que criou, o Blacks in Ballet e o EmpowHer New York, acho esse nome maravilhoso.
INGRID SILVA O Blacks in Ballet foi criado na época do Black Lives Matter. A gente estava sentindo essa falta de diversidade nessas companhias de dança, globalmente. E quando você fala pra uma pessoa “Ah, eu sou bailarina clássica...” – Mas você é bailarina? Ainda rola aquela coisa de não normalizar a narrativa do próximo, ainda mais quando você fala de arte e dança. Não se tem muito disso. Então a gente queria trazer à tona esses dados, mas também falar sobre isso. Então o Blacks in Ballet hoje vem sendo uma plataforma, uma biblioteca digital, que traz também a história desses lugares. Traz também a história desses bailarinos. O EmpowHer New York é uma organização de mulheres, feita para mulheres, que vem crescendo muito, que vem tendo essas oportunidades de conectar mulheres, conectar trabalhos. Nós temos vários eventos em Nova York agora por causa da pandemia, nos dois últimos anos, a gente não conseguiu, mas, em breve, acho que a gente vai conseguir. A gente tem contato com marcas também, que nos dão apoio, e é sobre criar uma comunidade que se ajuda.

CONTINENTE No livro, você fala que foi como um renascimento quando fez a transição capilar em Nova York. Queria que você discorresse sobre essa questão do empoderamento através do cabelo.
INGRID SILVA Acho que aqui, pra mim, foi uma reviravolta muito grande, porque eu não imaginava que as pessoas iriam, não é se assumir, mas é, tipo, eu não imaginava que as pessoas iam simplesmente ser tão seguras de si, vindo de um lugar que me reprimia tanto, reprimia o uso do meu cabelo, reprimia o uso do meu turbante, acho que esse foi o diferencial. Quando cheguei aqui em Nova York, comecei a ver meninas negras com o cabelo natural, meninas negras com cabelo diferente, sendo quem elas sempre quiseram ser, isso pra mim foi incrível. Foi muito bonito ver essa transformação. Comecei vendo no Brasil também, através da moda, mas estava acontecendo, estava fluindo. Está fluindo. Hoje em dia, eu já acho que não é nem mais moda, é aceitação mesmo. É “Eu sou negra, sei disso, sou orgulhosa da minha história, sou orgulhosa da minha trajetória”, e isso tem mudado muito a visão de muitas meninas que tão vindo por aí. Elas vão crescer muito mais conscientes da sua negritude.

CONTINENTE Como foi o processo para sua sapatilha virar um objeto do Smithsonian?
INGRID SILVA Na verdade, o Dance Theatre of Harlem tem uma seção do museu. Então eu não sabia que, além das roupas que eles iam levar ao museu, também iam levar a minha sapatilha. Pra mim foi uma surpresa, na verdade. Eu não sabia que a minha sapatilha ia ser escolhida para estar lá. E foi muito, muito, muito importante ter visto a minha sapatilha lá, eu não tive a oportunidade de ir agora, por causa da pandemia, também, mas eu espero que, no futuro, eu possa ir e possa levar a Laura.

CONTINENTE Queria que você falasse dessa escolha do título, A sapatilha que mudou meu mundo.
INGRID SILVA Nossa, o título fluiu num dia que eu estava fazendo aula, despretensiosamente, eu assim, e se o título fosse esse? Aí eu mandei uma mensagem pro meu editor, ele falou, “Nossa, que título incrível!” Então. Feito! E aí foi. Surgiu muito organicamente.

CONTINENTE Mas você acredita mesmo que a sapatilha mudou tudo pra você?
INGRID SILVA Totalmente. Talvez se eu não tivesse dançado, ou tido esse conhecimento, entrado no balé, eu não teria tido a possibilidade de fazer as coisas que eu faço hoje em dia, de ter chegado na carreira que eu tenho hoje em dia. Seria totalmente diferente.

CONTINENTE Mas, em relação ao título, eu entendi a “sapatilha” como aquela que você pintava e que você lutou pra que ela fosse da sua cor de pele. Então, aí, são duas coisas, é a questão do balé e a questão da cor também, né?
INGRID SILVA Sim. Na verdade não é... Foi muito legal que você fez essa interpretação, porque eu não tinha pensado nisso.


Selfie com sua filha Laura em seus braços. Imagem: Reprodução/Acervo pessoal

CONTINENTE Pois foi a primeira coisa que eu pensei, porque, inclusive, você está pintando a sapatilha na foto de capa.

