Ensaio

Autobiografias, ontem e hoje

Uma análise de autobiografias a partir das Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber

01 de Outubro de 2021

Daniel Paul Schreber, que viveu entre o final do século 19 e o início do século 20

Daniel Paul Schreber, que viveu entre o final do século 19 e o início do século 20

[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021] 

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Em seu ensaio de 1919 sobre “a tradição e o talento individual”, T. S. Eliot fala da poesia do presente (ou, de forma mais ampla, da arte do presente) como um evento multifacetado que não atua exclusivamente sobre seu contexto imediato, mas reorganiza também a tradição, o passado e a releitura das obras já lidas. Quase 20 anos depois, o filósofo Walter Benjamin apresenta o revés dialético dessa ideia com a frase da sua Tese VI sobre o conceito de história: “também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Eliot defende a ideia de que o artista é um medium atuando como condutor das forças heterogêneas de distintas temporalidades; consequentemente, a arte do presente interfere criativamente sobre o panorama social, político e afetivo imediato enquanto reorganiza (sempre de forma tensa, a partir de disputas no interior da ordem do discurso) as experiências diante do passado. Cada livro que surge hoje diante do leitor pode levar a uma reorganização de toda literatura prévia, de todos os livros lidos anteriormente.

O mesmo acontece com os gêneros e estilos literários – um livro de memórias lido hoje pode fazer o leitor reconfigurar em sua cabeça todo o gênero, revisitando livros anteriores com outros olhos, com outras perguntas. Podemos pensar em um dos livros mais peculiares do século XX, as Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, publicado em 1903. Lançado no Brasil pela Graal em 1984, ele é agora relançado pela Todavia – com a mesma primorosa tradução de Marilene Carone –, ampliado com ensaios interpretativos de Elias Canetti e Roberto Calasso. Essas Memórias, que buscam registrar nos mínimos detalhes o processo paranoico de Schreber, percorreram as décadas estimulando a imaginação de vários teóricos e pensadores, sendo o primeiro deles Sigmund Freud, que dedicou um estudo a Schreber já em 1911: “Todo o livro de Schreber é permeado”, escreve o fundador da psicanálise, “pela amarga queixa de que Deus, habituado ao trato com os mortos, não compreende os vivos”.

A posição única de Schreber (um paranoico que toma a palavra de forma lúcida para registrar seu delírio: forças interplanetárias que querem transformá-lo em mulher, a destruição do mundo e a ligação do narrador com Deus por via de “nervos” e “raios de sol”) é reforçada pelo fato de que sua doença é uma espécie de reflexo ou reconstrução de uma posição de poder, pois é sua nomeação para um cargo jurídico de extremo prestígio que desencadeia os sintomas mais severos. A autobiografia de Schreber busca mostrar os problemas gerados pela sobreposição de duas posições: autoridade e escuta, ou ainda, atividade e passividade – sobreposição que surge já na infância, na convivência com o pai dominador, e repercute na idade adulta, na relação de Schreber com o “Estado” e a “Lei”. Para Freud, o caso Schreber também funcionará como uma espécie de catalisador da articulação entre paranoia e homoafetividade, que o perseguia desde o início de sua amizade com Wilhelm Fliess. Mas a potência imaginativa de Schreber extrapolou com folga as teorias freudianas, repercutindo na obra e no pensamento de figuras como W. G. Sebald, Gilles Deleuze, Friedrich Kittler, Jacques Lacan, Vincent Crapanzano, Eric Santner, Michel de Certeau e muitos outros.

