Ensaio

Carta ao pai ausente

No mês em que se comemora o Dia dos Pais, uma reflexão sobre a ausência paterna

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO
ILUSTRAÇÕES PEDRO LUIS

02 de Agosto de 2021

Bordado e colagem Pedro Luis

[conteúdo na íntegra | ed. 248 | agosto de 2021]

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MiDocePipoquita, a saudade de vocês não quer me deixar em paz. Adorocês. The Golden Daddy. Ou ElPapito D’Oro.
(de uma certa figura paterna) 

O dia ficou estranho quando as palavras acima saltitaram nas notificações do celular de Tarsila. Tão estranho como aquele da partida e agora das mensagens constantes enviadas pelo seu remetente, o pai. Era um dia tão desconhecido quanto ele, um dia sem data. Alguma de 2020, quem sabe, ou seria aquela dos anos 1980? As malas prontas, forradas pelo tecido dos que se fazem subtrair, do pai saindo de casa e deixando suas três filhas, incluindo a pequena Tarsila (a “Pipoquita”), com a mãe e voltando à terra natal, a mais de mil quilômetros dali. A caçula de quatro anos, que andava pelos cômodos saltitando mais do que milho de pipoca em panela quente, não entendeu aquela cena muito bem, mas suspeitamos de terem os joelhos da menina-pulante parado de fazer seu movimento habitual, juntando-se no sofá da sala onde ele não sentaria mais. 

***

Alô, Almir? Sabe quem tá falando? Aqui é Mário, seu pai. Estou na praça com seu tio. Quero te ver.
(uma ligação após 18 anos)

Muito antes de o telefone tocar, Almir era um bebê de colo e Mário tinha feito uma aparição como essa, repentina na vida do filho que nunca teve seu sobrenome. Sem registro, sem convivência e sem que ninguém se desse conta, pegou o menino e levou para passear. Sua vasta inexperiência somou-se à bebida e Almir caiu da cacunda de Mário, batendo a cabeça no chão. Talvez ele nem saiba, mas seu filho passou a infância fazendo eletroencefalograma. Por sorte, o bebê Almir ficou bem e já estava ganhando outro pai, seu vodrasto materno, a quem chamaria de painho toda a vida. Dezoito anos depois, o toque do telefone, um aparelho emendando fios cortados há quase duas décadas. “Vó, Mário me ligou, quer me ver na praça”, disse Almir, após a ligação daquele que dizia ser seu pai. “Cuidado”, respondeu ela. E foi assim que o então adolescente saiu de mãos suando ao terceiro ou quarto encontro de sua vida com seu pai biológico. 

***

Feliz aniversário.
(de um nome aparecendo no Facebook) 

Ludmila lembra o dia porque era também o do seu nascimento. Lembra o dia, mas não o ano nem a fisionomia daquela pessoa que recorda ter encontrado pessoalmente, pela primeira e última vez, ao ouvir a mãe dizendo “Este é o seu pai”. Era 2011 e tinha seis anos? Assim diz sua vaga memória. Agora ela tem um perfil no Facebook e foi lá que apareceu, num dia oito de maio, a mensagem acima contendo 16 letras, a mesma quantidade de anos que os separam hoje desde a fecundação. “Feliz aniversário”, assinado: o ilustre desconhecido, seu pai. Pelo Facebook, Ludmila também ficou sabendo que tinha uma irmã um pouco mais velha morando em Petrolina. Decidiram se conhecer. E foi aí que, no aeroporto do Recife, a jovem foi recebida por outra desconhecida, a sua avó paterna. Subiu com ela no avião, também pela primeira vez.

***

Nem vamos longe e já testemunhamos histórias assim, na vizinhança, de personagens da vida real. Ao longo da minha existência privilegiada ao lado de um pai, me reconheci muitas vezes exceção – mesmo ele separado da minha mãe desde os meus três – entre narrativas comuns como as de Tarsila, Almir, Ludmila e outras que conheceremos a seguir. No entanto, e talvez justamente por isso, essa sorte não me deixa numa zona de conforto e me faz refletir sobre querer ser mãe, perto dos 40, em um contexto com esse repertório social. Exemplos assim, cedidos generosamente para este texto por pessoas próximas ou distantes (algumas com nomes aqui trocados), me deixam inquieta, me sensibilizam e compõem o meu – e provavelmente o seu – jardim de convivências.

