Portfólio

Ana Elisa Egreja

Do banal ao absurdo

TEXTO Sofia Lucchesi

03 de Novembro de 2021

'Copa (Natureza morta)', 2017, óleo sobre tela, 190 x 270 cm

'Copa (Natureza morta)', 2017, óleo sobre tela, 190 x 270 cm

Imagem Ana Elisa Egreja/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 251 | novembro de 2021]

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Sobre a bancada da copa, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito melancias. Incontáveis abacaxis, jerimuns, mamões, milhos, bananas, laranjas e outras variedades. Na mesa, mais frutos, além do queijo, da manteiga, pães, quindins, uma caixa de chá e uma jarra amarela que contém, possivelmente, um delicioso suco feito do alimento fresco recém-comprado na feira. Acima, um lustre alaranjado, com desenhos de maçãs e peras. No lado direito do recinto, um antigo rádio dos anos 1970, latas de refrigerante Fanta, um óleo de milho, duas garrafas de vinho branco, cerveja e outros produtos.

Poderíamos atentar para mais detalhes de Copa (natureza-morta), obra da artista Ana Elisa Egreja, como, por exemplo, os ímãs de borboleta que enfeitam a geladeira, ou os quadros que decoram a parede. No entanto, não importa quanto tempo dedicado à tentativa de descrever sua pintura, apreender por completo o que é visto será sempre algo falho. Não apenas pelo caráter altamente “descritivo” de suas pinturas, como se refere a própria artista, mas também porque o exercício da contemplação nos leva a inúmeras histórias possíveis a cada etapa do percurso, como se cada pedaço de tela contivesse uma pintura diferente – fragmentos narrativos possíveis que existem em si mesmos e também como parte de um todo.

Natureza-morta vermelha, 2017, óleo sobre tela, 40 x 50 cm. Imagem: Ana Elisa Egreja/Divulgação 

A experiência de olhar para os ambientes domésticos retratados pela artista talvez se assemelhe a algo como a sensação que temos ao chegar à casa nova que acabamos de alugar. Podemos imaginar, através dos vestígios deixados pelos antigos inquilinos – a mobília, os adesivos colados nos armários ou nas janelas, as cores escolhidas para as paredes – quem eram aquelas pessoas que antes ali habitavam. Esses espaços se manifestam como personagens vivos dentro de sua obra, demarcando não apenas gostos estéticos de seus possíveis residentes, mas interesses que são os da própria artista.

 

Servindo um banquete de referências à história da arte, da arquitetura e às suas memórias afetivas, Ana Elisa vem compondo, ao longo do seu corpo de trabalho, um vocabulário que mistura o popular ao erudito, o banal ao absurdo, com a recorrência de elementos como os vidros-fantasia, padronagens, frutas, animais, o excesso e a própria pintura. Essa gramática é reafirmada e reinventada a cada novo trabalho, numa prática quase obsessiva de pintar repetidamente esses signos, produzindo inúmeras pinturas em grande formato, que podem chegar a atingir quase três metros de largura. 

Natureza morta com melancia, caveira, vaso de plantas, hortência, morango e batata doce, 2015, óleo sobre tela, 50 x 70 cm. Imagem: Felipe Berndt/Divulgação

Natureza-morta com abacaxi, bananas, melão, limão e pimentões, 2015, óleo sobre tela, 70 x 50 cm. Imagem: Felipe Berndt/Divulgação

“Eu diria que a natureza morta é meu maior interesse, junto com as pinturas de interior. As duas também nasceram juntas na Holanda como gêneros de arte. Há uma ligação natural entre as duas coisas, porque é quase impossível você pintar natureza-morta sem falar de dentro de uma casa”, diz a artista, cuja exposição individual Fazer realidade esteve em cartaz na Galeria Leme, em São Paulo, até o começo deste mês.

