Numa instalação realizada para a mostra Mitomotim (2018), com curadoria de Júlia Rebouças, em São Paulo, uma série de letras preenchidas com espuma e penduradas do teto, anunciavam: “AGORA AGORA AGORA E AINDA ANTES QUE ESSA BALA ME ATRAVESSE EU PROMETO QUE DO JURUNAS AO JANGURUSSU E DA CEILÂNDIA À BAÍA DE GUANABARA OS POBRES VÃO MASTIGAR OS RICOS E OS VENCIDOS VINGARÃO SEUS MORTOS”. Detalhe não menos importante é que, apesar da aparência macia e algo inocente das letras, a projeção de suas sombras na parede constitui um emaranhado que confunde a inteligibilidade da frase e faz as letras parecerem amontoadas como numa multidão, como se estivessem prontas para instaurar uma revolta. A escrita faz-se simultaneamente signo, imagem e corpo.
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Mas é preciso recuar um pouco na trajetória do artista para compreender alguns entrelaçamentos importantes. Na série Crônicas de retalhos, iniciada em 2015, Lamonier utiliza pequenos tapetes como suportes para bordados que narram as condições hostis a que estão submetidas as pessoas de classes mais baixas que vivem nas cidades. Violência policial, precariedade, o imaginário do trabalho nas fábricas e outros detalhes da vida suburbana dividem espaço com sonhos, desejos e fragmentos biográficos que relatam o próprio percurso do artista, ainda que negociado entre o real e a ficção.
Natural de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, ele cresceu no contexto de uma cidade industrial de intenso fluxo viário e desigualdades econômicas acentuadas. No trânsito entre a capital e a sua cidade natal, enquanto atuava regularmente com grupos de teatro, Lamonier também trabalhou como panfleteiro, cobrador de ônibus, animador de festa, tosador de cachorro em pet shop, entre outros bicos – detalhes que ora ou outra se manifestam na própria obra, talvez como estratégia de simultaneamente pertencer e despertencer. Num dos tapetes da série, por exemplo, um trabalhador uniformizado em fúria é acompanhado pela frase “Randolpho trocador”. Noutro, uma vingança se anuncia: “Randolpho bixa retorna à escola para se vingar e tocar o terror”, fazendo crer que a imaginação política não se distingue das memórias da infância ou das relações afetivas, pelo contrário, se erige através delas.
Uma promessa. Instalação (tecidos, espuma e lã), aproximadamente 10 x 6 m, 2019. Imagem: Divulgação
Eis um dos cernes da pesquisa de Lamonier: a compreensão de que o político se tece entre o pessoal e o coletivo; nos limites e definições entre o que se supõe íntimo e o que se julga compartilhado. E é aí que o desejo pode operar como vetor que resiste à normatização e governamentalidade dos corpos e suas identidades, exercício de liberdade ética. Por isso, apesar do traço documental, a dimensão cotidiana que o artista nos apresenta está sempre na iminência de uma insurreição, pois não se contenta em si mesma. E, também por isso, as pautas da macropolítica dividem espaço com questões ao redor da sexualidade e do prazer, na afirmação de um corpo em busca de vigor e flama. Mais uma vez, a visualidade algo infantil e a textura macia dos tecidos se contrapõem à violência e à firmeza dessas narrativas, embora também reforcem sua banalidade e constância, como se a representação do horror fosse algo presente no mais íntimo do cotidiano.
Daí, multiplicam-se as suas conhecidas Profecias, realizadas a partir de 2018 – momento de acirramento político que viria anunciar a catástrofe por vir – e responsáveis por conferir maior notoriedade ao artista, devido ao amplo engajamento do público nas diversas circunstâncias em que foram expostas. “Toma posse primeira presidenta negra do Brasil 2027”, “MST sai em cruzada nacional e faz reforma agrária com as próprias mãos 2021”, “Guerreirxs Guarani-Kaiowá vencem luta por sua terra ancestral 2034”, são algumas das frases que estampam grandes bandeiras de tecido, buscando projetar um futuro de justiça e potência para os movimentos sociais.
