Curtas

As maiores novidades

Livro de ‘sci-fi’ corporativa, de Marcelo Ferroni, é ambientado no mundo das tecnologias

TEXTO Taynã Olimpia

02 de Dezembro de 2021

Esta não é a primeira ficção de Marcelo Ferroni a criticar o ambiente corporativo

Esta não é a primeira ficção de Marcelo Ferroni a criticar o ambiente corporativo

Foto Phil Machado/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 252 | dezembro de 2021]

Assine a Continente

A tendência social é gastar horas do dia com o nariz enfiado nas telas dos smartphones. “Celulares inteligentes”, dispositivos capazes de nos informar, entreter, organizar e alienar. Mas e se, além de tudo, esses aparelhos fossem capazes de nos comunicar com o passado? Ou até mesmo abrir uma brecha para alterá-lo? Possibilidade concretizada na nova obra sci-fi do autor paulista Marcelo Ferroni, no livro As maiores novidades: Uma viagem no tempo.

Lançado em novembro pela editora independente mapa lab, o livro de 128 páginas promove uma leitura breve, mas com adensamento reflexivo. A história é contemporânea, mas não se torna datada. Também não nos oferece um marco geográfico, apenas se dá num espaço onde se concentra um grande número de empresas de tecnologia. “As janelas da sala de Hans Magnuson brilham com a luz da manhã sobre os edifícios de vidro”, descreve o cenário. Essa estratégia de dispensar a marcação temporal e geográfica aproxima o leitor da narrativa. Tudo poderia estar ocorrendo bem ao nosso lado, neste exato momento.

Somos introduzidos ao pseudomundo realista a partir do ponto de vista do personagem Eduard Carlos, um dos técnicos responsáveis pelo desenvolvimento de um novo modelo de smartphone, o Challenger Ten. Nervoso e apreensivo, ele responde à convocação para uma reunião com seu chefe, o gerente de controle de qualidade da empresa. Lá encontra outras pessoas envolvidas no projeto, como sua colega de equipe, Patricia, técnica com formação em mecânica quântica. A única coisa de que ambos estão cientes é do caráter inédito da presença deles na sala da gerência, e de que há algo errado (e grave) no novo produto que desenvolveram.


Capa do livro com identidade criada pelo ilustrador 
Angelo Bottino. Imagem: Reprodução

Começamos, então, a testemunhar a ferocidade do ambiente corporativo. Como algo perigoso, uma clara ameaça mundial, é capaz de receber um rebranding e ser transformado num produto vendável. Através de tentativas de diálogo, a problemática central é destrinchada ao longo da extensa reunião, que, além do chefe e dos técnicos, conta com a participação de funcionários de outros setores da empresa. Os conflitos internos de cada um deles são gradualmente expostos pelo narrador onisciente, dando-nos vislumbres das reais intenções pessoais dos envolvidos. “Aquilo não é mais uma reunião. É a beira de um abismo”, pensa um dos personagens. Na sala de paredes de vidro, tudo está em jogo e, movidos por ego e ganância, nenhum deles está disposto a perder.

“É uma empresa de tecnologia gerida por pessoas, e com um dia a dia de relacionamento entre elas. O que o livro mostra é a impossibilidade de se entenderem com o diálogo, que é uma questão muito humana. Porque cada um tem os seus próprios interesses. O problema lá, imediato, não é o que os move. As pessoas usam o smartphone só pensando nelas, elas não estão interessadas se estão mexendo com o passado ou com toda a realidade humana, desde que elas consigam um pouco mais de poder”, pontua Marcelo Ferroni em entrevista à Continente.

Chega a ser incômodo ler alguns trechos da narrativa, principalmente para quem reconhece traços comportamentais de manterrupting, bropriating e gaslighting, neologismos ligados às práticas de interditos, silenciamentos, sujeição e outras violências relacionais contra as mulheres. Isso porque a escrita de Marcelo consegue sinalizar e, assim, criticar o machismo presente no mundo corporativo. As personagens mulheres são, mais de uma vez, alvos de subjugação intelectual e objetificação pelos homens, como no trecho: “A vice-presidente corporativa é uma mulher baixa, cabelos castanhos na altura da nuca. Tem cara de assustada e a bunda grande, não faz o tipo de Maxwell”.

Infelizmente, representa a realidade social. Por isso, seria superficial dizer que As maiores novidades discute apenas ciências exatas; há também ciências humanas presentes nas entrelinhas. O livro apresenta uma curiosa vitrine para as relações interpessoais. A ideia de viagem no tempo se torna plano de fundo para o desenrolar das interações entre os personagens e uma crítica ao ambiente corporativo.


O livro ganhou spin off em formato de podcast,
o
A última notícia. Imagem: Divulgação

O que reforça esse caráter é a ausência de diversidade de cenários. A maioria das cenas se passa dentro de um único espaço: a sala de reunião onde tentam resolver o defeito do Challenger Ten. Também não temos vislumbre nítido de como a problemática está afetando a sociedade fora dos muros da empresa.

“Este livro é uma sci-fi corporativa. Eu queria que ele se passasse quase como um teatro, com os personagens fechados na empresa. É como se a vida fosse a empresa. É uma questão que existe no mundo corporativo, que faz você acreditar que fora desse mundo não há vida. Eu queria marcar esse pesadelo corporativo onde as pessoas estão presas e acham que não conseguem sair”, explica Ferroni, que já trazia esse tipo de discussão em 2017, no livro Fogo na floresta.

A narrativa se encerra sem grandes desdobramentos. “Queria deixar um espaço de escape para as personagens”, afirma o autor. No intrigante capítulo final, pensamos: “Se estivesse nessa situação, o que eu faria?”. Para quem almeja um desfecho mais amarrado, é possível tê-lo em mãos (ou ouvidos) através do podcast A última notícia (Spotify). Com modelo semelhante a um programa de rádio, o trailer do spin off do livro traz fragmentos de depoimentos de novos personagens, entregando um panorama da realidade pós-lançamento do smartphone/máquina do tempo Challenger Ten. Um deles profere: “Difícil explicar com palavras... Um erro corporativo destruiu nossas vidas”. A torcida é por novos episódios e a garantia de que tudo permaneça apenas no campo da ficção.

TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE.

Publicidade

veja também

Rafael Garcia: o provocador da música clássica

Raphael Salimena

Arjan Martins