As memórias de Schreber, portanto, possibilitam tanto o mergulho em uma personalidade quanto em uma época: a narração do jurista permite a visão de seus delírios e de suas angústias, mas permite ver também a construção paulatina de uma sociedade fundada no controle total dos corpos, dos afetos e das relações (é por isso que Elias Canetti relaciona o delírio de Schreber com a retórica totalitária nazista que surgirá alguns anos depois). É possível pensar como alguns anos depois a obra de Franz Kafka retomará essa desconfortável articulação entre vida privada e vida coletiva – é possível perceber ecos das preocupações de Schreber em um romance como O processo, por exemplo, ou mesmo em uma novela como Na colônia penal, ficções construídas por Kafka a partir de uma tensão entre o delírio subjetivo e a descrição “neutra” da burocracia estatal.

Da mesma forma, certos trechos de Schreber parecem antecipar a cadência kafkiana: “Para produzir um homem completo – um ato de criação que, como acredito poder supor, de fato uma vez aconteceu, em tempos imemoriais – era necessária, se assim posso me expressar, uma insólita aplicação de força, uma aproximação absolutamente excepcional do corpo cósmico em questão”. O confronto criativo entre Daniel Paul Schreber e Franz Kafka pode agora ser feito também através da leitura dos Diários do escritor tcheco, verdadeiro laboratório de testes da imaginação criadora, lançados pela Todavia em 2021 – a primeira edição integral no Brasil, abarcando os anos de 1909 a 1923, na tradução de Sergio Tellaroli.

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Depois da leitura de Schreber, as “memórias” e as “autobiografias” nunca mais serão as mesmas. A mistura de delírio e rigor do jurista alemão transforma o gênero e pode auxiliar o leitor a experimentar de forma mais intensa outras obras: podemos pensar no Diário do hospício, livro no qual Lima Barreto descreve sua passagem pelo Hospital Nacional dos Alienados, em 1919, no Rio de Janeiro; o diário Hospício é Deus, de 1965, e a coletânea de contos O sofredor do ver, de 1968, de Maura Lopes Cançado; ou ainda a ficção autobiográfica de Sylvia Plath, A redoma de vidro, de 1963, que também lida com a descrição de uma “doença dos nervos”, para retomar Schreber.
Ampliando um pouco o foco, podemos pensar também na relação estreita entre a autobiografia e os estados mentais alterados, como acontece nas anotações de Walter Benjamin durante o uso do haxixe ou, mais recentemente, o Retrato de um viciado quando jovem, de Bill Clegg, lançado originalmente em 2010 (surpreendente atualização do clássico de 1916 de James Joyce, Retrato do artista quando jovem – que já havia gerado outra releitura de peso, Retrato do artista como jovem cão, lançado em 1940 pelo poeta Dylan Thomas).

O apelo de livros desse tipo é inegável – parecem levar o leitor para mais próximo da vida, da dor, das mudanças, ainda que tudo seja mediado pela presença tranquilizadora do livro como objeto, como artefato. É possível fechar o livro e, assim, interromper uma história dolorosa, embora permaneça sempre – de forma latente, no pano de fundo – a consciência de que alguém sofreu e viveu para contar (uma percepção que atua em conjunto com o prazer narcisista de acompanhar à distância o desnudamento psíquico de alguém).
No primeiro volume de sua autobiografia (que cobre o período de 1936 a 1948), lançado em 2021 e intitulado Menino sem passado, Silviano Santiago escreve que a evocação do próprio passado é sempre um esforço de divisão: “Divido-me”, escreve ele, e continua: “Ao somar o fora ao dentro é que viro aquele que eu gostaria de ser. Invento-me semelhante ao outro e a todos os que lhe são semelhantes, embora seja diferente de mim no corpo imitado e em seu gestual postiço”. Esse esforço de divisão é reconhecível tanto na vida daquele que escreve quanto na vida daquele que lê. Parte do fascínio das memórias e autobiografias está na projeção exercitada pelo leitor, que passa a revisitar a própria vida seguindo o ritmo da evocação propiciada pela literatura.