Por sua vez, obras mais recentes, como as realizadas neste ano, incorporam mais diretamente imagens apropriadas do universo da cultura pop, da televisão e da internet, em composições algo angustiadas que reforçam a narrativa fragmentada dos noticiários e episódios políticos do presente. Poderiam ser anotações e colagens subjetivas e desordenadas no caderno de um adolescente; ou cartazes sujos de manifestação, já que clamam por certa exterioridade. Se as Profecias apresentavam enunciados parecidos com manchetes de jornal; agora as palavras performam algo mais próximo do grito de guerra ou do pedido de socorro, por vezes com boas doses de humor e ironia. Junto a elas, ícones como a bandeira do Brasil, a cruz cristã, o gesto da arminha, a estética dos panelaços, o imaginário em torno do coronavírus, a face do presidente da República e uma série de referências a memes famosos convivem como destroços de um real estilhaçado, já descoladas de seus significados, à beira do nonsense.
Profecias. Costura e bordado em tecido aproximadamente 150 x 200 cm, cada uma, 2018-2019. Imagens: Divulgação
Cabe mencionar também aqui que, para Lamonier, o modo de conjugar tantas referências vem informado pelo repertório contaminado da televisão brasileira dos anos 1990 e também pela estética dos videoclipes dos anos 2000, que tanto contribuíram para a formação de certos imaginários. Tudo isso com uma generosa parcela de insubordinação própria de quem se vê atravessado pela turbulência social e identitária e pelos códigos da vida noturna. Suas assemblages conjugam o repertório urbano e o digital; a nostalgia e a obsolescência. Além disso, a conciliação entre excesso e delicadeza chama atenção. O bordado, que indica cuidado e capricho com as superfícies, divide lugar com fragmentos de materiais industriais que soam como sucata – são restos, resíduos de algo já destituído de função, descartados pelo relógio neoliberal. Não é raro que ternura e violência convivam nas peças de Randolpho Lamonier, e é justamente dessa negociação que emerge alguma potência. Além disso, o interesse por esses materiais revela a busca por uma desierarquização entre alta e baixa cultura, o “erudito” e o “popular”.
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Mas o trabalho vai muito além dos têxteis. Em 2019, o artista realizou uma instalação comissionada para a 15ª Bienal de Arte Contemporânea de Lyon, na França, intitulada Brasil 2019 – Partitura para fogo e metais pesados. Integravam o conjunto uma série de plantas, objetos apropriados diversos, fios, andaimes, tecidos, coquetéis molotov e um filme. Numa primeira mirada, a coisa toda soava como um espaço inacabado, entre a construção e a ruína. Não era raro experimentar ali a sensação de uma distopia plena, espécie de paisagem do pós-fim-do-mundo.
Aos poucos, porém, percebiam-se indícios de um reflorestamento possível. Em dado momento, o vídeo, cujos personagens são os próprios amigos do artista, ecoava um texto de resistência: “E entre fogo e tremores celebramos a falência deste tempo. Nós atravessamos os escombros deste mundo dançando, pois escolhemos a vida e vamos ficar de pé depois que esta grande máquina de morte tiver caído”. Corpos dançantes reivindicavam vitalidade e presença e pareciam prognosticar um período ainda mais sombrio que viria com a pandemia subsequente e a barbárie em curso no Brasil.
O revolucionário exército de memes. Couro, objetos, bordado, pintura e impressão fotográfica sobre tecido, 125 x 100 cm, 2021. Imagem: Divulgação
Nesse percurso, a obra de Lamonier situa-se entre a crônica que documenta o presente e a especulação que projeta um futuro. Promessa, profecia, vingança, grito de guerra; recursos que expandem os horizontes negociáveis do possível, operação fundamentalmente política. Se os regimes autoritários nos sequestraram o amanhã, somos aqui convidados a disputá-lo. Não se trata, entretanto, nem do fantasma do progresso, para quem “ir em frente a qualquer custo” produz autorizações desastrosas, nem do niilismo que predomina neste cenário de terra arrasada incitado pelo projeto neoliberal.
Odiosas manifestações pró-vida. Corda, bordado e impressão fotográfica sobre tecido, 95 x 75 cm, 2021. Imagem: Divulgação
Lamonier, como uma série de outros artistas em atuação no Brasil de hoje, enfrenta tal desafio num momento em que as promessas históricas foram suplantadas pela realidade pós-utópica, e a imaginação coletiva fracassa continuamente em encontrar soluções para as catástrofes que nos atravessam. Compreender o que cabe a nós não é um exercício simples, mas a obra produz um chamado importante – ao mirar o presente, é preciso disputar e delirar o futuro como empreendimento de saúde: possibilidade de vida.
POLLYANA QUINTELLA, curadora, pesquisadora independente, mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e formada em História da Arte por esta Universidade. Colabora com pesquisa e assistência de curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR).