A alusão a esse ensinamento – de que a divisa do Mosteiro de São Paulo, na Grécia, oferece uma das mais belas e simples formulações: “Se você morrer antes de morrer, você não morrerá quando morrer” – coloca-nos diante de um panorama histórico riquíssimo, através do qual o conhecimento acumulado nas religiões praticadas por muitos povos na Antiguidade poderia ser reconhecido com nitidez na formação espiritual do mundo moderno. E o eixo entre tantas tradições é a cultura grega, em manifestações cujo percurso histórico partiram da Ásia Menor à região que há muitos séculos era conhecida como Magna Graecia (Grande Grécia), ao sul da península itálica.
Embora imenso e, para nossa cultura, cheio de significações, tal pano de fundo é até certo ponto desconhecido, e, segundo o autor, uma das razões para isso é o insulamento dos Estudos Clássicos, cujos postulados se movem lentamente, como se vistos pelos olhos de uma estátua antiga. Com formação nessa área, que engloba o estudo de línguas antigas, como o sânscrito, o grego antigo e o latim, Muraresku, para investigar essa hipótese, promove o raro diálogo dessa disciplina com novos campos da arqueologia, como a arqueoquímica e a arqueobotânica. De modo que o livro se insere nessa fronteira indefinida entre novos e antigos ambientes acadêmicos, pois está justamente no encontro desses departamentos a resposta possível à hipótese da continuidade pagã.
Ao debruçar-se sobre esse tema, em The immortality key, o autor descreve um caminho que, partindo do conhecimento de línguas antigas e narrativas primordiais da humanidade, desemboca na materialidade de um apertado nó na cultura do Ocidente, que, há milênios, nega tanto às substâncias psicotrópicas quanto às mulheres o papel de condutoras de uma poderosa sabedoria ancestral. Entre as muitas encruzilhadas da história sobre as quais o livro caminha, uma delas merece especial atenção, e está localizada no vórtice geográfico que separa modernamente nossas concepções de Ocidente e Oriente.
Lançado em setembro de 2020, o livro de Muraresku ainda não teve tradução no Brasil. Foto: Moshe Zusman/Divulgação
Anterior às fronteiras, portanto, está um tipo de sabedoria experimentada por diferentes civilizações e descrita em suas narrativas canônicas, como o Rig Veda e a Odisseia. Ambas foram produzidas dentro desse ambiente de intenso comércio cultural, e pertencem à mesma raiz linguística, proto-indo-europeia, responsável por incubar quase a metade das línguas faladas até hoje (entre elas, o sânscrito, o grego antigo e o latim). O que essa língua-mãe pode ter carregado, hipótese incontroversa entre filólogos e arqueólogos modernos, é um avançado conhecimento da agricultura e da biotecnologia, no qual residiria a faculdade de manipular os elementos botânico e animal para a produção de diversos elixires (as cervejas e vinhos em suas formas originais), como o védico soma e o grego kukeon (ou kykeon). Este último, em especial, é a peça que Muraresku, seguindo a trilha aberta por Wasson, Hoffman e Ruck, defende como uma das principais articulações entre a Antiguidade e a formação do universo religioso cristão.
No décimo canto da Odisseia, Homero narra a passagem em que Ulisses (ou Odisseu) consegue iludir a feiticeira Circe e salvar parte de sua tripulação que, presa na ilha de Circe, fora por ela transformada em porcos. Ao detalhar o modo como o herói, ajudado pelo deus Hermes, consegue ludibriar a feiticeira oriental, Homero, entre os versos 233 e 236, alude à versão grega desse elixir, o phármakon (palavra grega para droga, da qual se origina nossa ideia de fármaco) obtida por um kukeo (grego para mistura, poção). Essa, mais do que uma pista, é uma sinalização direta ao conjunto de saberes botânicos que Circe representava, e que tinha seu elemento de realização cultural máximo em um importantíssimo ritual da cultura grega, os Mistérios de Elêusis.
Uma vez por ano, de 1500 a.C. até 392 d.C., na primavera equinocial, uma procissão multitudinária partia de Atenas, a 20 quilômetros de distância, até o templo dedicado às deusas Deméter e Perséfone. Ali, celebrava-se a colheita anual, a fertilidade mesma; cria-se que, nesse lugar, Deméter teria entregue ao semideus Triptólemo os grãos para que este, em sua carruagem de serpentes voadoras, distribuísse o conhecimento da agricultura pelo mundo conhecido.
O templo em Elêusis representou, em seu tempo, algo como uma capital espiritual do mundo, para onde acorriam anualmente não só atenienses, mas qualquer pessoa que desejasse ser iniciada em seus mistérios. Por essa natureza secreta, no entanto, seu conteúdo explícito não nos chegou com a clareza das religiões que possuem livros sagrados. Ainda assim, sua realidade e importância cultural são asseguradas pela preeminência de seus iniciados, que, de modos diversos, fizeram menção ao conhecimento dividido em Elêusis.
Iniciados nos Mistérios, Eurípides, Sófocles, Píndaro, Platão, Cícero, Marco Aurélio, entre outros luminares do mundo helênico e romano, todos eles referiram-se a Elêusis como portando a chave de acesso a uma verdade cósmica, que essencialmente revelava a unidade máxima da vida, como a morte não seria o final da jornada humana. Principalmente, todos eles relataram esse saber como parte de uma experiência imediata, física, em que os olhos do espírito eram divinamente abertos, e não somente de um reconhecimento intelectual; e essa atmosfera divina era alcançada pelo consumo ritual de uma bebida, o kukeon.
Dentro do ambiente cerimonial de culto a Deméter e Perséfone, essa poção, algo como uma cerveja primordial, era preparada por sacerdotisas (e somente por sacerdotisas) a partir da combinação de ingredientes de origem vegetal e da delicada manipulação do fungo ergot (encontrado na cevada) – do qual, em 1938, o já citado Albert Hofmann celebremente isolou o LSD, causando o impacto cultural que levaria ao psicodelismo no século passado.
Em uma das versões do mito dessas deusas, contida no Hino homérico a Deméter, conta-se que a deusa dos grãos e da agricultura, saindo em busca de sua filha Perséfone, que fora raptada por Plutão e levada ao mundo dos mortos, ordena que seja erguido em Elêusis um templo em homenagem à sua filha. Ao final do relato, numa apoteose da primavera e da fecundidade da terra, Deméter reencontra Perséfone e presencia o nascimento de seu filho, uma “criança sagrada”, que posteriormente veio a ser identificado na cultura grega como Dionísio, o deus do vinho e do êxtase.
Assim, em Elêusis, as deusas eram reverenciadas de três formas, a filha, a mãe e a avó. E era somente quando Deméter se transformava em avó, ao aproximar-se das forças metafísicas da morte, que a deusa ganhava acesso ao conhecimento e ao poder sobre as plantas. Entrava em cena então a figura prototípica da bruxa, que, inicialmente benévola, viria a ser demonizada e brutalmente combatida pela Inquisição Católica. Muraresku reconstrói historicamente essa transformação na imagem original da bruxa e afirma que tal mudança é, direta e simbolicamente, uma perseguição ao domínio botânico que Deméter, a primeira bruxa, simbolizava.
Tempos depois, quando, no século V a.C., o culto a Dionísio já deixara de ser considerado uma profanação dos saberes eleusinos, a eles fundindo-se e, dessa maneira, criando outro centro irradiador da religiosidade grega, eram ainda as mulheres que detinham a faculdade de ministrar a nova bebida sagrada, o vinho.
Mesmo com essa mudança de ênfase, da cerveja para o vinho (com enormes consequências históricas, como demonstra Muraresku), as mulheres continuaram a ter papel destacado no preparo e no rito dedicado à bebida (o que Eurípides demonstra no enredo d’As bacantes). No caso do culto a Dionísio, de onde surgiram as tragédias, eram, portanto, as bacantes as responsáveis por gerir a produção do vinho sacramental (trimma) que punha a audiência das tragédias em um estado de êxtase compartilhado, no qual a vida política e espiritual dos gregos se amalgamavam em um só espetáculo de civilidade anímica.
Séculos adiante, em 364 d.C., já no horizonte histórico do domínio romano, os Mistérios de Elêusis passaram a ser proibidos, e surpreende encontrar o alerta quase profético de um iniciado nos Mistérios para as consequências espirituais que tal proibição poderia acarretar. Vecio Agorio Pretextato (315-384 d.C.), um aristocrata e hierofante (em grego antigo, literalmente, um sacerdote que revela as coisas sagradas), apela às autoridades imperiais que reconsiderem essa decisão, pois a proibição dos Mistérios – e isto é muito importante – “tornaria a vida invivível” (abiotos), uma vez que, segundo ele, Elêusis era responsável por “manter junta toda a raça humana”.
Muraresku explora como a proibição histórica do culto em Elêusis, essencialmente feminino (no significado e na realização), levou a que o Império Romano, de orientação patriarcal, condenasse a participação destacada das mulheres em rituais religiosos, herança recebida no período seguinte, de formação do catolicismo enquanto religião estatal do Império.
