Obituário

Rafael Garcia: o provocador da música clássica

Fundador do festival 'Virtuosi' deixa marcas na produção musical erudita pernambucana

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

02 de Dezembro de 2021

Maestro Rafael Garcia

Maestro Rafael Garcia

Foto Flora Pimentel/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 252 | dezembro de 2021]

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Desde o momento em que recebi a missão de redigir este obituário, muitas memórias e leituras me vieram, sempre naquela velocidade mental que supera a da capacidade de digitação. A primeira consideração, pelo menos, consegui registrar antes que se perdesse: o maestro Rafael (Fernando) Garcia (Saavedra) mereceria uma biografia – ou mesmo um roman à clef, como o Ravelstein de Saul Bellow.

Penso apenas que o livro, fosse qual fosse o gênero, não poderia ser laudatório, nem, ao contrário, desconstrutivo; deveria buscar a integralidade de sua personalidade, que angariou tanto reações de espanto e ira às suas declarações embaraçosas, quanto árduas vitórias na transformação do raquítico universo da música de concerto em Pernambuco. E o leitor teria de mentalizar as falas do protagonista em portunhol, blending linguístico nunca transcendido pelo músico chileno, agraciado com o título de cidadão pernambucano em 2005.

Para manter a esperança de que tal livro surja, o que necessariamente implicará a realização de pesquisa hemerográfica e muitas entrevistas, cumpri esta pauta baseado apenas em meu testemunho direto, dando-lhe um tom memorial.

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Ser recebido por Rafael Garcia em seu apartamento, à beira-mar de Piedade, ou falar com ele por telefone, era garantia de se conversar sobre boa música e ouvir lamentações, bravatas, projetos e apreciações e depoimentos apaixonados sobre interpretação de obras do século XIX.

Minha relação com o maestro foi, a princípio, jornalística, nascida pelo cumprimento de pautas para entrevistas e reportagens, como para o programa de web rádio com o qual iniciei minha carreira, o Audições brasileiras: A música clássica nacional em seu rádio, para a própria Continente e para a revista Concerto. Em decorrência disso, recebi de sua esposa, Ana Lúcia Altino Garcia, o convite para trabalhar no XIII Virtuosi, em dezembro de 2010, quando produzi podcasts e notícias para o site do festival.

Nos tempos seguintes, eventualmente atendi convites de Rafael para batermos papo em seu apartamento, o que fiz uma vez a cada ano ou biênio, ao longo da década, até a última ocasião, em janeiro de 2020. Ia para compartilhar do conhecimento musical de Rafael e porque me impressionava a coleção de peças de arte – especialmente de artesanato e imagens sacras – e de suvenires de viagem cultivada em sua sala de estar.

Os convites geralmente coincidiam com a aquisição de blu-rays de óperas e concertos que Rafael só encontrava no exterior. Às vezes, ele sugeria o que ver; às vezes, me pedia para escolher; enquanto íamos assistindo, eu era abordado pelas duas guardiãs da casa – uma cadela boxer e outra, já falecida, cuja raça não sei, talvez uma SRD muito peculiar –, a quem eu dirigia cafunés e abraços. Mas os blu-rays ocupavam a menor parte do tempo entre nós: as conversas é que rendiam bem, com Ana Lúcia inevitavelmente intervindo e ralhando com Rafael, indignada com os excessos, distorções e alfinetadas do marido, justificados ou não, contra seus afetos e desafetos.

Inclusive, se publicamente o nome dele era o que aparecia na imprensa, como figura capital do Virtuosi, quem os conhecia sabia que ela era a luz que o guiava. Despojada de vaidade, Ana Lúcia abdicou de uma carreira mais intensa como pianista para trabalhar a dois, redigindo projetos de patrocínio e remediando nos bastidores o efeito corrosivo dos ataques de Rafael a autoridades (muitas vezes presente na plateia), alguns dos quais chegaram a afastar patrocinadores – embora o casal compensasse o prejuízo político conquistando outros patrocínios a duras penas, tanto que o Virtuosi nunca foi descontinuado e sua vigésima quarta edição está sendo preparada.

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No santinho da missa de sétimo dia de Rafael Garcia, celebrada na Igreja Matriz de Casa Forte, uma foto do maestro chileno encimava uma epígrafe que era o próprio resumo de seu temperamento intempestivo: “Eu sou músico! Por que não me perguntam sobre música? Aí eu vou responder tudo…”.

Evidenciemos, então, essa sua paixão pela música, herdada do pai – um fã de óperas e sinfonias – e que o tornou um exímio violinista, a ponto de lhe render uma bolsa, em 1966, para estudar em Detmold, na Alemanha. A partir de Valparaíso, Rafael rumou à Europa em um navio que viria a fazer escala no Brasil, parada onde embarcou Ana Lúcia – bolsista do DAAD, Deutscher Akademischer Austauschdienst (ou “Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico”), feito Rafael.

Acabaram se conhecendo, desembarcaram na Alemanha comprometidos e se casaram por lá no ano seguinte, vindo a ter seis filhos: Rafael (Lito) e Leonardo (Leo), que se tornaram instrumentistas de renome – um como violista e o outro como violoncelista, respectivamente – além de Marcelo, Grácio, Ana (idealizadora do Coquetel Molotov) e Ricardo.

Rafael e Ana Lúcia voltaram para o Brasil no início dos anos 1970 e passaram por diversos grupos e instituições musicais: a Orquestra Armorial; a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; a Orquestra Solistas da Paraíba (a qual fundaram), os departamentos de Música das universidades federais da Paraíba (que estruturam e ajudaram a implantar) e de Pernambuco; a Orquestra Jovem de Pernambuco (que fundaram); o New England Conservatory, em Boston, e alguns festivais e orquestras nos Estados Unidos; as orquestras sinfônicas de Campinas, do Recife e da Paraíba e a Orquestra Filarmônica Norte-Nordeste, última iniciativa do casal antes da criação do Virtuosi.

