Reportagem

A pedagogia do esperançar [parte 1]

No Centenário de Paulo Freire, lembramos a trajetória do filósofo e educador visionário que revolucionou a forma de alfabetizar adultos, em meio às transformações da educação no Brasil

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO
ILUSTRAÇÕES SHIKO

01 de Setembro de 2021

Ilustração Shiko

[conteúdo na íntegra | ed. 249 | setembro de 2021]

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“Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário.” (Paulo Freire)

“Paulo nasceu numa segunda-feira de tristeza e aflições, pois o seu Papá estava muito mal, sem esperanças de restabelecer-se, quase que o Paulinho seria órphão ao nascer, porém, o bom Jesus livrou-o dessa desaventura, presenteou-o restituindo a saúde ao seu Papá”, escreveu a recifense Edeltrudes Neves Freire, no diário O Livro de Bebê, sobre o filho caçula, Paulo Reglus Neves Freire, que nascera no dia 19 de setembro, na semana em que começaria a primavera de 1921 no Brasil. O menino veio ao mundo na casa de número 724 da Estrada do Encanamento, no Bairro de Casa Amarela, zona norte do Recife (PE), em uma área de classe média. À sombra de bananeiras, cajueiros, fruta-pão e mangueiras do quintal, sob os cuidados dos pais, Paulinho aprendeu a ler e a escrever, riscando o chão com gravetos. Começava ali o seu amor pelas palavras.

Desde criança, era muito estudioso. Por força das circunstâncias, acabou sendo o único dos quatro filhos de seus pais que pôde se dedicar totalmente aos estudos. Em 1927, numa década em que o país tinha 65% de sua população analfabeta (11 de 17 milhões), o menino ingressou, aos 6 anos, já alfabetizado, na escolinha particular da professora Eunice Vasconcelos, a quem chamava de “professorinha”. “Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da língua – os verbos, seus modos, seus tempos. A professorinha só intervinha quando eu me via em dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar regras gramaticais”, lembrou Paulo Freire à revista Nova Escola, em 1994.

“A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade. Quando Eunice me ensinou, era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosidade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira… Mas é como se tivesse dito a mim, ainda criança pequena: ‘Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar!’”, recordou Freire na mesma entrevista.

“Ele não se conformava em ir à aula sem as lições prontas, chorava demais. Enquanto não tinha certeza que sabia, não comparecia à aula”, anotou a mãe Edeltrudes, com caligrafia caprichada, no Livro de bebê. Eunice, a professora que lhe ensinou a formar frases e a discutir os seus significados, virou uma amiga. “Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves: ‘Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá’”, disse Freire, à Nova Escola.

Desde cedo, Paulinho demonstrava ser muito afetuoso e devoto. Escreveu sua mãe: “Com verdadeiro carinho, pega no crucifixo”. Foi criado em um ambiente católico, de muito zelo, mimo, leituras e música. Costumava dormir ao som do violão tocado pelo seu “papá”, como chamava o pai, Joaquim Temístocles Freire, nascido no Rio Grande do Norte e capitão da Polícia Militar, reformado ainda jovem devido a problemas de saúde.

“Minha família é uma família de classe média relativamente bem aquinhoada, e que sofre um impacto grande com a grande crise capitalista. De tal maneira, que, meu pai era oficial da Polícia Militar de Pernambuco, mas um homem também de classe média, do Rio Grande do Norte, e pelo lado de minha mãe, a família tinha uma situação econômica melhor. Mas, a crise de 1929 incide exatamente sobre o lado materno, e isso provocou, na família, a experiência de certas necessidades básicas”, revelou ao projeto Memória Oral do Idoso, do Museu da Pessoa, em 1992.

Naquele mesmo outubro de 1929, em que a Revolução de 1930 irrompe no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Paraíba, com a tomada do poder por Getúlio Vargas, ocorre a quebra da bolsa de Nova York, que provoca a Grande Depressão, produzindo impactos também na economia brasileira. Em 1930, Noel Rosa cantava no samba Com que roupa?:

“Agora eu não ando mais fagueiro/ Pois o dinheiro/ Não é fácil de ganhar”.