Em The immortality key, fazendo eco a outras autoras e autores, Brian C. Muraresku aprofunda a noção de que a subalternidade do feminino e a perseguição às drogas por parte da tradição católica oficial não são obras do acaso, mas seus elementos centrais de gestão. São a permanência cultural que resulta da proibição ao culto em Elêusis, uma vez que a história do domínio católico sobre o Ocidente se inicia, no século IV, com o apagamento, o ataque e o controle direto sobre a fonte da filosofia grega e de sua mística religiosa.
No fim das contas, Muraresku defende que tanto a extinção de Elêusis quanto a ocultação de sua senha botânico-psicodélica carregam o significado material da desconexão da humanidade com seu elemento natural, representado nas figuras de Deméter e Perséfone. Elêusis, no fundo, era um espaço no qual todas as formas de vida uniam-se na simples e absoluta comunhão, cujo efeito é a percepção de que toda divisão é ilusória – porque nossa consciência é parte indiscernível de tudo quanto é, e qualquer tempo é sempre. Uma lição espiritual encarnada na esperança de uma imortalidade não reduzida à perspectiva do indivíduo, mas do reconhecimento da delicada generosidade da vida em torno da mãe-natureza.
Parece mesmo que a proibição a Elêusis de alguma forma simboliza uma mudança em direção a uma presença predatória da ação humana neste planeta. De modo nada sutil, dá testemunho dessa afirmação o fato de que o local onde fica o templo a Elêusis hoje é rodeado por fábricas de cimento e refinarias de óleo.
DIONÍSIO, JESUS E O VINHO ALUCINÓGENO
Na segunda parte do livro, Muraresku ambienta detalhadamente o horizonte histórico no qual o cristianismo passou de religião perseguida pelo Império Romano a credo oficial do estado, e como, nessa nova configuração, o vinho psicodélico e o papel das mulheres foram escamoteados.
No período que o autor classifica como paleocristianismo, os ritos da fé cristã eram feitos em sigilo, dentro de casas ou de catacumbas. Assim, a disseminação dessa nova religião dependia do seu discreto acolhimento pelo povo de regiões majoritariamente gregas, nas quais Dionísio ainda imperava como autoridade espiritual popular. Por esse motivo, quase todo o Novo Testamento foi escrito em grego, para populações gregas, como atestam claramente os títulos das cartas de São Paulo, endereçadas aos cristãos em cidades gregas, como Corinto, Éfeso, Filipos, Tessalônica etc.
Em seu livro, Muraresku examina a possibilidade de que, seguindo as recomendações de Cristo, esses primeiros cristãos tenham realizado a Eucaristia com o mesmo tipo de vinho psicodélico que, há séculos, os gregos conheciam dos rituais dionisíacos, e que ainda era consumido e exportado na região em que Jesus viveu e realizou seus milagres.
Escrita no mesmo período em que os Evangelhos, a obra De materia medica, de Dioscórides (40-90 d.C.), autor greco-romano que é considerado como o pai da farmacologia, dá testemunho do quanto esse saber botânico na produção de bebidas rituais, como o vinho, era largamente conhecido e difundido nessa parte do mundo. Há ainda muitos outros indícios que a pesquisa de Muraresku apresenta em diversas fontes históricas, mas a própria Bíblia oferece material para sustentar essa afirmação.
No Evangelho escrito por João, as muitas analogias diretas entre o culto a Dionísio (e artefatos culturais que a ele se referem, como a peça de Eurípides) e a história e os ensinamentos de Cristo parecem mesmo indicar um esforço de conciliação da nova fé ao ambiente cultural predominantemente grego.
A começar pelo “dia do presente de Deus” (dies theodosia), no qual é celebrada a aparição de Dionísio (epiphaneia), simbolizada pela transmutação divina da água em vinho. Marca tradicional da religião dionisíaca, somente no Evangelho de João esse é descrito como sendo o primeiro milagre de Cristo. Além desse, o autor relaciona vários dados históricos, arqueológicos e bibliográficos que indicam que o vinho psicodélico de fato existiu nos primeiros dias do cristianismo e que foi consumido com especial significação justo onde os mistérios de Dionísio e a figura de Jesus entraram em contato. Ele explora de modo detalhado como essa acomodação aponta para a realidade da continuação do vinho psicodélico como elemento central entre os novos cristãos, assim como da participação das mulheres como condutoras do seu principal sacramento, a Eucaristia – ou, nas palavras tanto de Eurípides quanto de João, a “droga da imortalidade” (phármakon athanasias).
