O compositor e intérprete na sala de sua residência em São Paulo. Foto: José de Holanda
CONTINENTE Como foi o início da pandemia para você?
CHICO CÉSAR Assim que a pandemia começou, eu imaginava uma mistura da Gripe Espanhola com uma Segunda Guerra Mundial, né? Ou Hiroshima e Nagasaki, corpos na rua… O pior já estava começando a acontecer, a gente tinha notícias de alguns países onde as pessoas não conseguiam entrar nos hospitais, as autoridades que negavam a virulência da pandemia, a potência letal da doença e isso era muito assustador. A gente não podia sair e comprava as coisas pelo telefone e lavava tudo e não sei o quê… E a primeira canção que eu compus, se chama Indoor que diz: “Eu tô indoor, eu tô indoor, eu tô indo à loucura/ Eu tô indo aí…” A pessoa está falando pra outra “eu tô indo aí”, mas a outra diz “não, não pode”, e a outra “como não, você não quer me ver?”. É como se você estivesse escutando alguém falando no telefone “não, não venha”. A letra também diz “Eu tô com medo que alguém atire no papa bonzinho depois da missa que não vai ninguém”, porque aquela imagem do Papa Francisco rezando a missa pra ninguém me marcou muito. Acho que foi compondo que fui processando.
CONTINENTE Quando foi o pior momento para você?
CHICO CÉSAR Eu escutei a Angela Merkel se dirigindo à nação alemã e nesse dia eu chorei. Foi a primeira vez que eu chorei na pandemia. E eu nunca me senti ligado a ela de alguma forma, ela não estava entre as minhas referências. Mas o jeito com que ela se dirigiu aos alemães dizendo “Caros compatriotas, é um momento muito difícil, para ser honesta, mais difícil até do que a gente possa dimensionar, mas nós pedimos que vocês fiquem em casa, só saiam em caso de extrema necessidade, nós vamos cuidar de vocês, estamos pesquisando o negócio da saúde e vamos cuidar da alimentação” e tal. E quando ela terminou de falar eu comecei a chorar. Eu pensei: em vez de a gente ter um líder que diga “Brasileiros, é difícil o momento, nós temos poucos recursos, mas o que tiver a gente vai fazer, nós temos o SUS, nós temos o Instituto Butantan, temos o Exército ou sei lá…”. Aí eu compus uma canção chamada Sobre-humano, porque a impressão que eu tive é de que nós estávamos entrando num tubo em que nós precisaríamos de muita, mas muita paciência pra lidar com o momento.
CONTINENTE Muitos artistas caíram em depressão, ficaram doentes, sem trabalho… O que lhe protegeu?
CHICO CÉSAR O que me salvou, eu acho, foi que minha subjetividade estava muito alimentada da vida antes da pandemia. Rapidamente, acho que me vi num lugar de escuta mais do que de fala, como uma caixa de ressonância dos afetos e de crítica que a sociedade estava gerando naquele momento. Eu tava com uma antena, com uma esponja pegando tudo. No geral, eu estava mesmo ativo, com a energia lá em cima, então comecei a trocar a noite pelo dia, e logo eu estava compondo sobre muitas coisas, não só sobre a pandemia, compus canções de amor, canções críticas, de protesto, frevo… Umas 10 ou 12 canções eram, basicamente, só sobre a pandemia, tem uma que diz “a pandemia entrou na minha epiderme/ entrou no cerne do meu ser social/ é duro me ver como um verme/ a pandemia me baratinou legal”.
CONTINENTE “Baratinou legal”, mas muitas das canções que você compartilhou têm um tom de esperança de futuro…
CHICO CÉSAR É porque as pessoas estavam muito aflitas, como ainda estão, pra sair. A canção Nada, por exemplo, diz: “Amanhã não vai ter nada, amada/ Fique em casa e tome sol/ Se tiver casa e sol/ Que tal dance nua no quintal/ Ponha a alma no varal/ Guarde o verão em si”. Eu penso em Cartola, que diz “Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida...” Então Nada é um pouco isso, dizendo: “Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a pandemia, você não sabe o que está acontecendo”, vamos com calma aí, né?…
CONTINENTE E você também fez algumas canções bastante críticas.