A crise provocou o fechamento de portas, como a do comércio de secos e molhados do tio Rodovalho, que, diretamente do Rio de Janeiro, contribuía com a família de Paulo, após seu pai entrar na reserva e ver o ordenado diminuído: “A partir dos primeiros anos de 1930, as dificuldades eram tais, que nós, eu, pelo menos, me lembro de que nós começamos a ter uma experiência, mesmo que discreta, ainda que não tão dramática, mas uma certa experiência de limitação ou de diminuição na própria comida em casa, quer dizer, passamos a comer menos. E isso tudo era compensado pelas fruteiras, pelos frutos, pelas árvores frutíferas que nós tínhamos não apenas no quintal da nossa casa, mas também nos outros quintais”, relatou no Memória Oral do Idoso.

Desde criança, Paulo Freire parecia encontrar aprendizado mesmo nas situações mais difíceis, como expôs na continuação de seu depoimento: “A própria experiência de uma fome não austera demais, não rigorosa demais, foi importante para mim. Foi fundamental. Porque eu era um menino que tinha uma constante que era a de ser curioso. (…) Eu me indagava muito, muito mais a mim mesmo do que aos outros. E me perguntava, eu procurava entender porque eu não comia e outros comiam. Quer dizer, desde tenra idade eu me preparava para me opor às injustiças sociais. Mais tarde, quando adulto, comecei a me lançar no esforço político-pedagógico, então tudo isso veio à tona. As memórias, isso que eu chamo de tramas, me ajudaram a me entender nas tramas de que eu fiz parte e a descobrir a dimensão política e ideológica disso tudo, e a questão do poder”.

Em 1932, ano em que pela primeira vez, no Brasil, a mulher ganhou o direito ao voto, sua avó perdia a propriedade onde ele nascera e vivera por 10 anos. Para tentar sobreviver, a família foi morar à beira do Rio Jaboatão, na Rua Virgílio Lamenha Lins, 70, no Morro da Saúde, em Jaboatão dos Guararapes, a 18 quilômetros do centro do Recife. A distância não era tão grande. Porém, sem calçamento nas ruas, a viagem parecia durar uma eternidade, principalmente na cabeça de um menino de 10 anos. A tristeza pela saída da casa na Estrada do Encanamento onde foram felizes agravou o sentimento de perda durante o trajeto para o novo endereço.

“Lá, em Jaboatão, aprendi muita coisa, em primeiro lugar, a ampliar o meu mundo, porque no Recife, o meu mundo, na Estrada do Encanamento onde eu nasci, se adstringia ou se restringia ao quintal, mesmo grande da casa, e em Jaboatão esse mundo cresceu um pouco (…). Ampliei o universo de amizade, passei a ter meninos que ficaram meus amigos e até hoje um ou outro ainda sobrevive, e que eram meninos filhos de camponeses ou filhos de trabalhadores urbanos, por exemplo, da cidade ferroviária na época, que era Jaboatão”, relatou no Memória do Idoso. Lá, ele assistiu a diversos tipos de discriminação – racial, social, de gênero –, que despertaram sua sensibilidade às injustiças, e sofreu muito a morte do pai, que faleceu, em 1934, de um aneurisma abdominal.

Naquele 1932, enquanto a família de Paulo Freire lutava para dar educação aos filhos, foi publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, defendendo a laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação (sem separação por gênero) no ensino público. Na década anterior, o Escolanovismo, movimento de liberais democráticos, havia empreendido reformas educacionais em estados como Ceará, com Lourenço Filho, em 1922, e na Bahia, com Anísio Teixeira, em 1924. Aconteceu também o primeiro movimento dos professores que exigia educação gratuita, obrigatória e custeada pelo Estado. No Recife, por exemplo, só havia um ginásio oficial, o Ginásio Pernambucano, com admissão feita através de teste muito concorrido, e as demais escolas eram privadas.

“Eu consegui fazer, Deus sabe como, o primeiro ano de ginásio com 16 anos. Idade com que os meus colegas de geração, cujos pais tinham dinheiro, já estavam entrando na faculdade. Fiz esse primeiro ano de ginásio num desses colégios privados, no Recife; em Jaboatão, só havia escola primária. Mas minha mãe não tinha condições de continuar pagando a mensalidade e, então, foi uma verdadeira maratona para conseguir um colégio que me recebesse com uma bolsa de estudos. Finalmente, ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz e o dono desse colégio, Aluízio Araújo, que fora antes seminarista, casado com uma senhora extraordinária, a quem eu quero um imenso bem, resolveu atender ao pedido de minha mãe”, contou Freire à Revista Ensaio, em 1985 – neste ano, ainda não sabia que o dono desse colégio se tornaria, em 1988, seu futuro sogro, pai de sua segunda esposa, Ana Maria Araújo Freire, mais conhecida como Nita Freire, pedagoga, doutora em Educação e autora do livro Paulo Freire – Uma história de vida (2006), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria biografia.