A INQUISIÇÃO E A “GUERRA ÀS DROGAS”
Uma das características que marcam The immortality key é o modo como o autor opta por não se esconder sob a pesquisa, o que fica expresso num tom coloquial que aproxima o leitor de um rol de personagens clássicos do pensamento ocidental e de um turbilhão de teses acadêmicas, novas e antigas.
Fruto de 12 anos de trabalho, o livro é escrito ao modo de um périplo também pessoal, na bem-sucedida tentativa de Muraresku de encontrar novos indícios (muito além do que neste texto poderia ser mencionado) que sustentem a hipótese da continuidade pagã, e nesse caminho o autor é levado ao coração dessa história: aos arquivos secretos e às catacumbas do Vaticano. É lá que o autor nos leva como companhia numa expedição à Necrópole Vaticana, a cidade subterrânea onde São Pedro teria sido enterrado e onde estão os primeiros registros do chamado paleocristianismo.
Enquanto caminha por esse mosaico de referências antigas, o autor nos empresta suas lentes, e, compartilhando sua perplexidade, vemos junto com ele como as primeiras (e clandestinas) Eucaristias, gravadas em pinturas nas paredes dessa cidade subterrânea, eram predicadas no uso do vinho, na representação de vários elementos tradicionais da religião dionisíaca (bodes, varinhas mágicas e mesmo a feiticeira Circe) e na condução feminina. Fica evidente como, de fato, as camadas mais antigas da Igreja em Roma são gregas.
Junto ao autor, vemos um mesmo tipo de padrão de imagens, baseado em um entusiasmo pelo consumo do vinho e no protagonismo das mulheres, também em outras catacumbas espalhadas pela região da Magna Graecia, ao sul da península itálica, onde populações gregas aportaram séculos antes do nascimento de Cristo, fundando outras cidades ao longo da costa do Mediterrâneo. Nelas também fica patente o entrelaçamento entre a religiosidade grega e o nascente cristianismo.
Na parte final de The immortality key acompanhamos Muraresku numa investigação aos arquivos do Vaticano, onde está registrada a aparatosa política de proibição da Igreja Católica aos cultos pagãos e a perseguição institucional às bruxas. Não por acaso, o foco da brutalidade inquisitorial recaiu justamente sobre as mulheres, especialmente mulheres velhas com conhecimentos farmacológicos. Aquilo que em Elêusis era motivo de veneração, na forma da deusa Deméter, na nova configuração mental que regia o Ocidente era motivo de uma implacável campanha persecutória.
O que, afinal, estava em jogo era a supressão de um sistema de conhecimento que sobreviveu por séculos à margem das autoridades: uma tradição farmacológica que foi passada de mulheres mais velhas para mulheres mais jovens, na qual estavam gravadas as digitais arcaicas de uma religião sem nome, que ensina, desde os alvores da consciência humana, formas distintas de acesso ao conhecimento de como aprender a morrer.
Mas, como bem sabemos aqui no “Novo Mundo”, a sanha de controle da Igreja Católica não ficou restrita ao continente europeu. Junto às grandes navegações e aos empreendimentos de colonização, veio também um ataque coordenado às formas de religiosidade nativas de toda a América, do norte ao sul, que, assim como as religiões antigas de mistério da Europa e da Ásia Menor, já dispunham de um conhecimento autônomo sobre a potencialidade das plantas e fungos. Como afirma Muraresku, a Igreja Católica é a verdadeira responsável pelo início da “Guerra às Drogas”. O que equivale a dizer: uma guerra ao mais profundo voo de que é capaz nossa consciência.
Assim, a obra de Muraresku nos ajuda a reconhecer o valor profundamente moral das experiências históricas de alteração de consciência, que excede em muito a frivolidade recreativa com que, por vezes, a cultura de massa as tem tratado, o que pode ser um primeiro passo para que sejamos hóspedes melhores deste tempo, para que possamos corrigir nossa rota óbvia em direção ao colapso ambiental. É cada vez mais urgente a exigência de que transformemos nosso modo caótico de habitar o mundo, sob o risco de extinguirmos não só a nossa, mas todas as formas de vida. E por isso nos importa tanto o entendimento de que, no caminho histórico que nos trouxe até aqui, coisas essenciais ficaram pelo caminho, como a sabedoria de que a única morte definitiva pode ser aquela que temos imposto à nossa própria consciência.
GILBERTO CLEMENTINO NETO, poeta e doutorando em Teoria da Literatura na UFPE.