CHICO CÉSAR É que essa opção que o Brasil moderno e ultraconservador fez de não aplicar cidadania aos ex-escravizados gerou um Brasil muito distorcido, e na pandemia isso ficou gritante. Houve muitas pessoas numa situação muito parecida com a minha, vivendo a pandemia como um retiro espiritual. Algumas pessoas dando gratiluz pela pandemia, “ah que bom que assim eu posso ficar mais comigo mesmo...” Mas, pra você ficar assim, o mundo estava caindo. Milhares de pessoas morrendo. Essas pessoas subempregadas ou sem emprego dirigindo a bicicleta que aluga, as relações trabalhistas todas desmoronadas, e a maioria é negra. O meu jeito de ver o mundo não mudou; na verdade, é como se ele tivesse aguçado na pandemia. Eu não tinha muito pra onde olhar, eu estava olhando pro mundo via internet, via televisão e também pras minhas memórias do mundo… Tem uma que diz: “Olhando o Jornal Nacional não vi nenhuma pessoa negra/ mas para confirmar a regra/ havia um cotista de plantão/ o resto era tudo alemão/ Talvez até algum escandinavo/ me levantei da rede e gritei bravo/ Cadê os patriarcas da nação?/ Basta, basta, basta de me fazer de besta/ Basta, basta, basta, eu quero me ver/ Eu, meus manos e minhas manas/ E a margarina vegana quando eu consertar a TV”.
CONTINENTE É recorrente o pensamento de que nos tempos mais trágicos a produção artística tem mais qualidade. O que você acha disso?
CHICO CÉSAR Eu não concordo com esse ponto de vista. É muito difícil pessoas em situação de escravidão produzirem arte, por exemplo. E fazer sua arte prevalecer. É um verdadeiro milagre que nós tenhamos o samba, a rumba, o jazz, é um milagre. A Renascença chama-se Renascença porque era um período luminoso, uma produção incrível de arte. Esse período que nós temos aí do final dos anos 1950, do Brasil depois de Getúlio Vargas e Kubitschek, com a bossa nova, o Cinema Novo, a arquitetura de Niemeyer, Vinicius, Di Cavalcanti… O que vem depois, os artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Joyce, Caetano, Gil, o que eles produziram é fruto desse período anterior. Eles foram educados em escolas daquele momento. A produção crítica desse momento inteligente e rico é muito mais fruto do período de liberdade criativa anterior, que tem a ver, inclusive, com educação – na minha opinião; com a coisa do Villa-Lobos, do ensino de canto orfeônico nas escolas, do que com o momento da revolução. Eram pessoas que estavam, de certa forma, preparadas para dialogar com a censura, para encarar o AI-5, 1968. A repressão é que não estava preparada pra lidar com elas... Além disso, eu não tenho visto coisas brilhantes na nossa época de agora, acho que ainda não apareceu. Eu penso que, na minha área, coisas brilhantes apareceram antes da pandemia, Criolo, Emicida, aquele disco da Elza Soares, Mulher do fim do mundo… Não estou minimizando as coisas que estão aparecendo agora, mas a gente, de fato, só vai entender e fazer um balanço depois.
CONTINENTE Sem pressa.
CHICO CÉSAR A vida é amiga da arte e ambas não começaram agora e também não vão terminar conosco. Elas vêm de antes da gente e também já estão na frente da gente. O que estamos fazendo agora já é vida lá na frente, já está vivo lá. A gente é que talvez não esteja.
CONTINENTE Quais foram os grandes impactos pessoais da pandemia pra você?
CHICO CÉSAR Eu tinha deixado de beber no réveillon de 2019 para 2020. Estava no Uruguai, foi logo depois de brindar, a gente bebe muito no automático, e eu do nada pensei: “Não vou beber mais hoje, não”. Aí passou um dia, outro, já não quis mais nem o uisquinho antes de fazer show, perdi a vontade de beber. Veio meu aniversário, e eu água. E quando veio a pandemia, eu já estava sem beber. Usei as últimas doses de saquê que tinha em casa pra cozinhar, joguei as garrafas fora e nunca mais. E, na pandemia, eu parei de comer carne, também. Um dia vieram muitos legumes na cesta de orgânicos e eu fui comendo só os legumes, as verduras, e parei de sentir falta da carne. Acho que fui me purificando, sabe? Minhas ideias, meu filtro, não sei, passei a acessar tudo com mais facilidade.
