A história de uma missa subversiva
Em 1981, ala progressista da Igreja faz um pedido de desculpas, em celebração, ao povo preto, na chamada Missa dos Quilombos
TEXTO Romero Rafael
03 de Novembro de 2021
Reprodução Encarte do disco 'Missa dos quilombos'
[conteúdo na íntegra | ed. 251 | novembro de 2021]
Era 22 de novembro de 1981, passava pouco do pôr do sol, quando, sob “uma lua belíssima”, foi sentida no Centro do Recife “uma brisa gostosa”: “Era como se Deus, Olorum, Oxum, Iemanjá se fizessem presentes”. Quem recorda a atmosfera daquele anoitecer é Clóvis Cabral, à época um jovem negro de 24 anos, depois ordenado padre jesuíta. “A gente dizia: isso aqui é o paraíso.”
O paraíso se instalara na Praça do Carmo, no Bairro de Santo Antônio. Havia montado no largo um palanque com quatro patamares em diferentes níveis de altura, e diante deste palco um público numeroso. Segundo o Jornal do Brasil, na edição do dia seguinte, seis mil pessoas estiveram ali. O Diario de Pernambuco, na mesma data, noticiou que foram “pelo menos três mil”.
“A gente tinha a impressão de que o pessoal estava chegando saindo dos esconderijos”, relatou-me há alguns anos Jacques Trudel, recuperando a sensação enquanto testemunha. A memória do padre jesuíta canadense, radicado no Recife desde 1973, emparelha-se com o primeiro cântico ouvido naquela noite, cujos versos iniciais são: “Estamos chegando do fundo da terra/ estamos chegando do ventre da noite/ da carne do açoite nós somos/ viemos lembrar”.
Grupo de dança formado por integrantes do Movimento Negro na Entrada e no Ofertório. Imagens: Verbo Filmes/Reprodução
No ritmo do hino de abertura, chamado A de Ó (Estamos Chegando), um grupo de 35 jovens e três crianças, todos negros, surgiu dançando num dos patamares do palanque. A maioria dos homens vestia apenas calça branca; as mulheres, blusas com estampas inspiradas em padrões africanos e saias brancas. Dançavam livremente: pernas, braços, o corpo todo. Sambavam, rodopiavam e jogavam capoeira.
Inaldete Pinheiro integrava o grupo de dança. A escritora potiguar, moradora do Recife desde meados dos anos 1960, já contou que o coletivo, sem formação em balé, ensaiou por duas ou três semanas. A coreografia, pelo que se assiste em poucos minutos de registros audiovisuais que sobreviveram às quatro décadas, brotava da espontaneidade, como reações do corpo à percussão das músicas.
Na mesma plataforma do grupo de dança, mas na lateral, foram acomodados os músicos. Eram sete instrumentistas. Junto a eles, um coro com 10 vozes. Todos orquestrados por Milton Nascimento, arranjador, regente e diretor artístico do que ali aconteceu. O compositor Fernando Brant, falecido em 2015 e eternizado um dos maiores parceiros de Milton, estava por lá e, à época, disse que ficou com “pele e pelo arrepiados” – “o que se viu e ouviu foi de arrepiar”; “um espetáculo que comoveu até as pedras da praça do Recife”.
No mais alto nível do palanque, os olhos miravam um altar – que, a despeito do clima, fora ameaçado de bomba. Ele horizontalizava, pelo menos, seis bispos: entre eles, o anfitrião, dom Helder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife; dom Pedro Casaldáliga, da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), e dom José Maria Pires, primeiro arcebispo negro do Brasil, da Arquidiocese da Paraíba.
Dom Pelé era o apelido de dom José Maria Pires até aquele momento. A partir de então, autonomeou-se dom Zumbi, numa homenagem a Zumbi dos Palmares, que, depois de capturado no Quilombo dos Palmares, morto e esquartejado, teve sua cabeça exposta na mesma Praça do Carmo, pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, em 20 de novembro de 1695, data tornada Dia da Consciência Negra.