INGRID SILVA Quando eu falo que a sapatilha mudou meu mundo, ela mudou desde o momento que eu fui fazer meu primeiro teste de balé, que eu tive a oportunidade de vir para o Dance Theatre of Harlem, que eu entendi a importância da negritude e o porquê que eu estava pintando as sapatilhas. Então ela engloba toda a minha jornada na dança.

CONTINENTE No livro, você fala da fiscalização em termos do que você posta, do que não posta... Quando foi que sentiu que estava aprendendo a lidar com as redes sociais?
INGRID SILVA Ainda não cheguei nesse momento da minha vida.

CONTINENTE Por que acha que não?
INGRID SILVA Porque fui criada, metade da minha vida, no Brasil e a minha formação adolescente e adulta aqui. Então americano, ele tem uma coisa muito importante que é a privacidade, que é o que eu prezo. No Brasil, a gente não tem muito disso. Todo mundo sabe de tudo de todo mundo. Então isso pra mim ainda é meio assim: jura que tudo as pessoas têm que saber? Então as pessoas vêm às vezes com umas perguntas invasivas. Por exemplo, estava viajando com a Laura agora, essa semana, pelo balé, e levei ela comigo. Aí uma pessoa manda assim “Mas o pai não ajuda?” Aí eu fico assim... “Eu tô trabalhando, querida. Não é sobre o pai não ajudar ou não. O pai é maravilhoso. Super ajuda. Mas não é o job dele, é o meu. Eu tô aqui trabalhando”. Esse tipo de coisas, eu não sei lidar ainda. Não sei como as pessoas lidam com isso. É muito estranho. Mas o que eu acho que é importante, também, é que não sou escrava de rede social. Isso eu posso dizer por completo. É tudo muito orgânico, é tudo muito de acordo com o que eu estou sentindo naquele momento, o que é que eu quero passar naquele momento... Por exemplo, eu fui para o Brasil, nem terminei de postar minhas fotos do Brasil, eu estava até falando com meu marido, brincando, eu falei: “Ah, vou postar minhas fotos do Brasil esta semana”. Aí ele falou: “Mas a gente tá em Nova York”. Falei: “Mas não importa, eu tô a fim”. Eu ainda não botei minhas fotos do Brasil. Mas é engraçado. Porque é tudo muito orgânico, sabe, é tudo muito simples pra mim.

CONTINENTE E você se vê voltando a morar no Brasil em algum momento?
INGRID SILVA Não. Ainda não. É que o Brasil ainda não evoluiu o suficiente pra onde a minha cabeça está. Eu amo o Brasil, eu estou sempre no Brasil, a minha família está no Brasil, o Brasil é o que eu sou. Mas eu acho que enquanto o Brasil não progredir, não tem como, pra mim.

CONTINENTE Quais são os seus próximos passos para realizar esses sonhos, que é uma palavra muito mencionada no livro?
INGRID SILVA Olha, eu tenho muitos sonhos. Primeiro, eu quero que essa pandemia acabe logo, e que eu possa ter oportunidade de poder ter o festival do Blacks in Ballet no Brasil, que é um dos festivais mais importantes que eu quero criar. Poder dar oportunidade para outros bailarinos, para que esses bailarinos também possam crescer, possam exercer suas profissões, realizarem esses sonhos. Acho que esse é um dos meus focos agora, é que esses bailarinos possam ter essa oportunidade que eu tive e que mudou a minha vida.

CONTINENTE Você tem mais algo a acrescentar?
INGRID SILVA Acho que a gente já cobriu tudo. Quero agradecer muito, na verdade, ao público que tem dado esse suporte pra mim, que tem comprado o livro, que foi um sonho muito distante, que acabou chegando. Eu juro que, por mais que as pessoas sejam curiosas pela minha história, tenho um público que realmente acredita em mim. Passou pela minha cabeça em vários momentos que ninguém ia comprar o livro. A gente está na era digital. E a gente está como número 1 na Amazon. O livro assinado já esgotou, as pessoas continuam comprando o livro. As pessoas me deram um apoio muito grande com esse livro. Tem gente que está comprando para dar de presente de Natal. E pessoas estão recebendo o livro de amigos. Recebo mensagens todos os dias. Um dos meus sonhos também é poder ser best-seller. Então só tenho a agradecer ao público que realmente acredita na minha história e está sendo motivado pela minha história.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente, colunista da Continente Online.

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