Há tempos venho acumulando um conjunto de histórias de pais ausentes e mães-solo que me chegam por todos os lados, sentidos e formas, seja pela vida ou pela arte. São casos que me fazem também pensar sobre o que somos como povo, país e estrutura familiar tradicional, de base cristã-ocidental. Seria essa a verdadeira face da família tradicional brasileira? É preciso considerar outros caminhos possíveis para a nossa história e identidade. Uma reflexão que reclama ainda novos papéis, reconhecimentos, reconfigurações e, principalmente, saídas para esta que é também – ou talvez principalmente – uma questão coletiva.

Parece evidente que somos, no Brasil, uma nação tecida, em parte considerável, pelas tramas de uma ficção chamada paternidade. Uma nação de milhões de pais ausentes que querem o título de heróis, mas semeiam famílias que não cultivam. Um país-gatilho, para usar a palavra da vez, aplicada a situações deflagradoras de traumas emocionais, físicos, psíquicos, senão ainda espirituais (cármicos). Uma conta individual e social.

Os vazios da figura paterna estão nas casas, nos apartamentos, nas esquinas de farmácia, nas rodas de amigos, nos hospitais, nas salas de aula, nos podcasts, nos divãs psicanalíticos, nos consultórios de terapia, no campo, na cidade. Inventariamos a existência de famílias monoparentais nos processos jurídicos e nos cartórios brasileiros, repletos de registros de mães-solo. Mesmo pela omissão, lá está a história de alguém que, após o sexo livre e desprotegido, se negou a assumir as consequências do próprio ato. Ou deixou para elas, as mães, a tarefa de uma vida inteira (já pensou o quanto deste país vem desse esforço invisível, muitas vezes subestimado socialmente?). Uma amiga estudiosa do assunto diria que “é um capital social fundamental para o desenvolvimento humano sistematicamente invisibilizado pela sociedade”.

Os números não mentem, ao contrário, podem subnotificar uma realidade que supera ficções: há um ano, nas vésperas do Dia dos Pais, a Associação Nacional dos Registradores Civis de Pessoas Naturais (Arpen) contabilizava, só no primeiro semestre de 2020, 80.904 vidas registradas em território nacional apenas com o nome da mãe. O Conselho Nacional de Justiça, por seu turno, apontava, com base no Censo Escolar de 2011, um total de mais de 5,5 milhões de crianças brasileiras, afora os incontáveis adolescentes e adultos, sem o nome do genitor na certidão de nascimento. Daí porque órgãos de justiça realizam campanhas e mutirões pelo país para encontrar e incluir os nomes dos pais no primeiro documento que atesta nossa existência no mundo, nossa cidadania. “Encontre seu pai aqui”, dizia um panfleto nas ruas estampando um rosto em sinal de interrogação.

Recentemente, a poeta e agricultora assentada Quitéria, fonte da nossa reportagem de junho, me procurou para falar de outro assunto: o paradeiro do seu pai. Tamanha foi a minha surpresa ao acordar com a seguinte mensagem: “Minha cara Olívia, me ajuda a encontrar meu pai. Você como jornalista pode me ajudar?”. E assim ela me explicou que o pai foi embora quando ela ainda estava na barriga da mãe, há mais de 38 anos. Primeiro para a Bahia, quando ainda tinha notícias dele através de um tio; depois, para Suzano, em São Paulo, quando perdeu total contato. “Desde que me entendi de gente sinto uma enorme vontade de encontrar ele, mas minhas condições são poucas, tenho tanta vontade de encontrá-lo que às vezes até sonho. O nome dele é José Fortunato da Cunha, filho de Percilia Artolina de Maria e Antônio Fortunato da Cunha. Ele deixou minha mãe com oito filhos e arrumou outra família e teve oito filhos novamente.”