A lista não se limita a esses nomes, diga-se, e poderia incluir também os eventos que Rafael e Ana Lúcia promoveram ou dos quais participaram, como a estreia nacional da Sinfonia dos dois mundos, de Pierre Kaelin e D. Helder Câmara. Recorri ao casal, por exemplo, para apurar informações para meu primeiro livro pela Cepe Editora, Clóvis Pereira – No Reino da Pedra Verde, pois foi graças a ambos que Clóvis se inscreveu no mestrado em Composição, pela Universidade de Boston, cursado de 1990 a 1992, e resgatei dados e confidências riquíssimos que eu não havia logrado junto ao próprio compositor.

Foram incontáveis, nessa trajetória seminômade, os dissabores, os dissensos, as glórias, as lutas e as reconstruções de vida desse casal de artistas da música erudita.

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Nenhuma realização de Rafael e Ana Lúcia, de fato, viria a alcançar tanta visibilidade quanto o Virtuosi – Festival Internacional de Música de Pernambuco. A rigor, foi a maturação de tudo o que vivenciaram e empreenderam anteriormente – e o preenchimento de um nicho, dado que nenhum outro evento do gênero durou por tanto tempo em Pernambuco, sem falar dos desdobramentos em festivais temáticos (Virtuosi de Gravatá, na Serra, Brasil, Século XXI…) e da expansão, mesmo que pontual, para cidades de outros Estados e do exterior.

Rafael Garcia e Ana Lúcia Altino se conheceram a caminho da Alemanha, onde iriam estudar música. Imagem: Divulgação/Manteuffel 

Rafael reiteradamente declarou que sua motivação para lançar o Virtuosi era retirar o cenário da música erudita local do estado de pobreza artística em que se encontrava. Era verdade. Haver bons eventos, havia; mas como fagulhas, não como um braseiro, e Rafael, por não ser mais ligado a nenhuma instituição local e por manter ligações com músicos de Europa, América do Norte e Ásia – principalmente, mas não somente, por meio de seus dois filhos instrumentistas –, acabou dispondo da liberdade e de uma boa rede de contatos para criar um festival que virou uma marca.

Além do Virtuosi, apenas o Mimo, idealizado pela carioca Lu Araújo, contribuiu em larga escala para trazer tantos bons músicos para Pernambuco neste século (não à toa, estudei os dois festivais em meu TCC de especialização em Jornalismo e Crítica Cultural e na minha dissertação de mestrado em Comunicação, quando pude analisar as respectivas estratégias de divulgação e construção de repertório). Mesmo assim, a Mostra Internacional de Música em Olinda mudou a linha curatorial ao longo da última década e não desperta mais expectativas de quem gosta de música de concerto por aqui.

Para citar os pontos altos do Virtuosi, portanto, sequer preciso ir ao Google: eu os presenciei, em sua maioria, à exceção de quando o festival se expandiu além-Pernambuco, alcançando o Uruguai, a Argentina e o Chile, em 2015. Pouco antes desse feito, recordo, Rafael estava muito empolgado para montar a ópera-tango María de Buenos Aires, de Piazzolla e Ferrer, algo que infelizmente não aconteceu.

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Vi, por exemplo, aficionados e notívagos vararem uma madrugada ouvindo música clássica, dentro de uma jornada musical de 24 horas seguidas promovida pelo Virtuosi em 2007, iniciativa que nunca se repetiu, para minha lástima. Naquele mesmo ano, vi também a estreia de quatro obras em um concerto-homenagem ao Movimento Armorial, perante Ariano Suassuna, e vi a impagável entrada do maior trombonista da história, Christian Lindberg, no palco do Santa Isabel, em pé na garupa de uma motocicleta, iniciando a performance de seu cavalo de batalha, A motorbike odyssey, em um concerto de encerramento que durou nada menos do que três horas.

Assisti à primeira estreia de uma ópera no Santa Isabel desde o século XIX, Dulcineia e Trancoso, em 2009; a performance do concerto mais fora da caixa já escrito para violoncelo, o de Friedrich Gulda, em 2011, e uma obra coletiva – escrita por seis compositores paraibanos, nesse mesmo ano – sobre textos de W. J. Solha, a Cantata bruta, que promovia uma reflexão sobre a violência urbana no Brasil.

Ainda devido ao Virtuosi, eu e outros colegas compositores conhecemos em pessoa muitos dos maiores nomes vivos da composição no Brasil, na América Latina e no mundo – até fui incumbido por Rafael e Ana Lúcia de ciceronear um deles durante três dias por Olinda e Recife, Tristan Murail – e percebi a música clássica verdadeiramente se interiorizar, a ponto de me motivar a viajar e me hospedar no interior, em Gravatá e Garanhuns (não cheguei a ir a Belo Jardim).

Mais do que isso, o Virtuosi proporcionou, em seus bastidores, casamentos, discussões, amizades, affairs, tributos (póstumos ou não), cobranças por pagamento (feitas e recebidas), agradecimentos do público, toda uma vida. Goste-se ou não de Rafael, esse débito a cultura pernambucana terá sempre para com ele; são méritos que não poderão ser diminuídos, por mais rusgas que hajam acontecido. Esperamos, sobretudo, que o cenário da música de concerto local não volte ao patamar pré-Virtuosi, que o festival não cesse suas atividades… e que Rafael seja protagonista de memórias e registros em livros.

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.

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