É a pintura, portanto, o personagem central da sua narrativa e pesquisa, numa metalinguagem que é construída tanto de maneira mais intuitiva quanto em citações diretas, a exemplo de quando reproduz obras que pega emprestadas em acervos de museus para compor uma sala de estar. Esses referenciais existem num contexto de contemporaneidade dentro de sua obra, e não apenas como mera homenagem ao passado, como em suas naturezas-mortas, que podem ser vistas numa remixagem com produtos industriais facilmente encontrados nos supermercados de hoje ou através dos seus vidros-fantasia – vidros texturizados, comumente encontrados em casas dos anos 1960.


Pratos borrão, 2021, óleo sobre tela, dimensões variadas. Imagem: Felipe Berndt/Divulgação

“Eu fui indo por um caminho na história da arte que partiu da natureza morta clássica à Sopa Campbell do Andy Warhol. Então, eu penso: como seria a natureza morta de hoje? Como eu faria? Depois de muito tempo fazendo releituras de Goya, Matisse, de artistas espanhóis como Francisco de Zurbarán, dos holandeses, como Pieter Claesz, ou do Chardin, essas telas foram se resolvendo pra mim. Eu ia olhando todos da história da arte, da natureza morta e também pensando no que eu faria hoje. Numa única pintura minha, você pode encontrar menção a sete outros pintores”, explica.

Para criar obras com tantos elementos, coexistem no seu processo de criação dois caminhos: um que é o da artista enquanto colecionadora de imagens, em que armazena referências classificadas por pastas no computador – “tapetes”, “pratos”, “tecidos”, “porcelanas”, entre outros –, e que são utilizadas num procedimento de colagem digital predominantemente utilizado nas suas pinturas de início de carreira, e um outro, que é o da artista enquanto cenógrafa e produtora de objetos. Esse tipo de estratégia criativa surge a partir da série de naturezas mortas vistas através de vidros-fantasia, que integraram a exposição Da banalidade, realizada com curadoria de Paulo Miyada e Julia Lima no Instituto Tomie Ohtake, em 2016. Em 2017, com a preparação para a exposição Jacarezinho 92, realizada na Galeria Leme, esse procedimento começa a se complexificar.

“Os vidrinhos foram a primeira vez que encenei coisas no ateliê, e me fizeram pensar que eu poderia levar essa encenação da escala do objeto para a escala da arquitetura”, conta. “Então, compliquei muito o processo em Jacarezinho. Eu podia ver o que acontecia com a luz quando ela bate nos polvos, quando ela bate aqui, bate aqui, as reflexões perfeitas da vela, as reflexões perfeitas do colar, que eram coisas que eu não tinha, roubava fotos da internet com 30 DPIs. Eu não alcançava esse grau. Então, o realismo que eu fui alcançando aos poucos foi exigência minha. Nessa exposição específica, me propus a fazer todas as obras a partir de encenações. E, se você pensar, não à toa todos os pintores de natureza-morta tinham as coisas no ateliê para ficar olhando. Então, o trabalho começa muito antes da pintura, e muito antes do dia da grande encenação”, detalha.

Cinderela, 2021, óleo sobre tela, 160 x 130 cm. Imagem: Felipe Berndt/Divulgação

A pesquisa por materiais diversos, como os tecidos que simulam afrescos, os móveis, quadros e todos os tipos de objetos, acontece em lugares que vão desde a Rua 25 de Março – de comércio popular em São Paulo, onde ela nasceu e reside até hoje – a museus ou coleções particulares, onde encontra obras de pintores como Picasso e Tarsila do Amaral, que são cedidas para um empréstimo com pouquíssimas horas de duração. Constrói, então, ambientes inventados em casas de parentes e amigos, que são fotografados em diversos ângulos, num estudo de luz, sombra, cor e perspectiva. Suas pinturas em grande formato, em escala arquitetônica, chegam a tomar de três e seis meses para ficarem prontas, por vezes até mesmo um ano inteiro.