Não estamos falando aqui de desaparecimento por morte, tampouco da opção de mães pela reprodução independente ou assistida, sejam sozinhas ou ao lado de suas companheiras, o que pode representar uma parcela desses números de registros sem pai. Referimo-nos aqui a uma questão histórica do patriarcado moderno, da heterossexualidade, de uma maioria de registros a nos revelar o traço endêmico de uma cultura machista de descarte, abandono e negligência deliberada; uma cultura na qual “todo mundo diz como se fazem bebês, mas ninguém diz como se fazem papais”.

A ótima frase de síntese é do artista afro-belga Stromae, na sua música Papaoutai (em tradução literal: “Papai, onde está você?”). A faixa, cantada em francês, é representativa no questionamento dessas ausências e na reflexão sobre o modelo de família patriarcal que, para além do discurso, não costuma ser sustentado pelos próprios “patriarcas” – seja em suas “natiausências”, separações ou ausências nas presenças, uma camada provavelmente ainda mais comum nas histórias familiares tradicionais.

Com Papaoutai, Stromae nos evidencia também uma realidade análoga à brasileira em outra pátria (este substantivo feminino de etimologia e sentido tão masculinos para aludir à terra natal, que seu uso é uma ironia pronta, para não dizer uma vergonha). Melhor seria falar “mátria”, apropriando-se do neologismo poético de Caetano Veloso na música Língua (“A língua é minha Pátria/ eu não tenho Pátria: tenho mátria/ Eu quero frátria”). Em Papaoutai, o músico de pai ausente nos lega uma canção-tema, de batidas dançantes e teor autobiográfico:

Diga-me de onde ele é,
Finalmente, saberei para onde estou indo
Mamãe diz que quando parece bem,
Sempre acabamos encontrando
Ela diz que ele nunca está longe
Que ele vai trabalhar com muita frequência
Mamãe diz que “trabalhar é bom”
Muito melhor do que estar em más companhias!
Não é verdade? 

Lembrando o ditado popular “antes só do que mal-acompanhado”, ao qual o Stromae parece evocar nas entrelinhas, damos um passo em direção a uma das complexidades da questão: histórias em que o pai distante pode causar menos estrago do que se perto estivesse. É o caso de Tarsila, com o qual iniciamos este ensaio. No seu enredo, ouvimos o relato de uma filha que teve uma certa presença paterna, mesmo parca e longínqua, mas que prefere mantê-la em distância regulamentar. Diz nunca ter conhecido verdadeiramente o pai e, quando teve essa chance, foi ouvindo frases machistas que sempre abominou. Em suma, uma presença incômoda, tóxica. “Lembro de ouvir na minha adolescência, quando eu estava usando um short cotton, ele comentando com alguém: ‘Essa daí vai fazer muito homem feliz’.” Respiremos. Além disso, falava o tempo todo em sexo e mulheres, e não fazia questão alguma de esconder das filhas sua coleção de filmes pornôs em VHS.

A paternidade dele, segundo ela, se resumiu à pensão, aos presentes e, hoje, às mensagens de celular que Tarsila evita responder. Se pudesse escrever uma carta ao pai, como o fez Franz Kafka, é possível que ela, hoje aos 37, redigisse as seguintes palavras:

O senhor é um criminoso que não pagou pelo crime que cometeu.
Eu sei a real história de sua separação com minha mãe, ela me contou recentemente: você estuprou a minha prima que cuidava da gente.
Ouvi também a história de que o senhor foi estuprado quando criança pelo seu irmão e outros meninos da rua.
Deve ter sido horrível, mas eu não autorizo que o senhor se sente na cadeira da paternidade. O senhor me colocou no mundo, mas a sua história não determina a minha. 

Valendo-se das peças que juntou na vida e com ajuda da terapia, Tarsila sente que, em relação ao “El Papito D’Oro”, precisa fazer justiça sozinha, pela sua consciência e atitude. Por enquanto, será assim.