Quando era estudante do Oswaldo Cruz, na década de 1930, Paulinho se sentiu incomodado por não pagar mensalidade e propôs fazer algum trabalho como forma de compensação. Como era um aluno aplicado e tinha espírito de liderança, começou a trabalhar como bedel, disciplinador dos outros alunos. Depois, sua paixão pela língua portuguesa o levou a dar aulas de Português quando ainda era estudante. Em seguida, foi convidado para ensinar em outros colégios particulares. Graças a esse ímpeto na juventude, passou a ter contato com a profissão que marcaria seu nome na história, a de educador.

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Bem antes de se tornar o icônico educador internacionalmente conhecido, Paulo Freire tentou a carreira de advogado. Em 1944, aos 22 anos, ingressou na Faculdade de Direito do Recife. Naquela época, era a única alternativa na área de Ciências Humanas. Nesse mesmo ano, conheceu a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem se casou, ainda em 1944, e teve cinco filhos – Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgardes.

A “carreira” na advocacia, que começou em 1947, teve início, meio e fim numa única causa: “Tratava-se de cobrar uma dívida. Depois de conversar com o devedor, um jovem dentista tímido e amedrontado, deixei-o ir em paz. Ele ficou feliz por eu ser advogado, e eu fiquei feliz por deixar de sê-lo”, contou ele a Moacir Gadotti, diretor do Instituto Paulo Freire, no livro Paulo Freire: Uma biobibliografia (1996).

No mesmo ano em que abandonou o mundo jurídico, foi convidado a trabalhar no Serviço Social da Indústria – Sesi-Recife com uma ação educativa junto a operários. Assumiu a diretoria da Divisão de Educação e Cultura, em que observou a necessidade de ser realizado um trabalho específico à alfabetização de adultos (sem humilhá-los com as ingênuas cartilhas da educação infantil), às particularidades da linguagem e da realidade de cada aluno no processo de ensino.

Em 1952, foi nomeado professor catedrático da disciplina História e Filosofia da Educação, na Faculdade de Belas Artes, da Universidade do Recife (criada em 11 de agosto de 1946) – antigo nome da UFPE. Em 1954, tornou-se diretor-superintendente do Departamento Regional de Pernambuco do Sesi, cargo que ocupou até outubro de 1956. No ano seguinte, junto a outros educadores, fundou o Instituto Capibaribe, tendo sido o diretor no primeiro ano. O objetivo da instituição privada era oferecer ensino fundamental de qualidade e também formar docentes para a escola pública.

Em 1958, Freire apresentou, no Rio de Janeiro, as bases teóricas de seu sistema de alfabetização de adultos no II Congresso Nacional de Educação de Adultos. O relatório é considerado o ponto de partida de toda a literatura freiriana. As ideias contidas nele seriam retomadas em 1959, quando apresentou a tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco, com o título Educação e atualidade brasileira, que ficou em segundo lugar.

Aprovado, foi nomeado, em 1960, professor de Ensino Superior da cadeira de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Recife, tomando posse em 1961 – ano em que é promulgada a primeira Lei de Diretrizes de Base (LDB) da Educação Brasileira. Tornou-se assistente do professor Newton Sucupira, integrante do Conselho Federal de Educação, autor do parecer que instituiu, em 1966, a pós-graduação no Brasil. 

A visão de sociedade e de educação de Paulo Freire recebeu, em parte, influência do trabalho realizado pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), um dos núcleos de elaboração da ideologia “nacional-desenvolvimentista” que envolveu o sistema político brasileiro desde a morte de Getúlio Vargas, em 1954, até a queda de João Goulart, em 1964, tendo atuação marcante durante o governo Juscelino Kubitschek.