Era dom Zumbi quem presidia o que ali subvertia a tradição. Ao invés da mitra – espécie de chapéu de origem eurocêntrica usado pelos bispos, arcebispos, cardeais e papas – cobria-lhe a cabeça um tipo de boina com motivos africanos, também estampando seus paramentos. O povo, os artistas e o clero rezavam uma missa – a Missa dos Quilombos.
À esquerda, reprodução de matéria publicada pelo Diario de Pernambuco na edição de 20/11/1981. À direita, reprodução de nota publicada pelo jornal O Globo na edição de 23/11/1981
ALTAR DE REVOLUÇÃO
“Como plateia, a gente sentia um frisson – que passava por todo mundo – de estar diante de uma coisa tão revolucionária.” O depoimento é da historiadora Marieta Borges, falecida em dezembro de 2019, que estava entre os fiéis na Praça do Carmo na noite de 22 de novembro de 1981.
Ela contou a experiência – inclusive, sensorial – numa entrevista concedida, em 2009, para o curta-documentário A história da primeira Missa dos Quilombos, realizado por mim junto com as jornalistas Grace Souza e Isabel Santos, na conclusão do curso da Universidade Católica de Pernambuco, sob a orientação do prof. dr. Alexandre Figueirôa. São também do trabalho os depoimentos de Clovis Cabral, Jacques Trudel, Inaldete Pinheiro e Milton Nascimento.
A Missa dos Quilombos é, na sua concepção, um pedido de desculpas da Igreja Católica no Brasil – ou, pelo menos, da ala progressista, comprometida com a justiça social – ao povo preto. E assim o fez mantendo intacta a liturgia romana, mas alargando os limites conservados até então, ao levar para o altar a população afro-brasileira com suas culturas e suas dores causadas, inclusive, pela própria Igreja.
“Pretos, meus irmãos, estamos presenciando, hoje e aqui, os sinais de uma nova aurora que vem despertar para a Igreja de Jesus Cristo. No passado, ela não se mostrou suficientemente solidária com a causa dos escravos. Não condenou a escravidão do negro, não denunciou as torturas, não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los e destruí-los. A igreja não estava com os negros, e hoje parece que começa a estar. Começa a nos querer bem, a respeitar nossa cultura e não tratá-la mais como grosseira superstição. A Igreja começa a ficar do nosso lado e a nos ajudar a ressuscitar a nossa memória histórica, a incentivar a nossa organização.”
Dom Helder Câmara no momento da Invocação à Mariama
O texto autocrítico é o início da homilia de dom José Maria Pires, o dom Zumbi, que, naquele contexto, começava a ser identificado como “o bispo da causa negra” dentro da Igreja Católica do Brasil. “Houvesse a igreja da época marcado presença mais nas senzalas do que na casa-grande, mais nos quilombos do que nas cortes, outros teriam sido os rumos da história do Brasil desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento”, refletiu o arcebispo em outro momento da pregação.
O professor doutor em teologia católica Sergio Douets, coordenador do Bacharelado em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco, considera que a Missa dos Quilombos dividiu águas. “Ela é um marco na relação da Igreja Católica do Brasil com a cultura afro-brasileira. Desde a colonização, a Igreja sempre teve um papel muito delicado em relação aos negros. Muito cedo, ela assumiu uma postura profética e decisiva em defesa dos indígenas, mas, com relação aos negros, salvo exceções, ela nunca se confrontou com a instituição escravidão.”
Ainda em sua homilia, dom Zumbi criticou a instituição religiosa, inclusive, por ter justificado a escravidão “com a teoria do mal que vem para o bem: se os negros perdiam a liberdade do corpo, em compensação, ganhavam a da alma e se incorporavam à civilização cristã abandonando o paganismo”.
“Bela teologia!”, exclama ele ao fim, numa aguda ironia, referindo-se à chamada teologia da transmigração, uma forma encontrada pela Igreja para validar a escravidão – pregava que a África era a terra do pecado e o Brasil, um purgatório. A salvação, ou seja, a liberdade, seria algo a conquistar e somente após a morte.