***

A menção a esses lugares distintos – a Rua 25 de Março e as instituições museológicas – pode ser um ponto de partida para tratar de outros debates provocados pelo trabalho de Ana Elisa Egreja. Associações ao kitsch ou brega são frequentemente feitas acerca de sua obra, gerando discussões a respeito de questões de gosto e de valor: o que é “bonito” ou “feio”, embates entre o erudito e o popular, o que é ou não Arte (com A maiúsculo). Tal relação talvez seja lida pelo público não apenas pela presença de signos e símbolos do universo pop e de consumo contemporâneos em sua obra – adesivos da marca Apple, de times de futebol ou desenhos animados como Os cavaleiros do zodíaco –, mas também pela menção a uma cultura popular mais tradicional, como as pinturas naïf, ou, ainda, pelo vínculo com a pintura de gênero, como analisa a própria artista.


Pink room, 2019, óleo sobre tela, 190 x 240 cm. Imagem: Felipe Berndt/Divulgação

“Talvez a questão que esteja por trás seja a de que existe um lugar da natureza-morta que não é falado, e que eu quero discutir, pois é o seguinte: todos os pintores da história da arte fizeram natureza-morta, mas todas as velhinhas, todos os artistas da Praça da República, no centro de São Paulo, também fizeram. Uma natureza morta está à venda no mercado popular a um real. Então, é algo que mistura, a interpretação acaba ficando confusa: ‘Ah, a do Cézanne é boa, a da tia é ruim’. Talvez, por ser um gênero ‘banal’, por ser algo acessível, todos esses gêneros, do retrato, da paisagem, da natureza morta, geram esse tipo de problema. A natureza-morta mais ainda, porque é algo de dentro de casa, todo o mundo pode fazer. É a aula número um de arte, desenhar uma maçã”, enfatiza.

Se a experiência de olhar para suas obras nos traz uma sensação de familiaridade – justamente, pelo uso de gramáticas reconhecíveis à vida banal, retratadas pela ótica verossimilhante de uma técnica desenvolvida ao longo de 15 anos de trajetória –, há também sensação oposta, que é um certo estranhamento, um ruído que tensiona o que seria uma representação fiel da realidade. Uma das causas talvez seja a inserção desses signos ordinários em algumas situações absurdas criadas pela artista, como os excessos de frutos e objetos, ou, ainda, os animais que habitam suas casas, seja em grupos ou sozinhos, ocupando banheiras, escadas, sofás.

Outro mecanismo de fricção com a expectativa do real é o fato de que, em suas pinturas, não importa se vemos elementos localizados em primeiro, segundo ou terceiro plano, tudo está em foco. No entanto, o olho humano não permite tal profundidade de campo. “Eu pinto cenas onde tudo que é visto está em foco. Fui entendendo, ao longo dos anos, que essa característica gera uma sensação de estranheza, algo que talvez torne minha pintura como uma espécie de realismo-fantástico. Você não entende o ambiente em que está, parece um pouco freak”, analisa.


Cozinha Pennacchi, 2021, óleo sobre tela, 150 x 200 cm. Imagem: Felipe Berndt/Divulgação

É possível, ainda, lançar luz sobre outras considerações a respeito desse suposto realismo na obra de Ana Elisa Egreja. Como observa o curador Moacir dos Anjos, em texto curatorial sobre o trabalho da artista: “São trabalhos que teimam em replicar o que existe como pintura, sendo, ao mesmo tempo, assumida e irrevogavelmente falhados como seus equivalentes sensíveis. A quem sustenta o olhar por um tempo diante deles, oferece-se, portanto, não somente a sensação de proximidade do que é apresentado, mas também a impressão forte de estarem diante de algo distante do que é já conhecido”.

Longe de serem uma simples mimese da vida, as pinturas de Ana Elisa Egreja reconfiguram o real a partir de uma poesia – ou poíesis – própria e, assim como numa encenação teatral, firmam um pacto com o espectador, apresentando o que é visto como possibilidade do real, mas de um mundo que existe apenas em suas telas.

SOFIA LUCCHESI, jornalista com formação pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), art dealer e curadora.

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