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Em 1960, numa década em que as taxas de analfabetismo nos estados nordestinos variavam entre 61,6% a 72,6% da população, o prefeito do Recife, Miguel Arraes, convidou Paulo Freire para desenvolver um método de alfabetização de adultos no recém-criado Movimento de Cultura Popular (MCP) – lançado no dia 13 de maio, data da Abolição da Escravidão, tinha sua sede no Sítio da Trindade, antigo Arraial do Bom Jesus, localizado no bairro recifense de Casa Amarela, próximo de onde nasceu Paulo Freire. Suas atividades artísticas, culturais e educativas eram orientadas para conscientizar politicamente a população através da alfabetização e educação de base.

“No final de 1962, já contava com quase 20.000 alunos divididos em mais de 600 turmas, distribuídos entre 200 escolas isoladas e grupos escolares; uma rede de escolas radiofônicas; um centro de artes plásticas e artesanato, com cursos de cerâmica, tapeçaria, tecelagem, cestaria, gravura e escultura; mais de 450 professores e 174 monitores de Ensino Fundamental, Supletivo e Educação Artística; uma escola para motoristas-mecânicos; cinco praças de cultura, com bibliotecas, cinema, teatro, música, teleclube, orientação pedagógica, recreação e educação física; o Centro de Cultura Dona Olegarinha, no Poço da Panela, que, em parceria com a Paróquia de Casa Forte, oferecia cursos de corte e costura, alfabetização e educação de base; círculos de cultura; uma galeria de arte (a Galeria de Arte do Recife)”, informa o site da Fundação Joaquim Nabuco.

No MCP, Paulo observou que algumas discussões fluíam quando eram apresentados cartazes, desenhos ou slides, ou com a presença de especialistas convidados. “Pensou que poderia desenvolver algo semelhante também para a alfabetização; estudava, lia materiais diversos, conversava com Elza, aproveitando a sua experiência como professora primária e alfabetizadora”, escreve o pesquisador e doutor em História e Filosofia da Educação pela USP, Sérgio Haddad, em O educador – Um perfil de Paulo Freire (Todavia, 2019).

Além da experiência adquirida no Sesi, a inspiração definitiva de Paulo Freire para o método de alfabetização surgiu em um passeio de carro com o filho caçula, Lutgardes, que tinha dois anos. O garoto, ao avistar uma propaganda na rua, gritou “Nescau!”e cantou o jingle. Com isso, Freire teve a ideia de explorar a relação entre som e imagem, abrangendo a experiência do próprio aluno no processo de aprendizagem da leitura e da escrita.

 “Produziu imagens sobre os assuntos; depois, definiu as palavras que seriam colocadas junto das imagens, como testara com Maria (uma senhora analfabeta). Por exemplo, ao pensar em um tema relativo às condições de trabalho de um grupo de pedreiros, definiu que usaria a projeção da imagem de um tijolo, embaixo a palavra tijolo escrita. O grupo discutiria a temática a partir de perguntas feitas pelos coordenadores de ensino: ‘O que vocês estão vendo? Para que serve o tijolo? Quem trabalha com o tijolo? Quais as condições de trabalho do pedreiro ou do servente?’ O interesse pelo debate levaria o educando a ler a palavra tijolo. Em um segundo momento a palavra seria apresentada em pedaços: ti-jo-lo; na sequência, as imagens se repetiriam com a ausência de uma ou outra sílaba. Finalmente, as famílias das sílabas seriam apresentadas: ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-lo-lu. A partir da apresentação das famílias silábicas, os alunos seriam convidados a formar novas palavras com os pedaços das famílias, como tatu, tito, lulu etc.”, descreve Sérgio Haddad, no livro.

“No MCP, houve o levantamento da situação educacional. E tomaram um susto com a quantidade de crianças sem escola. E aí, na área da educação, começou simultaneamente a discutir que o problema também era de educação de adultos”, relembra a pedagoga Silke Weber, doutora em Sociologia pela Université René Descartes, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e ex-secretária de Educação de Pernambuco (1987/1990 e 1995/1998).

Quando era universitária, Silke participou do MCP como voluntária e, depois, como bolsista. “O MCP organizou e mobilizou essa efervescência cultural na cidade, sobretudo com a visibilidade às expressões culturais populares. Tinha o lado educativo. Havia aulas sobre as apresentações artísticas. Na época, havia um debate internacional a respeito da educação de adultos. Na Unesco, também. (Paul) Lengrand era um dos autores que trabalhava a questão de educação de adultos”, contextualiza.