NOVOS QUILOMBOS
O Brasil de 1981 vivia no limbo da abertura da ditadura para o processo de redemocratização e era assombrado pelo fantasma do comunismo que alguns perseguem até hoje. Três anos antes, em 1978, surgira um novo sujeito político: o Movimento Negro Unificado – a escritora Inaldete Pinheiro, aliás, grifa que eram ligados ao MNU ela e os jovens que dançaram na Missa dos Quilombos; “nem todo mundo era cristão, mesmo assim, em nome da militância, a gente aderiu à celebração”.
A Missa dos Quilombos, portanto, para além de um mea-culpa de parte da Igreja Católica do Brasil, simbolizou-se também como um ato do Movimento Negro do Recife. “No dia seguinte, já nos olhavam diferente; isso quem tinha dúvida do nosso lugar aqui no Recife, do que estávamos fazendo no Movimento Negro. Parece que houve uma nova interpretação de por que a gente estava na militância”, rememora Inaldete.
“Até aquele momento, a gente não tinha discutido esse outro lado fundamental do processo de transformação do Brasil, que era a denúncia do racismo e a possibilidade de pensar num país que incluísse também mais da metade de sua população”, contextualiza o padre Clovis Cabral. “Aquele era o momento de o Movimento Negro se afirmar como sujeito político importante e determinante no processo de luta pela transformação e redemocratização do país.”
Alimentos da terra são entregues durante o Ofertório da Missa dos Quilombos
O fato é que, há 40 anos, para os brasileiros em geral, as questões em torno da população afro-brasileira estavam congeladas no passado escravagista até a abolição, sem amplo debate sobre os seus efeitos naquela atualidade. O imaginário sobre quilombo era cênico; construído, sobretudo, pelas novelas de época.
O professor, doutor em antropologia social, Augusto Fagundes, que em 2015 defendeu a tese Êxodos e encruzilhadas da Missa dos Quilombos, pela Universidade Federal de Santa Catarina, esteve com dom Pedro Casaldáliga, um dos autores da missa, falecido em agosto do ano passado, e comenta que a intenção do bispo era propor à sociedade uma reflexão sobre as favelas enquanto quilombos modernos. No sentido de que, mais do que olhar para o passado e pedir desculpas, era necessário discutir e condenar modelos de escravidão moderna.
O historiador e teólogo Eduardo Hoornaert, em um artigo sobre a Missa dos Quilombos para a revista Tempo e Presença, em 1982, escreveu: “Quilombo no Brasil é atualidade, não passado. Pois os bairros populares das grandes metrópoles brasileiras são, na verdade, quilombos, onde os negros se sentem em casa (quilombo ou mocambo significa casa). O mundo do trabalho é adverso ao trabalhador, o mundo do bairro lhe é familiar”.
Embora movida pelo passado, tendo a escravidão como momento-chave e cênico (vide o figurino do grupo de dança), o presente e o futuro encontraram projeções na Missa dos Quilombos, nas falas de dom Zumbi e de dom Helder Câmara, que, num trecho da oração Invocação à Mariama (anagrama para Maria que ama), recita: “Mariama, que a Igreja de teu Filho não fique em palavra, não fique em aplauso. O importante é que a CNBB embarque de cheio na causa dos negros, como entrou de cheio na Pastoral da Terra e na Pastoral dos Índios. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo hoje sem ligar ao que disserem”.
Foi dom Helder Câmara quem teve a ideia de realizar uma missa para os negros, inspirado pela Missa da Terra Sem Males, feita por dom Pedro Casaldáliga, junto com o poeta Pedro Tierra e a participação de Milton Nascimento, em Goiânia, em 1980. A Missa da Terra Sem Males celebrou os povos indígenas, e também lhes pediu desculpas. A terra sem males, a propósito, é um mito dos guaranis, de uma terra onde não haveria fome, guerras nem doenças.