A história de Ludmila vai por outro caminho, tendo a mãe na dianteira da justiça quando o pai biológico não quis arcar com os custos da pensão nem reconhecer a filha. O clássico caso da vara da família brasileira. Com a causa ganha, mãe e filha passaram a ter um canal mensal exclusivo com o pai, o da conta bancária mesmo. O nome dele passou a constar também na certidão de nascimento de Ludmila, mas isso nem era o mais importante para ela diante do apoio afetivo e moral da mãe e da ausência maior do lado de lá.

Como na história de Almir, apresentada lá no começo, Ludmila teve o avô materno ocupando o posto da paternidade afetiva e presente (no caso de Almir, ele também fez questão de registrá-lo). Acompanhava a neta em vários momentos, como em suas competições de atletismo – esporte que o pai biológico, aliás, também praticava na época, mas quis comparecer, ausente com todas as letras.

Esse aspecto biográfico de Almir e Ludmila encontra semelhanças com a jornada de Bucky Cantor, protagonista do último romance de Philip Roth, escritor norte-americano falecido em 2018. Em Nêmesis (Companhia das Letras, 2021), acompanhamos a vida do professor de educação física cuja mãe morre no parto e o pai é, em seguida, preso por “roubar da firma a fim de cobrir as dívidas de jogo”.

Mesmo solto dois anos depois, ele jamais torna a procurar o filho e Bucky também passa a ter no avô materno sua maior referência familiar masculina. Ele cria o neto ao lado da esposa e avó de Bucky, num bairro periférico de Newark. No tempo do livro, a cidade vive sob a ameaça de uma terrível epidemia de poliomielite, a acometer os meninos do pátio do professor Cantor e a perturbar a crença do jovem judeu no “Pai todo poderoso”. Isso em pleno verão de 1944, enquanto os soldados dos Estados Unidos lutam na Segunda Guerra Mundial. O avô de Bucky está agora em outro plano. Como Roth e os senhores pais de criação de Almir e Ludmila.

Li o derradeiro romance do autor recentemente, sem saber que o tema da paternidade ausente atravessava a história – como entrecruza a nossa a todo instante. Por coincidência, ou reincidência mesmo, havia sido a questão central – não é o caso de Nêmesis (nome da deusa da vingança) – de um livro que lera logo antes, O céu da meia-noite (Morro Branco, 2021), já adaptado ao cinema. Nas páginas da jovem escritora norte-americana Lily Brooks-Dalton, acompanhamos a trama de dois cientistas: Augustine e Sullivan (Sully), cujas histórias correm em paralelo, em capítulos alternados. Eles não se conhecem e estão em missões isoladas de trabalho. O primeiro, um veterano pesquisador estelar, decide ficar indefinidamente numa base de observação do céu no Ártico, quando toda a equipe é levada de volta a uma “civilização” supostamente em vias de extinção. A segunda, uma astronauta que sacrificou a própria maternidade para integrar uma longa missão espacial até Júpiter, está numa nave acometida pela perda de comunicação com a Terra. Como na escuridão do inverno ártico, a tripulação em absoluto isolamento não sabe o que aconteceu.

O que Augustine e Sully também não sabem é que, afora as tentativas constantes de obter resposta de alguém pelo rádio, eles possuem outro ponto em comum na vida: a mãe de Sully, Jean Sullivan. Augustine fora colega de trabalho da cientista e, além das pesquisas, compartilharam uma breve vida amorosa que culminou numa gravidez não planejada. Diante da notícia, o esclarecido e bem-sucedido cientista opta por fugir da situação, seguindo a conhecida rota masculina da omissão. Como ficamos sabendo pelo ponto de vista de Augustine, a criatura que estava por nascer poderia atrapalhar sua liberdade de se ater mais ao céu do que às coisas terrestres. Enquanto isso, mãe e filha se mudam sozinhas para o observatório espacial de Goldstone, na Califórnia, para que Jean pudesse também seguir sua carreira a duras penas. “Sempre tinha sido só as duas e Sully preferia que fosse assim. Não questionava a ausência do pai – não tinha outra referência”, narra a autora no romance.