A primeira experiência de Paulo Freire com a metodologia foi feita no Centro de Cultura Dona Olegarinha, no Poço da Panela, no Recife, junto com Elza e uma sobrinha, Adozinda. “Eram apenas cinco pessoas, duas acabaram desistindo no processo, mas as três que continuaram mostraram resultados surpreendentes. Ao conversar sobre os frutos dessa primeira tentativa, Paulo e Elza perceberam que o melhor seria não definir os temas antecipadamente, mas deixá-los surgir da observação do grupo sobre a própria realidade. Essa primeira ação no Poço da Panela marcou definitivamente o educador. Por muitos anos falaria dela como a primeira experiência de alfabetização com o que viria a ser chamado de Método Paulo Freire de Alfabetização”, escreveu Haddad. Paulo Freire era contra o que chamava de “educação bancária” (em que o aluno é visto como uma conta de banco a ser preenchida com os “depósitos” do professor).

Em 1962, o educador se torna o primeiro diretor do Serviço de Extensão Cultural (SEC), da Universidade do Recife, dando sequência à experiência de educação de adultos, antes desenvolvida no MCP. No SEC, ele e sua equipe passaram a testar, aprimorar e sistematizar a metodologia de alfabetização de adultos em diversas experiências. Ele e o grupo assessoraram a Campanha de Educação Popular da Paraíba (Ceplar), criada em João Pessoa, por universitários e profissionais recém-formados para a alfabetização de adultos.

Após o lançamento do MCP em 1960, no ano seguinte, várias iniciativas reforçaram o contexto favorável a uma alfabetização de adultos. Houve, no Rio Grande do Norte, o lançamento da campanha De pé no chão também se aprende a ler. A Igreja Católica fundou o Movimento de Educação de Base (MEB), em uma parceria do governo federal (Decreto 50.370/61) com a CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil). Inspirada no MCP, a União Nacional dos Estudantes (UNE) cria o Centro Popular de Cultura (CPC), promovendo uma arte popular engajada na educação. “A alfabetização era um compromisso político e social de alguns. Era um momento de alta efervescência política. Conheci Paulo Freire por causa do MCP”, conta o advogado Marcos Guerra, ex-secretário de Educação do Rio Grande do Norte.

Em 1963, Marcos era estudante de Direito, presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE-RN) e se tornou líder dos monitores de Paulo Freire no histórico projeto de alfabetização de Angicos, município situado a 175 quilômetros de Natal e que tinha uma taxa altíssima de analfabetos, 75% de sua população de 13 mil habitantes. No município, Freire realizou sua mais marcante experiência, desenvolvida entre 18 de janeiro e 2 de abril de 1963, quando mais de 300 moradores, a maioria trabalhadores rurais, foram alfabetizados em 40 horas, no projeto que ficou conhecido como As 40 horas de Angicos.

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“Passaram umas pessoas na cidade avisando que ia ter essas aulas. Saíram convidando os moradores. Eu me interessei e fui”, lembra Valdice Ivanete da Costa Santos, hoje com 72 anos, uma das ex-alunas de Angicos. “Minha mãe não queria que eu fosse. Mas eu tinha vontade de aprender, que eu não sabia. Tinha 16 anos e não sabia ler. Aí fui para as aulas. Eu morava no sítio. Não trabalhava nem estudava. Não tinha escola próxima. Minha mãe e meu pai não quiseram. Eles eram analfabetos, mas não quiseram ir. Disseram que essas aulas vinham para carregar as pessoas. Diziam, na cidade, que era o comunismo que vinha para carregar o povo. Meus pais, com medo, não queriam deixar a gente ir, eu e minha irmã mais velha. Mas minha mãe acabou deixando. A pessoa sem saber ler não é nada.”