Chico César e Zeca Baleiro durante apresentação no Centro de Convenções do Ceará, em Fortaleza, em 2003. Foto: Jarbas Oliveira/Folhapress
CONTINENTE Além de compor muito, também fez muitas parcerias, num momento em que todos estávamos afastados, você parecia muito junto.
CHICO CÉSAR Eu fiz umas 100 músicas sozinho e mais umas 20 com Zeca Baleiro, mais umas tantas que mandei pra Bethânia. Fiz várias com Fausto Nilo, na pandemia, com Bráulio Bessa… Ele fez um poema a partir daquele projeto dos Inumeráveis, que conta as histórias das pessoas mortas por Covid 19, sabe? Ele fez um poema que começava assim: “André Cavalcante era professor/ amigo de todos e pai do Pedrinho./ O Bruno Campelo seguiu seu caminho/ Tornou-se enfermeiro por puro amor./ Já Carlos Antônio era cobrador/ Estava ansioso pra se aposentar./ A Diva Thereza amava tocar/ Seu belo piano de forma eloquente/ Se números frios não tocam a gente/ Espero que nomes consigam tocar”. Eu li isso e peguei o violão na hora, mandei uma mensagem a Bráulio, que estava online e respondeu na hora, e fiz a melodia, gravei, as pessoas já começaram a compartilhar e de certa forma já se sentiram confortadas com ela.
CONTINENTE Até da escritora Chimamanda, de certa forma, você se tornou parceiro.
CHICO CÉSAR Eu estava em Paris lendo um romance da Chimamanda Adichie, Americanah, e de repente li uma frase que um personagem fala pro outro, era um branco falando pra uma negra: “Eu não quero ser fofo, eu quero ser a porra do amor da sua vida”. Aí eu pensei: é música! Peguei o violão e completei aquela ideia, pensando em outras situações em que a pessoa quer ser a porra do amor da vida da outra. Aí postei no Instagram, as pessoas gostaram, a Adriana Calcanhoto me pediu para cantar no show que ela está fazendo com Gil na Europa, mas antes precisamos liberar com a Chimamanda, porque o mote é dela, é a ideia que se repete na música. E eu quis que isso ficasse bem claro desde o início. Eu espero que ela libere, porque esse é o poder da canção, a coisa sai de um livro e as pessoas acham legal e começam a cantar…
CONTINENTE Por que você decidiu morar no Uruguai durante a pandemia?
CHICO CÉSAR Fui fazer dois shows no Uruguai, e apareceu uma proposta de um terceiro show. Era um beneficente para uma casa noturna que pegou fogo, eu topei e fiquei e fui ficando. Nesse show, eu conheci um casal de músicos argentinos, Maria Barceló e Esteban Blanca, e nós começamos a compor juntos. Sem falar inglês, eu compus uma canção em inglês com Maria, The wolf. É uma canção meio Beatles, meio misteriosa, sobre um lobo que é, ao mesmo tempo, a Chapeuzinho Vermelho. Acabei deixando um disco gravado no Uruguai com eles, que também deve sair ano que vem. E eu fui ficando, eu estava hospedado numa cidade rural, tinha dias em que eu não via ninguém. E muita gente pensando: “Acho que o Chico não volta mais”. E eu já tinha um convite para gravar um disco na França, e achei que ir pra lá do Uruguai seria mais fácil, porque já não estavam aceitando pessoas vindas do Brasil na Europa.
Capa do recente O amor é um ato revolucionário e de alguns dos mais de 10 discos lançados pelo artista. Imagens: Reprodução
CONTINENTE Como foi a sensação de ver o Brasil de fora?
