Rafael reiteradamente declarou que sua motivação para lançar o Virtuosi era retirar o cenário da música erudita local do estado de pobreza artística em que se encontrava. Era verdade. Haver bons eventos, havia; mas como fagulhas, não como um braseiro, e Rafael, por não ser mais ligado a nenhuma instituição local e por manter ligações com músicos de Europa, América do Norte e Ásia – principalmente, mas não somente, por meio de seus dois filhos instrumentistas –, acabou dispondo da liberdade e de uma boa rede de contatos para criar um festival que virou uma marca.
Além do Virtuosi, apenas o Mimo, idealizado pela carioca Lu Araújo, contribuiu em larga escala para trazer tantos bons músicos para Pernambuco neste século (não à toa, estudei os dois festivais em meu TCC de especialização em Jornalismo e Crítica Cultural e na minha dissertação de mestrado em Comunicação, quando pude analisar as respectivas estratégias de divulgação e construção de repertório). Mesmo assim, a Mostra Internacional de Música em Olinda mudou a linha curatorial ao longo da última década e não desperta mais expectativas de quem gosta de música de concerto por aqui.
Para citar os pontos altos do Virtuosi, portanto, sequer preciso ir ao Google: eu os presenciei, em sua maioria, à exceção de quando o festival se expandiu além-Pernambuco, alcançando o Uruguai, a Argentina e o Chile, em 2015. Pouco antes desse feito, recordo, Rafael estava muito empolgado para montar a ópera-tango María de Buenos Aires, de Piazzolla e Ferrer, algo que infelizmente não aconteceu.
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Vi, por exemplo, aficionados e notívagos vararem uma madrugada ouvindo música clássica, dentro de uma jornada musical de 24 horas seguidas promovida pelo Virtuosi em 2007, iniciativa que nunca se repetiu, para minha lástima. Naquele mesmo ano, vi também a estreia de quatro obras em um concerto-homenagem ao Movimento Armorial, perante Ariano Suassuna, e vi a impagável entrada do maior trombonista da história, Christian Lindberg, no palco do Santa Isabel, em pé na garupa de uma motocicleta, iniciando a performance de seu cavalo de batalha, A motorbike odyssey, em um concerto de encerramento que durou nada menos do que três horas.
Assisti à primeira estreia de uma ópera no Santa Isabel desde o século XIX, Dulcineia e Trancoso, em 2009; a performance do concerto mais fora da caixa já escrito para violoncelo, o de Friedrich Gulda, em 2011, e uma obra coletiva – escrita por seis compositores paraibanos, nesse mesmo ano – sobre textos de W. J. Solha, a Cantata bruta, que promovia uma reflexão sobre a violência urbana no Brasil.
Ainda devido ao Virtuosi, eu e outros colegas compositores conhecemos em pessoa muitos dos maiores nomes vivos da composição no Brasil, na América Latina e no mundo – até fui incumbido por Rafael e Ana Lúcia de ciceronear um deles durante três dias por Olinda e Recife, Tristan Murail – e percebi a música clássica verdadeiramente se interiorizar, a ponto de me motivar a viajar e me hospedar no interior, em Gravatá e Garanhuns (não cheguei a ir a Belo Jardim).
Mais do que isso, o Virtuosi proporcionou, em seus bastidores, casamentos, discussões, amizades, affairs, tributos (póstumos ou não), cobranças por pagamento (feitas e recebidas), agradecimentos do público, toda uma vida. Goste-se ou não de Rafael, esse débito a cultura pernambucana terá sempre para com ele; são méritos que não poderão ser diminuídos, por mais rusgas que hajam acontecido. Esperamos, sobretudo, que o cenário da música de concerto local não volte ao patamar pré-Virtuosi, que o festival não cesse suas atividades… e que Rafael seja protagonista de memórias e registros em livros.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.