É neste ponto que a ficção se encontra com os acontecimentos da vida de Roberta, que poderia ver Sully como um espelho de sua própria história, não obstante em outra geolocalização e contexto. A Roberta também não faz falta o que nunca teve, embora saiba da importância da figura paterna, que, no seu caso, ela e a mãe preferem chamar de genitor. Ela credita o seu eixo de sustentação e formação à presença de mulheres fortes, incluindo principalmente a sua mãe, mas também, curiosamente, a avó paterna, que sempre a reconheceu como neta.

A história é digna de livro. Há pouco mais de 40 anos, a mãe de Roberta tentava engravidar do então marido e não conseguia. Não havia jeito certo de gerar uma vida com aquele homem de quem, no fim da relação, ela queria mesmo distância. Literalmente. Por isso, decidiu se mudar para o Rio Grande do Sul, o ponto mais longe que achou no mapa do Brasil em relação a Pernambuco, onde vivia com ele. Ela era servidora pública e sua irmã, da Polícia Federal, resolveu ajudá-la na cidade desconhecida de Porto Alegre através de um colega. E eis que o colega cicerone acabou se tornando uma relação fortuita amorosa e… adivinhem? Ela imediatamente engravidou de Roberta. “Ela foi lá só para me buscar”, é o que conta hoje a agora mãe de Alice e Henrique.

O genitor não só negou a paternidade, como sugeriu que a mãe dela fizesse um aborto. Isso, porém, não aconteceu e sua mãe prontamente retornou grávida ao ponto de partida, o Recife, para enterrar o pai, avô de Roberta. Foi aí onde teve, sozinha, sua única filha.

***

Um dia ou outro, seremos todos papais
E, de repente, teremos desaparecido
Seremos detestáveis?
Seremos admiráveis?
Genitores ou gênios
Me diga: quem dá à luz os irresponsáveis? 

Voltando à música Papaoutai, ponho-me novamente a buscar respostas para a questão da negligência paterna como um traço de nossa cultura. Existem atualmente, no Brasil, mais de 11 milhões de mães cuidando sozinhas de suas crias, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Só isso mais os números de antes, e temos um fato, ou um fardo (57% dessas mães vivem abaixo da linha pobreza, de acordo com pesquisa do Instituto Locomotiva). Mesmo com todo o amor, sabemos o quanto criar humanos é um trabalho imenso.

“Quem dá à luz os irresponsáveis?” Alguém diria “as mulheres”. Não, essa não é uma pergunta para uma resposta pronta e literal. Isso seria injusto, para não dizer cruel frente a uma estrutura machista que coloca no colo das mães e na cabeça do imaginário popular ditados como “quem pariu o Mateus que balance”. Que aspectos estão na motivação da prática do abandono? Covardia? Embaraço? Omissão? Conveniência? Sentimento de impunidade? Aprendizado? A vida é complexa e estou certa de que essas perguntas são o forte da psicanálise, mas não me sinto autorizada a navegar por aí. Que as reflexões sobre o assunto não cessem, pois não podemos negligenciar a questão. Falar do óbvio é importante, desconstruir mitos, mais ainda. É um trabalho para a sociologia também.

Conversando com Roberta, de 40 anos, ela me diz acreditar que os homens lidam com a ideia de família de uma maneira diferente. Conversando com Ludmila, de 16, ela crê que, lentamente, há um caminho de mudança, mas que é preciso educar os filhos para serem pais e para o que significa o abandono de uma vida. Almir, de 38, não acredita que exista homem desconstruído, no máximo em processo. Uma amiga minha diz que a ideia de paternidade é tão abstrata na cabeça do homem que ele só se dá conta quando bota o bebê no colo – caso não corra disso antes.