CHICO CÉSAR Há quem diga maldosamente que o Uruguai são argentinos vivendo em território brasileiro, é um chiste muito malvado e que não traduz o que são os uruguaios… É um país muito pequeno que conseguiu avanços enormes por uma frente ampla. E que sua direita, que existe, claro, não ousa ser tacanha como a daqui. Eles respeitam muito o Brasil e estão pasmos com o que está acontecendo aqui. As pessoas olham pra você e dizem “Explique o Brasil”, e eu falo, “não tem como explicar o Brasil”. Pra você explicar o Brasil de hoje é preciso olhar de muitas perspectivas e de muitos ângulos. Mas estar fora me deu um olhar amoroso para o Brasil, eu sentia o afeto dos uruguaios, das pessoas que estavam torcendo pelo Brasil nos piores momentos da pandemia, pessoas que amam a música brasileira, vi como o Brasil é um país líder na América do Sul, e esse amor deles foi me desintoxicando do Brasil.
CONTINENTE E como surgiu esse convite da França?
CHICO CÉSAR A gravadora francesa fez um convite para gravar o disco lá, com músicos que já viviam por ali, até por razão da pandemia, porque não dava mais para buscar músicos fora ou muito longe, ou levar músicos do Brasil. E esse processo foi bom porque me provocou, me tirou de algumas zonas de conforto. O resultado ainda está em processo, estamos agora mixando para lançar em fevereiro. São cerca de 20 canções, todas feitas durante a pandemia. Uma delas se chama Perdão ao tempo e diz assim: “Se você não perdoar, vai pra sempre carregar a dor que devia ter ficado lá/ onde a mágoa já passou, diga, tempo, eu te perdoo/ é preciso encontrar de um modo, seja qual for/ não ter medo de abraçar o aço que já lhe açoitou/ diga tempo, eu te perdoo”; e depois diz “não quero a bagaceira, a cana doce eu sou/ digo, tempo, eu me perdoo”. O perdão ao tempo que não significa você passar pano. É superimportante pra você não ficar carregando coisas que já deviam ter ficado em outro lugar. Isso vale pra mim também: eu estava em outro país, fora do Brasil, e meu país passando pelo que estava passando… Mas não é minha responsabilidade carregar as dores do Brasil, eu tenho as minhas próprias dores relacionadas ao Brasil e tenho também as minhas alegrias e que felizmente proliferam mais. E foi isso que eu levei com muita verdade.
CONTINENTE Em que momento você apaziguou a angústia de estar fora do Brasil nos piores momentos?
CHICO CÉSAR Aconteceu uma coisa muito interessante nos últimos dias em que estive em Paris. Eu gravei um programa especial de televisão com a TV francesa, tinha vários convidados brasileiros, inclusive Maria Bethânia dava um depoimento. Uma moça que trabalhou na gravação desse programa estava registrando também o show de Caetano em Paris e me convidou para ir com ela. Eu fui e ele ficou sabendo que eu estava na plateia. Eu nunca tive proximidade com Caetano, sempre mais com Maria Bethânia, que grava músicas minhas, mas ao final do show, ele disse lá no palco: “Me disseram que o Chico César está aí, e eu quero dedicar essa música a ele. Na verdade eu quero dedicar o show inteiro a ele”. Eu fiquei maravilhado, ele saiu, aí logo depois teve o bis, aí ele reiterou: “É de verdade, eu quero dedicar esse show todo ao Chico César”. Eu fiquei três meses fora do Brasil que se fecharam com essa generosidade da vida. Sou fã de Caetano desde criança, o meu disco preferido é Transa. Ele fez um show lindo com voz violão, em Paris… Teve esse rasgo aí nesse meu período de angústia fora, por assim dizer. De certa forma eu me senti coroado. Era como se ele falasse: “Velho, você está no caminho certo, foi bom você ter saído do Brasil naquele momento, ter ido para o Uruguai, ter feito as coisas, ter vindo para cá, feito seu disco”. Foi importante que ele, que não sabia nada disso, dissesse isso um dia antes de eu voltar ao Brasil. Olha como é interessante e generosa a vida da música brasileira.
CONTINENTE Sobre outros artistas: você é de esquerda e é bastante enfático sobre isso. Como você lida com colegas que não se posicionam, ou que se posicionam a favor do governo Bolsonaro?