Câmara e Casaldáliga eram nomes afinados com a defesa dos direitos humanos – e, portanto, perseguidos pela ditadura e incômodos à ala conservadora da Igreja Católica. “Eles (mais dom José Maria Pires) representam o que havia de melhor na Igreja Católica do Brasil naquele período. Melhor no sentido de mais coerente; preocupados com as questões sociais, com o destino dos pobres, com a seriedade do engajamento e da solidariedade da Igreja com os sofredores daquele período”, afirma o professor Sérgio Douets.
MISSA COMUNISTA
Os nomes de Helder Câmara e Pedro Casaldáliga estavam ligados à teologia da libertação. A corrente teológica cristã fortaleceu-se na América Latina, nos anos 1970, num ambiente de regimes ditatoriais; ela dialoga com as ciências sociais e se sintoniza aos problemas da sociedade, e por assim ser foi reprovada pelo Vaticano. Segundo consta em documento assinado em 1984 pelo então cardeal Joseph Ratzinger – que mais tarde se tornaria o papa Bento XVI, hoje emérito –, a teologia da libertação alinhava-se ao pensamento marxista.
Às vésperas da Missa dos Quilombos, dom Helder teve de reunir jornalistas do Recife numa coletiva de imprensa para explicar do que tratava a celebração, tamanho o bochicho na cidade. Matéria do Diario de Pernambuco publicada no dia 20 de novembro de 1981 trouxe o título “Igreja explica às autoridades a Missa Negra”.
Aos jornalistas, o arcebispo enfatizou que não era uma “missa negra” – no noticiário dos anos 1980, esta expressão foi bastante utilizada para o que seria um ritual de satanismo. “Estamos tomando o bom hábito de pedir perdão de público e tentar, com isto, eliminar alguns desentendimentos, reconhecendo certos erros. A Igreja já pediu perdão aos judeus, aos índios e, agora, será a vez do negro. Um dia ainda pediremos à mulher.”
Considerada por alguns subversiva e por outros revolucionária, embora os adjetivos possam significar o mesmo, a Missa dos Quilombos esteve envolta por tensões. Milton Nascimento lembra que cartazes de divulgação espalhados pela cidade – com a imagem de uma mão preta segurando, com punho fechado, uma cruz – foram violados, como se a mão segurasse uma foice e um martelo, para relacionar a celebração ao comunismo. Além disso, houve ameaça de bomba no altar. A missa, no entanto, correu por 90 minutos sem qualquer contratempo e bastante deslumbramento.
Na edição de 25 de novembro de 1981 do Diario de Pernambuco, a coluna Diário Político publicou o seguinte comentário: “Na badalada ‘missa negra’ vimos mais brancos do que propriamente ‘negros’. E os brancos se deliciaram com o bamboleio de negras e mulatas, que se mexiam e se contorciam não se oferecendo a Deus, mas, ao que parece, aos descendentes de antigos senhores de escravos”. Também afirmou que dom Zumbi misturou Karl Marx com Cristo.
“Foi um ato de extrema coragem, um gesto profético. Dom Helder Câmara, dom José Maria Pires e dom Pedro Casaldáliga foram, de fato, profetas, porque eles enfrentaram não só a mídia racista, as forças paramilitares e os setores civis que mantinham a ditadura militar, mas eles também peitaram e enfrentaram vozes opositoras dentro da própria Igreja”, contextualiza padre Clovis Cabral.
“Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama”, exaltou-se dom Helder Câmara em trecho da sua Invocação à Mariama.
Vista aérea da Praça do Carmo, no Centro do Recife, na noite de 22 de novembro de 1981, quando foi celebrada a Missa dos Quilombos
MORTE E RESSURREIÇÃO
Missa rezada, fiéis conservadores permaneceram incomodados com os discursos, mas, sobretudo, com a utilização de elementos das culturas e mitologias africanas, que, na acusação deles, feriram os dogmas da Igreja Católica. Além das danças, do figurino e do uso de atabaques e ganzás, foram oferecidos alimentos no Ofertório; e nas letras das músicas são citados, por exemplo, Olorum (criador do mundo e dos orixás), os orixás Obatalá e Xangô; Oió (império criado pelos iorubás, na África Ocidental, no século XV) e Aruanda – na umbanda, um paraíso espiritual.