As memórias recentes de Silviano Santiago colocam em jogo – mais uma vez – o paradoxo intrínseco ao gênero autobiográfico: como o passado de um indivíduo pode ser evocado aqui e agora, no presente, levando em seu fluxo a imaginação dos vários leitores que não tiveram acesso direto a essas vivências? No caso específico de Santiago, suas memórias estão carregadas de tudo aquilo que conhecemos de sua vasta obra – suas resenhas, ensaios, livros e artigos, suas ideias sobre teoria, crítica, literatura e cultura. É impossível colocar tudo isso em suspensão e pensar somente em Silviano Santiago quando criança, no interior de Minas Gerais: “Em 1948, ao trocar Formiga por Belo Horizonte, os 11 filhos seremos única e exclusivamente 11 vagões de passageiros puxados pela intransigente e ranheta locomotiva patriarcal”. É por isso que muitas vezes as autobiografias surgem nas etapas finais de um percurso intelectual: faz parte do jogo contar com essa impossível (mas sempre tão desejada) suspensão de tudo aquilo que se viveu, para que a memória possa emergir “pura”, “fresca”, como se nada tivesse acontecido (uma das tantas ilusões constitutivas da literatura).

Lima Barreto, Kafka, Silviano Santiago e Rebecca Solnit são outros autores que também escreveram poderosas autobiografias

Em Menino sem passado, Santiago inscreve com rigor e generosidade a própria infância no interior da história da literatura brasileira (aquela que já se fez e aquela que ainda se fará, como postulei no primeiro parágrafo). Ao mesmo tempo, essa infância surge pontuada por ricas notas informativas, posicionadas no final do volume, fazendo com que sua narrativa dê conta tanto do tempo longínquo (quando o autor era só mais um menino no cinema) quanto do tempo presente, do tempo expandido no qual as referências e leituras entram em tensão. Com as notas, Drummond, Mário de Andrade, Lacan e Roland Barthes passam a ser entidades atuantes também na infância – num exercício de “anacronismo deliberado”, tal como ensinado por Jorge Luis Borges. Comentando as memórias de Santiago, Wander Melo Miranda fala do “duplo movimento da memória”, de um lado, a “história familiar”, de outro, a “história literária”, que “se revezam e se compactam”: “um olho lá, outro cá, o estrabismo corrige a miopia do menino e amplia o campo de visão do adulto escritor”.

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Também em 2021, tivemos acesso às memórias de Rebecca Solnit, Recordações da minha inexistência (livro lançado originalmente em 2020, o que talvez mostre que Solnit começa a criar para si um público cativo de leitores também no Brasil), autora dos excelentes livros de ensaios Os homens explicam tudo para mim e A mãe de todas as perguntas, entre outros. Outro traço importante do gênero se revela como protagonista no livro de Solnit: a relação da memória com a cidade, ou ainda, o modo como a experiência de vida do sujeito se entrelaça ao espaço urbano, às ruas, endereços e paisagens de uma cidade específica. Para Solnit, a cidade é San Francisco – suas memórias começam em 1981, quando ela aluga seu primeiro apartamento na cidade aos 19 anos. “O bairro tinha vida”, escreve ela, “de uma maneira que fazia os subúrbios de classe média onde me criei parecerem mortos e desnudos – subdivisões destinadas, intencional e culturalmente, a se retirarem do espaço público e do contato humano, lugares onde os adultos andavam de carro e as pessoas andavam sós, e as cercas entre as casas passavam da nossa cabeça”.

As memórias de Solnit acabam sendo também um registro de como se posicionar diante do espaço público, especialmente no que diz respeito à reivindicação política do corriqueiro ato de caminhar – algo que para uma mulher sozinha, ainda hoje, é motivo de constante preocupação: “Já fui seguida, já fui insultada aos berros, agarrada, assaltada e roubada; mais de uma vez, homens desconhecidos ameaçaram me matar, e alguns homens conhecidos também; outros continuaram me perseguindo desagradavelmente, muito depois que tentei desencorajá-los”.