CHICO CÉSAR Olha, eu não tenho ira em relação a Bolsonaro, mas eu acho que ele é mesmo um genocida, ele é um especialista na morte, ele já falou isso algumas vezes, “minha especialidade é matar”, e ele não está sozinho. Tem muita gente pobre que está com ele. A gente tem visto colegas com visões que eu refuto como bastante equivocadas e isso não tira o meu amor por eles. A minha admiração por colegas que se posicionam de uma forma bastante antagônica ao que eu julgo, que é uma visão de liberdade e de justiça, eu não deixo de ouvir, nem eu deixo de cultuar, eu acho um privilégio poder levar a minha energia pra junto desses artistas. Mas quando você vai numa votação pelo impeachment da presidente do Brasil e dedica seu voto a um torturador, o torturador que torturou aquela mulher e setores da sociedade normalizam isso, é muito grave. “Dedico meu voto ao coronel Ustra”, aquilo me arrepia até hoje. Mas o que mais me arrepia é o silêncio dos bons, o fato de ele não ter saído preso naquele momento. O elogio à tortura é anti-humano, anticivil, anticristão. Mas o Brasil é movido por interesses inconfessáveis de uma parte importante da sociedade, uma parte maior que a dos 20% do núcleo duro desse pensamento conservador que está com ele…
CONTINENTE Qual parte?
CHICO CÉSAR Me incomoda muito a contemporização da grande imprensa, por exemplo. Esse apoio, essa cumplicidade… Será que é porque ele defende um programa de privatizações e um programa neoliberal que coincide com o pensamento das cabeças dessas empresas de comunicação? Eu tenho uma crítica muito ferrenha a esses setores. Com relação ao bolsonarismo em si, eu penso e desejo que acabe. Eu gostaria muito que o Bolsonaro fosse julgado pelos crimes que cometeu, sofrendo o impeachment ou perdendo as eleições. Uma dessas duas coisas vai acontecer. Pra que a gente olhe pra frente de novo com um projeto de nação que eu acho que deve envolver todo mundo, PSDB, PDT, PSB, PSol, PT. Mesmo os setores do DEM, da antiga Arena. Porque há democratas em vários lugares do escopo ideológico. São os democratas que devem defender a República e práticas republicanas. Eles não podem se acumpliciar com milícias. Isso é antibrasileiro, antirrepublicano e antipatriótico. Eu acho mais fácil que pessoas da direita façam o mea culpa e digam “Eu errei ao ajudar a colocar esse homem lá”. Não basta ficar contra ele, é preciso dizer “Eu errei.” Eu acho mais fácil isso acontecer do que o Bolsonaro mudar e eu acolho mais em meu coração, é mais fácil o meu coração acolher essas pessoas.
CONTINENTE Você tem esperança?
CHICO CÉSAR De que ele seja punido? Eu tenho certeza de que ele será punido. A comunidade internacional está de olho também, o Brasil precisa sinalizar uma seriedade institucional, né? Senão, nós vamos virar uma república de bananas, messiânica, misturando radicalismo religioso com narcomilícias, e isso o mundo não comporta mais, eu acho.
CONTINENTE Você acredita que somos um país de conservadores finalmente se encarando no espelho?
CHICO CÉSAR Não acho, não… As últimas eleições trouxeram bancadas bastante renovadas de mulheres negras, de bissexuais, de pessoas trans, que eram pautas que a esquerda tradicional não estava abraçando. Acho que quando miraram e mataram Marielle um pouco tinha a ver com isso, Marielle era uma pessoa bastante consciente socialmente, mas ela era mulher negra, lésbica, com uma fala muito clara. Ela não negava, não escondia, pelo contrário. Então talvez quem a matou imaginou “Ah, é uma pessoa só, é hora de acabar com isso”. Mas primeiro o seu aparecimento fortaleceu a convicção de muitas pessoas em Joinville, em Belém do Pará, em Pernambuco, falando: “Eu sou assim! Eu me identifico com essa mulher!”, “Numa próxima eu quero estar lá”. Ao matarem Marielle, essa vontade não arrefeceu, parece até que ela fortaleceu isso e elegeu muitas pessoas parecidas, e coletivos, candidaturas que não são personalistas. Isso, sim, é a nova política.
Show no Festival Jazz à Vienne, na França, em julho deste ano.
Foto: Dé Lins/Divulgação
CONTINENTE Fale um pouco mais das coisas novas que você tem visto, das produções que o animam.