Opiniões e generalizações à parte, uma vez eu vi uma foto, no Twitter, de um menino ninando um boneco no colo com a legenda: “O que vai ser esse menino quando crescer?”. E, logo abaixo, a resposta: “Um bom pai”. Do que temos medo? A sexualidade masculina parece estar sempre ameaçada pelo fantasma do feminino. Nós, meninas – orientadas socialmente pelo tornar-se mulher desde cedo, para lembrar a eterna Simone de Beauvoir – não fazemos nem dois anos de idade e já estamos arrastando uma bebê maior do que comportamos. Aquele bebezão vem com o kit completo: mamadeira, carrinho, bercinho, babador e achamos o máximo. Não porque é “natural” do instinto feminino e materno, mas porque nos foi ensinado a gostar. Nenhum bebê chora pedindo outro. De inocentes, os adultos não têm nada.

No imaginário social, cabe às mulheres a tarefa de cuidar e fazer a humanidade sobreviver; aos homens, prover. Os papéis são postos e repostos historicamente. “Se fosse uma mãe, estava todo mundo vacinado, tomado banho, pronto pra sair”, dizia outra postagem, neste ano pandêmico. E se fosse um pai? Bem, é um pai de 01, 02, 03 e aqui estamos, com mais de 500 mil a menos. Nunca os xingamentos “filho da puta”, “da mãe” ou da “égua” foram tão descabidos. E se trocássemos por filho do cavalo, do jumento ou do pai ausente? Bem, melhor não seguir estigmatizando filhos e animais. Mas precisamos responsabilizar os (ir)responsáveis.

Até quando mulheres, mães ou filhas, vão carregar a culpa do mundo todinho? Até quando a maternidade será o espelho de uma virgem disposta a todo sacrifício, enquanto um homem é o pai de toda a criação? E seus filhos, o que fazem eles? O excesso de hegemonia masculina, autorizada a ser competitiva, destrutiva e imprudente, gera desequilíbrio. O mundo do Produto Interno Bruto (PIB) esconde o quão importante é o da vida doméstica e afetiva, onde amor, cooperação e solidariedade são condições de sobrevivência – embora às vezes dê defeito.

A intelectual e ativista feminista Silvia Federici dedica uma vida a estudar o trabalho doméstico, de reprodução social da vida, como um projeto muito bem-articulado do capitalismo de opressão às mulheres – mães, em grande parte. Uma labuta de infinitas jornadas não remuneradas, bastante cobrada e útil à manutenção do sistema. Daí porque a autora de Calibã e a bruxa (Elefante, 2017) milita, há décadas, pela existência de um salário para o trabalho de reprodução social, já que o de “produção” ao menos é reconhecido como trabalho. Mesmo com a mudança de cenário – a depender da classe social e do horizonte de divisão mais justa de papéis –, sabemos o quanto essa ainda é uma condição tão imperativa quanto desigual.

“A diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido imposto às mulheres como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza (…)”, escreve Federici, no artigo Um trabalho de amor, publicado no livro O ponto zero da revolução (Elefante, 2019). “No entanto, não existe nada natural em ser dona de casa, tanto que são necessários pelo menos 20 anos de socialização e treinamento diários, realizados por uma mãe não remunerada para preparar a mulher para esse papel, para convencê-la de que crianças e marido são o melhor que ela pode esperar na vida”, ilumina a filósofa italiana.

No documentário O começo da vida (2016), assistimos a uma mãe falar sobre a importância da quantidade, não só da qualidade, na criação de um filho, sobretudo na primeira infância. Da dedicação exclusiva que é fazer alguém crescer física e emocionalmente; moral e eticamente. Alguém que será cidadão um dia, que decidirá “entre tocar fogo ou não num índio” – ou numa travesti. Que escolherá ser pai ou abandonar o filho. Não é pouco.

Quando dividi com uma amiga da Filosofia as ideias deste texto, ela lembrou Axel Honneth. Em Luta por reconhecimento (Ed. 34, 2009), o filósofo e sociólogo alemão analisa o papel das esferas privada e pública na formação moral e ética do indivíduo. “A questão do amor é fundamental na teoria do reconhecimento de Honneth, uma vez que, junto ao direito e à estima social, se configura em uma esfera a partir da qual o ser humano pode alcançar sua dignidade e integridade. Cada esfera do reconhecimento, desde que bem-direcionada, aciona um tipo de autorrelação prática: do amor advém a autoconfiança, do direito o autorrespeito e, da estima social, a autoestima”, resume Letícia Machado Spinelli, em Honneth: A família entre a justiça e o afeto.