Para uma mulher, evocar a vida do passado é evocar as múltiplas estratégias desenvolvidas para tentar sobreviver em um mundo machista e violento: “A ameaça de violência passa a residir na sua mente. O medo e a tensão habitam seu corpo. Os que atacam obrigam você a pensar neles; invadem os seus pensamentos”. É difícil pensar em algo mais revoltante do que a certeza internalizada pelas mulheres de que qualquer saída à rua provavelmente redundará em incômodo: “não ser estuprada foi o hobby mais intenso da minha juventude. Exigia considerável vigilância e cautela, motivando constantes mudanças de rota pelas cidades, bairros e lugares pitorescos na natureza, assim como pelos grupos sociais, pelas conversas e relacionamentos”. A “inexistência” de que fala Solnit em suas memórias é, evidentemente, irônica – uma estratégia retórica que serve para chamar a atenção para uma violência naturalizada há muito tempo em nossas sociedades. A sua formação como escritora e feminista se dá a partir de uma luta contra a tendência da sociedade de impor a “inexistência” como categoria a todos que pensam diferente do status quo.

Quando comenta a viralização de seu hoje célebre ensaio Os homens explicam tudo para mim (“que trata do leve menosprezo de ter seu tema de especialização explicado por um tolo que nem sabe que não sabe o que está falando”), Solnit afirma que se deu conta que suas “memórias” e “vivências” repercutiam também na vida de outras pessoas: “Escrevi sobre minhas próprias experiências e percepções, mas acabou ficando claro que elas tinham muito em comum com as experiências e percepções de outras mulheres. O ensaio viralizou de imediato e recebeu milhões de acessos no site da revista on-line Guernica ao longo dos anos, pois as experiências e situações que descrevi são brutalmente comuns e pouco reconhecidas”.

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Esse ponto levantado por Solnit também é fundamental para a história do gênero autobiográfico: muitas vezes a revelação da intimidade (dos pensamentos, anseios, desejos e medos) de uma pessoa encontra ressonância na vivência de uma multidão (como já escreveu Walt Whitman: “Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões”). Por vezes, a descrição que uma pessoa faz da própria vida pode ser também a descrição das experiências de toda uma geração – é o que encontramos, por exemplo, em Homenagem à Catalunha, de George Orwell, registro não apenas de sua participação na Guerra Civil Espanhola, mas também de uma visão de mundo localizada historicamente e compartilhada por milhares de pessoas.

Mais recentemente, podemos pensar nos livros de Patti Smith, simples, diretos e encantadores em iguais medidas: em Só garotos, Smith resgata sua história de amor e amizade com o fotógrafo Robert Mapplethorpe; em Linha M, ela usa a metáfora do metrô para esboçar um mapa da própria vida, escrevendo em sua caderneta todos os dias à mesa de um café; em O ano do macaco, Smith registra o ano de 2016, quando atravessa a América numa turnê com sua banda. Por mais excepcional que seja a trajetória de Smith, em seus textos autobiográficos, ela sempre dá conta de registrar também o cotidiano, o “normal”, estabelecendo com isso uma ligação sutil – mas muito forte – com as leitoras e leitores de suas narrativas.]

Por fim, é possível pensar que a leitura de autobiografias carrega uma dimensão terapêutica: o leitor revisita as vidas alheias como forma de melhor observar a própria vida, administrando suas falhas e lacunas, valorizando seus pontos altos e projetando com lucidez as etapas ainda por vir. Como escreve Kafka em seus Diários, em dezembro de 1911: “No diário, encontramos provas de que, mesmo em circunstâncias que hoje parecem insuportáveis, seguimos vivendo, olhando em torno e registrando observações”. Talvez não seja exagero dizer que uma das principais características da literatura é justamente mostrar que existe um “outro lado”, para além das circunstâncias insuportáveis. 

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).
RAFAEL OLINTO, estudante de Design e estagiário da revista Continente.

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