A grita dos contestadores foi ouvida no Vaticano, e em julho de 1982 a imprensa nacional repercutia uma carta enviada pela Congregação do Culto Divino da Santa Sé à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) impondo proibição às missas da Terra Sem Males, dos Quilombos e da Esperança, que seria um pedido de perdão às mulheres pela opressão, mas que não chegou a acontecer. O noticiário nacional ocupou manchetes com padres e bispos concordando ou discordando.
“A missa foi um grande dispositivo: ao mesmo tempo em que levou algumas pessoas a pensarem sobre pluralidade cultural, chocou pela presença dos atabaques e pelo vigor da musicalidade. Era um feixe de contradições, que, por si só, reflete a sua potência. Ela faz várias denúncias, é incômoda, e normalmente não é agradável pensar num ritual cristão como sendo inconveniente, e, sim, contemplativo”, analisa o professor Augusto Fagundes.
O doutor em teologia católica Sergio Douets enfatiza que a celebração religiosa foi uma missa como reza Roma, tendo absorvido elementos da cultura afro-brasileira, que, integrados à liturgia, resultou numa experiência de ‘inculturação’. “O corpo central era profundamente tradicional, no sentido positivo da palavra, e coerente com o que há de mais antigo no cristianismo: a eucaristia.”
Após a proibição do Vaticano, a Missa dos Quilombos seria ressuscitada pela arte em setembro de 1982, quando a extinta gravadora Ariola lançou LP homônimo. Traz na capa o cartaz da celebração e um texto de dom Pedro Casaldáliga. “Em nome de um deus (assim, com inicial minúscula) supostamente branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vêm sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte.” Chama o Quilombo dos Palmares de “Sinai Negro” e Zumbi, “Moisés Negro”.
Milton Nascimento reuniu no disco 11 faixas (uma edição lançada depois, e disponível nas plataformas digitais, traz 15) – algumas delas registradas na Missa dos Quilombos no Recife, e a maioria gravada posteriormente no Santuário do Caraça, em Catas Altas, Minas Gerais. As músicas foram escritas pelos Pedros Casaldáliga e Tierra e musicadas por Milton Nascimento.
“Eu lembro o dia em que eu fiz a música Em nome de Deus, que me deixou muito mexido”, recorda Milton Nascimento, sobre uma das mais sensíveis do repertório. Após citar o Pai, o Filho (“que nasceu moreno/ da raça de Abraão”) e o Espírito Santo, menciona o Povo, assim com maiúscula. A última estrofe lembra os ancestrais e convida sua descendência ao aquilombamento: “Em nome do Povo que fez seu Palmares/ que ainda fará Palmares de novo/ Palmares, Palmares, Palmares do Povo”.
Na faixa seguinte, Rito penitencial, o convite a novos quilombos continua, numa súplica pela recuperação da dignidade usurpada: “Mulato iludido/ fica do teu lado, do lado do Negro/ Não faças, Mulato, a branca traição”.
Milton Nascimento regeu o coro da missa, composto por 10 vozes
A MISSA NÃO ACABOU
Anos mais tarde, a Missa dos Quilombos foi resgatada de forma mais pungente e distanciada do que houve na Praça do Carmo do Recife, há 40 anos. Ela foi apropriada e deslocada tanto num espetáculo dirigido por João das Neves nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, em 1989, quanto numa montagem da Companhia Ensaio Aberto (RJ), estreada em 2002. Ambas homônimas, mas transcendendo a missa enquanto celebração católica – agora reconfigurada como um espetáculo político e estético – e com o significado de quilombo atualizado.