Naquela época, não havia energia elétrica em Angicos. “As aulas eram com candeeiro, vela, farol de carro. Eles passavam o projetor na parede e a gente estudava as palavras por ali. Não achei muito difícil, não. Minha professora, chamada Valquíria, era muito dedicada. Tinha muito carinho pelos alunos. As aulas nunca saíram da minha memória. Depois entrei numa escola e estudei até a quinta série. Mas minha mãe não quis mais. Me arrependo demais de não ter continuado a estudar. Dou conselho aos meus filhos, porque só tem uma que se formou. E tem uma neta agora. Mas os outros começaram a trabalhar como motorista, pedreiro. Não quiseram estudar. Tenho sete filhos. Um deles, adotivo. Quando ele ia para a aula, eu tinha o maior prazer, parecia que era eu que ia. Ele está com 22 anos. Não quis mais estudar. Estudou até o primário. Tirou a carteira de motorista”, lamenta Valdice.

“Aprender a ler me ajudou a tirar o título, votar, escrever carta, fazer meu nome, ler alguma coisa. Agradeço a Paulo Freire, que trouxe esses professores para cá. Hoje leio a Bíblia, vou para a igreja, sou evangélica, eu sei o Zap (WhatsApp), tenho Face, tudo isso eu sei. Agradeço primeiramente a Deus, e segundo a Paulo Freire. Se não fosse isso, eu não tinha estudado. Ainda hoje tenho vontade de estudar, queria que voltasse aquelas aulas de Paulo Freire pra estudar. Ia voltar a estudar com 72 anos. Pra mim foi tudo muito bom. Não esqueço nunca mais. E acho bom quando me convidam pra dar um depoimento, porque lembro ainda mais”, afirma Valdice.

No diário A experiência de Angicos, redigido pelos monitores e que retratava o dia a dia daquelas aulas em 1963, um registro especial narra um episódio que aconteceu naquela cidade, envolvendo um trabalhador que queria se livrar da dívida do barracão (“sistema de barracão” ou “escravidão por dívida”, em que o fiado da compra feita no barracão virava uma dívida impagável para o trabalhador, que permanecia, assim, com vínculo forçado ao patrão): “Realçamos a importância de aprender a ler. Um amigo de Francisco Dantas, participante da turma de Edilson, contou que trabalha em uma determinada fazenda; conseguindo juntar certa importância, mesmo com a ação do barracão do patrão (milagre), pediu sua conta, tinha ainda este direito. O patrão fez e mandou que ele levasse uma carta ao pagador. No caminho, ele abriu e leu a carta que mandava que lhe desse uma surra etc. Fez outra e recebeu o dinheiro. Se não soubesse ler, que teria acontecido?”

Após quase três meses de curso, em 2 de abril de 1963, a aula de encerramento teve a presença de várias autoridades. Dentre elas, o presidente da República, João Goulart. Na ocasião, foram entregues cartas dos alunos ao chefe do executivo. Uma delas era de Francisca de Andrade. Ela escreveu: “Senho Presidenti, e neste momento que pego no meu lapis para lhi comunicar as minhas nesesidade. Agora mesmo não sou maça sou povo e posso exigi meus direito. Senho presidenti a gente tem percisão de muita coisa como: reforma agária Escola e que o senho bote as leis da constituição pra fora. tenho duas filas pra edocar e não tenho recuso poriço peço ao senho bouça di estudo pra que elas não cresam como eu cresi”.

Jango, em um trecho de seu longo discurso, ressaltou: “Desejo que centenas destes cursos se espalhem pelo território brasileiro, para que, num futuro próximo, todos os nossos patrícios, todas as nossas patrícias e, especialmente, os que estão mais à margem da civilização, aqueles que vivem mais longe e são mais pobres, possam também receber este benefício mínimo, que é o direito, também, de participar e de se integrar na vida da Nação (…). Este povo, quando tomar conhecimento das letras e depois delas das leis da nossa Pátria, há de se integrar ao País, na luta extraordinária que todos juntos devemos realizar pela emancipação econômica da nossa Pátria, para que não se assista a espetáculos de tanto contraste social e de tanta miséria em tantas regiões da nossa Pátria”.