Obviamente que esse amor pode vir só da mãe e de outras pessoas que participam da criação de um ser humano. O começo da vida também fala disso. Porém, a sensação que dá é a de que, enquanto a sociedade patriarcal for dominante, a conta do pai ausente seguirá não só frequente, como difícil de fechar, pesando em muitos sentidos. A que custo viveremos assim? Pessoas como Roberta não sentem tanto a ausência paterna, ainda que ela reconheça as consequências dessa lacuna. Mas também sabemos quão dolorosa ou até nefasta pode ser a recusa paterna na vida de um filho. Basta lembrar filmes como o último Coringa (2019), no qual acompanhamos a jornada de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) em direção às trevas da psique, de onde sai decidido a assassinar, entre outras pessoas, o próprio pai biológico (também o de Batman) que rejeitara sua mãe grávida, marcando-a para sempre, pois a violência desse tipo de descaso muitas vezes é dupla.

A arte tem a vocação dos atalhos, para não dizer dos choques. Outra lembrança que me vem nisso tudo é o espetáculo Aquilo que meu olhar guardou para você, do repertório do Magiluth. Nessa dramaturgia construída com os nós do peito, o grupo de teatro recifense põe o público para vivenciar cenas em cima do palco. Uma delas ativa justamente uma história de pai ausente, convidando um homem da plateia para ler uma carta, enquanto escutamos sua voz embargar:

– Esta é uma carta anônima, de um filho anônimo para o senhor, pai anônimo. Não estou escrevendo para falar do meu jeito de ser e, sim, pra te dar uma notícia: o senhor vai ser avô. Não sei como você vai receber essa notícia. (…) Porque talvez você nem chegue a ler essa carta. Vou te falar que estou muito feliz por essa espera. Eu estou esperando um filho e quero te dizer: eu vou ser um pai melhor do que você! Ou melhor, eu vou ser um pai, coisa que você nunca teve coragem de ser. Vou ser um cara que vai tentar ser um verdadeiro super-herói. Vou ensinar ao meu filho como se roda um pião, vou ouvir suas histórias de criança com carinho, sem me importar se verdadeiras ou fantasiosas, vou segurar para lhe dar segurança nas primeiras pedaladas, vou segurar a sua mão quando estiver no hospital com uma gripe forte, vou sair da sala do hospital para chorar escondido (…) vou lhe dar dinheiro pra passagem mesmo sabendo que vai gastar o dinheiro com outra coisa, vou ouvir as desilusões amorosas e ficar ainda mais feliz quando souber que ele vai ser um pai ainda melhor do que eu fui e infinitamente melhor do que você foi. Lamento você não saber o que é ser um pai, mas tive que esperar anos para saber o que é isso!

A história é cumprida; os traumas, diversos. As feridas, precisamos encará-las, transformá-las. Isso exige tempo, cuidado, trabalho e mudança de paradigma; um esforço individual, familiar, coletivo. Isso demanda empatia, a capacidade de sentir com o outro e olhar para ele como parte da gente – pois assim é a vida na Terra. Isso demanda amar, cuidar e proteger, atributo não só das mulheres, mas de quem é vivo. Ainda bem que o mundo está mudando e a parentalidade também. Famílias com duas mães, dois pais, pai e mãe em projetos compartilhados, e ainda mães e pais-solo, tias, avós criando. Mas, enquanto não for superada, a marca do pai ausente será sempre a lembrança profunda de que fomos rejeitados por alguém. Uma sociedade inteira não deve carregar o peso indelével de tantas rejeições. Como dizem no documentário O começo da vida: “se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda”. Que assim seja.

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural com mestrado em Sociologia; editora da Continente Online.
PEDRO LUIS, artista e publicitário que trocou a direção de arte para se dedicar às artes visuais. Desde 2016, encontra no bordado uma maneira de contar a sua própria história. Instagram: @pedroluiss.

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