No espetáculo dos Arcos da Lapa, todas as falas em nome da Igreja Católica foram cortadas. O negro era o protagonista e rebatia a condição da escravidão a que a população afro-brasileira estava submetida naquele final da década de 1980. “O negro na missa é falado, não é falante. Fala-se sobre esse negro, esse quilombo, mas, na apresentação dos Arcos da Lapa, o negro não é só falado, ele é falante, dono da sua voz”, analisa o doutor em antropologia social Augusto Fagundes. “Deixou de ser o quilombo e passou a ser a periferia”, complementa. Do espetáculo participaram, entre outros, Grande Otelo, Ruth de Souza, Zezé Motta e Milton Gonçalves.
Na montagem da Companhia Ensaio Aberto, dirigida por Luís Fernando Lobo, a Missa dos Quilombos também se desloca da escravidão no passado e põe no centro da denúncia os escravizados em todo o mundo nos anos 2000. “É interessante porque eles tomam como referência o que chamam de catedral laica, ou seja, não precisa ser de alguma religião para estar envolvido. Eles promoveram a missa com o potencial simbólico de pensar a comunhão do humano”, comenta Fagundes.
“A potência da Missa dos Quilombos é tão viva que ultrapassa os desígnios dogmáticos da Igreja Católica. Para os puristas conservadores, ela rasga o dogma, mas para os que creem – independentemente de crença, mas que têm a crença no humano como potência fraterna –, ela promove algo que pode comungar diversas mentalidades. É um acolher humano, um libertar da condição de exploração do próprio ser humano.”
A propósito, um dos compositores da missa, Pedro Tierra, pseudônimo do poeta e político Hamilton Pereira da Silva, era, à época, o que se pode dizer ateu comunista. Esteve preso pela ditadura militar entre 1972 e 1977 e era ligado à juventude socialista. Seu envolvimento ilustra esse caráter fraterno e também político da celebração – que, ainda assim, em 1981, respeitou a liturgia romana.
Na memória do cantor e compositor Milton Nascimento, o legado da Missa dos Quilombos é o fato de ele nunca ter visto “a Igreja se manifestar daquela maneira, nem antes nem depois”
A escritora Inaldete Pinheiro considera que ela “foi um gesto simbólico e valeu por isso”; e que “pedir desculpas é importante”. E o padre Clovis Cabral relatou ter sido transformado pela celebração: “Eu tenho a impressão de que, naquele dia, eu reencontrei a minha alma perdida. Foi um momento profundo de reencontrar-me com aquilo que havia de mais significativo para mim, que era a minha negritude”.
Fagundes relata que, durante a pesquisa para a sua tese, encontrou no acervo de dom Pedro Casaldáliga cartas enviadas por uma senhora de São Paulo, negra, confessando que a missa a fez enxergar coisas que nunca antes tinham lhe passado, e que ela e outras mulheres católicas iriam estudar, porque sequer sabiam quem havia sido Zumbi.
Para além das experiências pessoais, a Missa dos Quilombos no Recife concluiu-se como um dispositivo de mobilização e articulação dentro de uma série de lutas do Movimento Negro nos anos 1980, que culminou na indicação de um homem negro para a Constituinte. Na Igreja, particularmente, ela pavimentou os caminhos para a Campanha da Fraternidade de 1988, nos 100 anos da Abolição: A fraternidade e o negro, tendo como lema “Ouvi o clamor deste Povo”. Dali foi criada a Pastoral Afro-brasileira, da CNBB, que teve dom José Maria Pires, o dom Zumbi, como um de seus entusiastas. Em 2020, a pastoral fundou o Observatório Racial Dom José Maria Pires.
A Missa dos Quilombos continuou simbólica, política e esteticamente – e pode continuar. “Enquanto obra, ela é datada, mas a sua potência estética e política é atemporal”, analisa Fagundes. “Seja você de que religião for, ou de qual modelo de ateísmo, ao lê-la, ela quebra dogmas. Embora escrita com os limitantes da época, da ditadura, ela vai além, é potente. É uma missa que nos desconcerta, nos tira do lugar.”
ROMERO RAFAEL, jornalista, editor-assistente de Cultura do Jornal do Commercio.