Após o discurso, o aluno Antonio Ferreira pediu licença para falar, quebrando, sem saber, o protocolo de que não se discursa depois do presidente. Mas Jango contemporizou: “Pois não, pode falar”. E o aluno disse: “Em outra hora, há poucos dias, ninguém não sabia ler, não sabia de letras algumas, como eu era um que não sabia; só sabia o que era um ‘o’, que era que nem a boca da panela ou o ‘a’, que nem um ganchinho de pau. E hoje em dia, graças a Deus e meus professores, já assino o meu nome e leio algumas coisas (…). E peço a sua Majestade, que é a pessoa maior que nós enxerguemos no Brasil, é o presidente da República, qualquer coisa, ouviu, peço que continue o curso de aula para nós todos, não tão somente no Rio Grande do Norte, como em todos os lugares por aí que tem necessidade (…) Naquele tempo anterior, veio o Presidente Getúlio Vargas matar a fome da barriga, que é uma doença fácil de curar. Agora, na época atual, veio o nosso presidente João Goulart matar precisão da cabeça que o pessoal todo tem necessidade de aprender”.

Empolgados com o resultado positivo do projeto, alfabetizados, alfabetizadores, Paulo Freire, demais autoridades presentes e Jango não perceberam o perigo que também impregnava o ar daquele ambiente. Na cerimônia, estava presente o então comandante da 10a Região Militar, o general Castelo Branco, a observar tudo. Ao assistir a todos os discursos, voltou-se para o secretário de Educação: “O senhor tem consciência que está criando cascavel no Nordeste?”. O secretário riu e respondeu: “Só não sei o calcanhar de quem ela vai morder”. No jantar oferecido pelo governador Miguel Arraes no Palácio das Princesas, no Recife, Castelo Branco disse a Paulo Freire: “Eu sempre soube que o senhor era subversivo. Mas eu não tinha prova. Agora tenho”.

A ironia histórica é que o projeto de alfabetização de Angicos foi uma das ações voltadas à educação, saúde e habitação financiadas com verbas do programa Aliança para o Progresso, uma política de boa vizinhança do governo dos Estados Unidos nos países pobres da América Latina, para propagandear os ideais capitalistas, em meio à disputa ideológica com a União Soviética, que já financiava Cuba durante a Guerra Fria.

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Com o sucesso do trabalho realizado em Angicos, a experiência foi levada para diversas cidades do país e Paulo Freire recebeu convite do então ministro da educação do governo João Goulart, Paulo de Tarso, que atendeu sugestão de Darcy Ribeiro e chamou o educador pernambucano para assumir o cargo de coordenador do Plano Nacional de Alfabetização (PNA). Freire empregaria sua metodologia através de mais de 20 mil círculos de cultura pelo país. “Na época, analfabetos não podiam votar. A perspectiva era alfabetizar 5 milhões de pessoas (em 2 anos). Então, o programa botaria, do dia para a noite, 5 milhões de novos eleitores, os quais você não sabia em quem iam votar. Mas a probabilidade grande é que votariam naqueles que promoveram a educação deles”, avalia Silke Weber.

O jornal O Estado de S. Paulo, no dia 8 de dezembro de 1963, publicou um editorial com o título Alfabetizar ou politizar?, no qual atacava o Plano Nacional de Alfabetização. Em outro editorial, de 21 de dezembro, o mesmo veículo de comunicação atacou diretamente Paulo Freire, com o título Método nazista. Criado em janeiro de 1964, o Plano, que seria lançado no dia 13 de maio (também como o MCP), foi extinto pela ditadura militar no dia 2 de abril, exatamente um ano após a solenidade de formatura dos alunos de Angicos.

Castelo Branco foi empossado como primeiro presidente da ditadura e Paulo Freire foi preso por dois períodos entre junho e setembro de 1964, passando ao todo 70 dias na prisão. No inquérito policial sobre o educador, estava escrito: “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos. Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização dos mesmos. É um criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”.

Algo tão delirante quanto os ataques que o educador recebe hoje nas redes sociais. Paulo Freire seria mais um socialista cristão, que influenciou a Teologia da Libertação, tendência progressista da Igreja Católica. “O que o relatório quis provar era como se ele fosse um charlatão e um cara perigoso, que estava a serviço do comunismo internacional”, afirma Sérgio Haddad, em entrevista à Continente.

A Embaixada da Bolívia foi a única que o aceitou como refugiado político. Em setembro de 1964, com 43 anos, Paulo Freire partiu para a Bolívia apenas com a roupa do corpo, a carteira de identidade, incertezas e a bagagem de quem começava uma carreira brilhante. Lá, passou pouco tempo devido à altitude de La Paz e ao golpe de Estado que derrubou o governo de Victor Paz Estenssoro, em 4 de novembro de 1964.