CHICO CÉSAR Tem coisas que estavam começando a aparecer, como o movimento de compositores, cantoras e cantores do Recife, o Reverbo. Eles sofreram com a pandemia, porque a natureza do Reverbo era o encontro... Assim como o grupo Avoada, que tinha um projeto, o Avoada na Estrada. Um outro movimento coletivo da Paraíba chamado Quadrilha, que são quatro artistas jovens e que estavam começando a botar o pé na estrada… Eu cheguei a pedir uma data na Casa de Francisca, em São Paulo, para fazermos uma apresentação em conjunto, como se eu estivesse apresentando a nova produção da Paraíba, como uma isca. Veio a pandemia e tolheu isso. Acho que em 2022, 100 anos depois da Semana de 22, 100 anos depois da presença de Pixinguinha em Paris junto com Louis Armstrong – ali estava toda música negra do mundo – e aí, sim, a gente vai começar a ver o que saiu desse período. A impressão que eu tenho é que nós não podemos ser muito exigentes, porque o tempo nos tornou um pouco monotemáticos...Mas talvez a espontaneidade prevaleça. As pessoas estão com muito desejo de interagir, isso é fruto desse período recluso. Semana passada, eu recebi a 15ª versão musicada daquela resposta que eu dei a um camarada que queria que eu não fizesse mais canções de cunho político, em janeiro. Tem músicas feitas nesse período que são mais um desejo ético-afetivo do que estético. E eu sou muito cioso com a estética.
CONTINENTE Você acha que quando as coisas melhorarem as pessoas vão se esquecer dessa tragédia?
CHICO CÉSAR Não, as pessoas nunca esqueceram a Primeira Guerra Mundial, as pessoas nunca esqueceram a Gripe Espanhola, as pessoas nunca vão esquecer a Escravidão, mesmo que a escondam, as pessoas nunca vão esquecer o Holocausto. São situações-limites e que impuseram à humanidade um ponto em que você tinha de refletir sobre a vida e a morte. Esses enfermeiros e esses técnicos de hospitais que tiveram de escolher de quem tirar o oxigênio, como aconteceu… As pessoas não vão se esquecer isso nunca, as pessoas que perderam entes queridos não vão se esquecer nunca. Todos nós perdemos alguém, todos nós temos uma história próxima.
CONTINENTE E será que corremos o risco de que essas canções pandêmicas fiquem datadas?
CHICO CÉSAR A gente tem de pensar em Gilberto Gil, ele tem uma canção que diz “trocar o logos da posteridade pelo logo da prosperidade”. O que é próspero? É você fazer algo que dialogue com o momento de alguma forma. Eu penso que canções que tematizam a pandemia, como a Inumeráveis, por exemplo, é uma canção-memorial. É uma canção que permanecerá de algum jeito, uma canção-referência, que já criou um lastro de afetividade que é para depois. Já outras, não, como outra que fiz assim: “Saudade de aglomerar e me juntar com a galera/ Eu vou botar minha máscara eu vou ali na esquina/ Procurar o traficante de hidroxicloroquina”. Essas têm o tempo delas, como “Eu vou tomar a vacina, quem não quiser que tome cloroquina/ Não vou passar vergonha, quem quiser que escute esse pamonha”. Quando os nossos compositores de música de carnaval fizeram composições ali nos anos1940, 1950, comentando a situação política do momento, eles fizeram pra se divertir. E há canções que cantamos até hoje. Pra mim, as canções atemporais são um pouco assim.
CONTINENTE Estão começando a pipocar muitas coisas que artistas fizeram sobre pandemia, músicas, livros, filmes, daria até um festival só com as produções da pandemia…
CHICO CÉSAR Eu não sei se teria paciência pra um festival que tematizasse a pandemia, vídeoarte sobre a pandemia, canções sobre a pandemia… Eu penso que o algoz não é o outro que se aproxima de mim sem máscara, que não quer tomar vacina. O algoz é quem quer me silenciar. E os algozes dessa tragédia querem nos tornar monotemáticos, então ele ganha quando nós ficamos só falando sobre pandemia, entende? Então, se eu faço uma música de amor tipo essas que eu andei fazendo e alguém vem na página e só escreve “Fora Bolsonaro”, eu penso, puxa, é estranho que a pessoa comente isso desse jeito. O mesmo acontece se eu posto uma música de amor e alguém comenta “Lula livre” ou “Fora Temer”, eu falo: “Gente! A nossa vida não se resume a essas hashtags”. E é isso que eles querem fazer, querem afunilar a nossa vida para que vire uma hashtagzinha. Quando tinha show, acontecia muito de pessoas irem no camarim dizer: “Olha, eu sou muito seu fã por causa da sua posição política”. Aí eu falo: “Pô, mas e esses acordes, essas harmonias, essas letras, esse jeito de escrever?”. Porque é isso o que eu faço, é isso que me coloca no mundo, se quem me ama, se quem me admira, não me admira pelo que me coloca no mundo, eu penso: “Será que eu tô sinalizando errado?”. De alguma forma, estar fora do Brasil acho que me ajudou a fazer coisas, a encontrar pessoas que estavam mais atentas à música em si.
CONTINENTE Curiosamente, foi justo nesse momento que você estava fora do Brasil que, de repente, seu nome explodiu aqui, quando o maior fenômeno pop brasileiro, a Juliette, cantou uma música sua, Deus me proteja, no Big Brother Brasil.
CHICO CÉSAR Foi uma maluquice aquilo, né? Da noite pro dia não parava de chegar gente que nunca tinha ouvido falar de mim (de acordo com o Google Trends, nunca o nome de Chico César foi tão buscado no site quanto em fevereiro de 2021, quando Juliette cantarolou sua música no Big Brother Brasil). Uns que chegaram, me viram e saíram correndo, “você é esquerdista demais para nós”. E a Juliette também é! Esse negócio de redes sociais é muito surpreendente. No Domingo de Páscoa aconteceu uma coisa que me comoveu muito. Eu estava almoçando com uns uruguaios, aí chegou outro e disse: “Chico, um amigo brasileiro mandou um vídeo de um padre cantando sua música na missa da Páscoa”. Aí eu falei, “ah, Deus me proteja”, já imaginando que era por causa de Juliette. Ele disse: “Não, aquela que Bethânia gravou, Onde estará o meu amor. Era o Padre Fábio de Melo. A mãe dele havia falecido de Covid-19 naquela semana e ele cantou na missa da Páscoa. No dia em que conheci Juliette, no programa Altas Horas, ele foi ao meu camarim e disse: “Há pessoas que não estão ligadas a nenhum credo e que trazem uma espiritualidade muito forte, e você é uma dessas pessoas, até pra mim, que sou um religioso. A palavra religião vem de religar, e você me reconecta e reconecta muitas pessoas, você faz essa religação”. Foi muito pungente aquilo.
Compositor interpreta religiosidade à luz da reconexão.
Foto: José de Holanda
CONTINENTE Qual é sua história com as religiões?
CHICO CÉSAR Eu sou filho de uma família católica. Eu fui da Minijuventude Franciscana; depois, com 13, 14 anos, eu vi que a minha ligação com a subjetividade e com os mistérios era através da música. É assim que se dá pra mim. Em 2019, eu tomei ayahuasca pela primeira vez na vida. Por isso aquela canção que os fãs pedem pra eu tocar no Instagram… Eu tomei num sítio aqui em São Paulo com amigos. E eu só vi belezas. Tudo aquilo que dizem, que faz mal, que tem que tomar muitas vezes, comigo foi ao contrário, tomei apenas uma vez e vi luzes, tive sonhos, foi lindo tudo. Eu podia ter voltado dali a 15 dias, dali a um mês, mas não. Foi tão bom, que eu só quis uma vez. Vai ficar sendo bom durante um bom tempo da minha vida e aí talvez eu queira de novo. Talvez eu entenda um pouco por que as pessoas bebem, porque as pessoas tomam drogas, porque as pessoas rezam, por que as pessoas buscam um lugar de transcendência que eu encontrei ali. E talvez isso tenha me ajudado depois a deixar de beber e a aceitar o fim do casamento, a me tornar vegano e a ter coragem de ir para o mundo fazer a minha música.
MARIANA FILGUEIRAS, jornalista cultural.