Naquele mesmo mês, Freire seguiu para Santiago, no Chile, onde trabalhou com a educação de camponeses no “método psicossocial”, como ficou conhecido por lá. Enquanto isso, em 1967, no Brasil, os militares criaram o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), objetivando diminuir os níveis de analfabetismo entre os adultos e usando alguns elementos da metodologia freiriana. “Muita gente que trabalhou nos círculos de cultura trabalhou no Mobral. Então evidentemente teve uma influência velada de Paulo Freire no caminho do Mobral. Aquela influência era muito forte, não dava para apagar”, observa Silke.

Ex-integrante do MCP, a professora se tornou amiga de Paulo Freire. Ela não se encontrava no Brasil quando houve o golpe militar. Estava na França desde 1963, fazendo mestrado. Trocava correspondências com ele. Numa delas, sem saber, acabou por contribuir indiretamente com a concepção do mais famoso livro do educador. “Fico muito contente que fui a pessoa, junto com Almeri Bezerra de Melo, que mandou para Paulo Freire tanto Franz Fanon como Albert Memmi. Na França, li esses livros e fiquei tão impactada, que eu disse: ‘Paulo tem que ler, porque é a cara dele’. E tem uma influência grande na forma de refletir a Pedagogia do oprimido”, relembra.

“Como um dos precursores da problematização da cultura no campo educacional, no Brasil, Freire, ao sistematizar a Pedagogia do oprimido (1974), acolhe argumentos das análises pós-colonialistas de Franz Fanon (Os condenados da terra, 1965) e de Albert Memmi (The colonizer and the colonized, 1967), ao mesmo tempo em que, ele mesmo, vai desenvolvendo uma reflexão na qual está presente a sua preocupação com os processos de dominação colonial inclusivamente no campo da educação. Essa questão é ampliada e desenvolvida por Freire quando no exílio, e em particular ao assessorar programas educativos em países africanos em processo de reconstrução das suas nacionalidades após longos períodos como colônias europeias”, escreve Rosângela Tenório de Carvalho, no artigo Estudos culturais: convergências entre os estudos pós-colonialistas e a análise do discurso na pesquisa social, de 2014.

No Chile, Paulo Freire concebeu seu livro mais famoso em 1968 (somente publicado no Brasil em 1974) – nesse mesmo ano, no Brasil, no dia 28 de março, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Júnior foi morto com um tiro no peito pela polícia, durante protesto contra o aumento do preço do bandejão do Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro. Os desdobramentos levaram, em 26 de junho, à realização da Passeata dos Cem Mil, inspirada nos protestos de maio de 1968. A resposta dos militares foi mais dura em 13 de dezembro de 1968, com o decreto do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), que fechou o Congresso, suspendeu as liberdades individuais, eliminou o equilíbrio entre os poderes e deu atribuições excepcionais ao presidente da República.

Para tornar a “escola um aparelho ideológico do Estado” (Louis Althusser), no ano seguinte, o governo militar criou a disciplina Educação Moral e Cívica, que seria obrigatória em todos os níveis da Educação Brasileira, assim como o curso de Organização Social e Política Brasileira (OSPB). No Ensino Superior, foi implementada a disciplina Estudos de Problemas Brasileiros.

Paulo ficou no Chile até abril de 1969, quando foi convidado para lecionar nos Estados Unidos, onde passou 10 meses em Harvard, ficando até fevereiro de 1970. Depois, trabalhou no Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, Suíça, entre fevereiro de 1970 e março de 1980. “Para mim, o exílio foi profundamente pedagógico. Quando, exilado, tomei distância do Brasil, comecei a compreender-me e a compreendê-lo melhor”, disse em conversa com Frei Betto, registrada no livro Essa escola chamada vida (1988).

Ao lado de outros brasileiros exilados, fundou o Instituto de Ação Cultural (Idac), cujo objetivo era prestar serviços educativos, especialmente aos países do Terceiro Mundo que lutavam por sua independência. Entre 1975 e 1980, trabalhou na Guiné-Bissau, em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, em educação decolonial. Também viajou a trabalho para países dos continentes asiático, europeu, americano e da Oceania. Tudo isso sem passaporte. Apenas com salvo-conduto.

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