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Por mais que enxergassem um grande talento, talvez mesmo os mais entusiastas pela carreira da jovem pianista sul-americana ficariam surpresos com o que estava por vir. Três anos após o encontro na Casa Rosada que selaria seu destino, Martha Argerich conquistava o primeiro prêmio na Competição Internacional de Genebra. Criado em 1939, o concurso era, àquela altura, um dos mais prestigiados do mundo musical. Martha seguia os passos de seu professor Friedrich Gulda, que havia ganho o primeiro lugar no mesmo concurso em 1946.
Mas isso era apenas uma parte da história naquele momento. Poucas semanas antes, ela havia realizado uma façanha semelhante: ganhara o primeiro lugar em outro dos principais concursos internacionais de piano: o Ferruccio Busoni, em Bolzano, na Itália. Quando souberam que Martha ia participar do concurso de Genebra, os organizadores do Busoni ficaram furiosos: se ela tivesse um desempenho medíocre, desmoralizaria a escolha que haviam feito.
De repente, uma carreira importante despontava no horizonte. Martha passou a ser requisitada para concertos pela Europa e os comentários da crítica sobre suas performances eram altamente elogiosos. Deutsche Grammophon, um dos mais prestigiados selos do universo clássico, procurou-a para gravar seu primeiro disco. Martha Argerich tinha 16 anos e, para qualquer outro pianista, esse momento significaria o início de uma trajetória fulgurante rumo ao estrelato.
Alguns discos da pianista: Début recital (1961), Frédéric Chopin – Sonate b-moll (1975), Salzburg (2009) e Claude Debussy (2021). Imagens: Reprodução
Jovem e tímida, ela hesitou diante da vida que se anunciava. Também resistiu a gravar, ainda que o selo tivesse tomado a iniciativa de lhe dar uma remuneração mensal em contrapartida aos ganhos futuros. Em 1960, finalmente, seu primeiro disco lançado trazia obras de Chopin, Ravel, Prokofiev, Liszt e Brahms – os três primeiros compositores seriam companhias frequentes ao longo da carreira.
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Após a euforia dos prêmios, ela optara por seguir os estudos e procurou Arturo Benedetti Michelangeli. Mas, durante um ano e meio, conseguiu ter apenas quatro aulas com o já lendário pianista italiano, vencedor da primeira edição do Concurso de Genebra. Frustrada, segue para os EUA na esperança de ter aulas com outro ídolo, Vladimir Horowitz, o que tampouco se materializa. Em 1963, Martha Argerich estava do outro lado do Atlântico, mas não tinha compromissos profissionais. Vivendo em Nova York, passava os dias assistindo à TV até tarde. No meio de uma crise de depressão, sentia que não conseguia mais tocar e, como fala várias línguas, pensava em se virar como secretária. Fica grávida de um amigo, o compositor e regente chinês Robert Chen. Rompem após poucos meses de relacionamento e Martha volta a viver com a mãe em Genebra, onde nasce sua primeira filha, Lyda, em 1964.
Juanita quer fazê-la voltar ao piano de qualquer jeito. Seu pai também: já separado de sua mãe e vivendo em Buenos Aires, Juan Manuel escreve longas cartas à filha. Mas foi o pianista e professor Stefan Askenase que motivou Martha a retornar à música. Ela voltou a estudar com intensidade, deu alguns recitais em Londres e, em 1965, conquistava outro dos mais prestigiados prêmios do universo pianístico: o Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin de Varsóvia, no qual os concorrentes devem mostrar sua mestria na obra do compositor polonês. Martha, a primeira mulher a vencer o certame, sai consagrada, reconhecida como uma das grandes intérpretes de Chopin.
Aos 24 anos, a carreira começava definitivamente. Mas tinha início também um episódio doloroso de sua vida. Juanita, tentando ajudar a filha em meio ao nascimento de Lyda, à volta ao piano e ao desentendimento com Robert Chen, sequestra o bebê. Os tribunais suíços tiram de Martha a guarda de Lyda, que nos primeiros anos irá viver sob tutela do estado e, mais tarde, com o pai, que obtém a guarda da menina. Martha verá sua primeira filha pouquíssimas vezes até a adolescência.
Depois do relacionamento com Chen, Martha Argerich foi casada com o maestro francês Charles Dutoit, com quem teve a segunda filha, Annie. Seu terceiro marido foi o pianista Stephen Kovacevich, pai de mais uma menina, Stéphanie. Annie e Stéphanie foram criadas pela mãe que, quando não estava viajando a trabalho, vivia com as meninas numa casa na Suíça cheia de amigos e com poucas regras.
Hoje há uma discussão aberta sobre a dificuldade que mulheres enfrentam para desempenhar os papéis de mãe e de profissional. Algo que se torna ainda mais difícil quando se é mãe solo e quando a carreira é a de uma artista que depende de viagens contínuas. Na década de 1970, Martha Argerich tentava se equilibrar entre a vida de uma musicista aclamada e a de uma mãe que procura criar com serenidade as filhas.
Para completar, uma vida monástica e disciplinada, como a que vivem muitos músicos, era o oposto de sua personalidade.
Annie Dutoit, a filha do meio, lembra-se que a mãe não cobrava que fossem à escola e desconhecia o sistema de notas. Martha sempre gostou de acordar e dormir tarde, e sua filha caçula, Stéphanie, lembra-se das incontáveis vezes em que adormeceu debaixo do piano, ouvindo sua mãe estudar e observando seus pés apertarem os pedais do instrumento.
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Pouco organizada na vida doméstica, Martha Argerich tampouco gosta do estrito planejamento que rege o mundo clássico, no qual os compromissos são marcados com dois ou mais anos de antecedência. Parece paradoxal, mas ela costuma dizer que odeia duas coisas na vida: ter que viajar e ter que tocar piano. A perspectiva de ambas a deixa apavorada. Ela já confessou que, quando jovem, esforçava-se para esquecer os recitais planejados há muito tempo. E, dois dias antes, entrava numa espécie de surto, estudando obsessivamente.
Sem manter uma disciplina rígida de estudos, acostumou-se a alternar temporadas de prática exaustiva com outras em que mal chega perto do piano. Isso não significa, absolutamente, baixa exigência. Martha lembra que, aos nove anos de idade, antes de tocar um concerto de Mozart, fechou os olhos e pensou: “se eu tocar uma nota errada, me mato!”.
Uma parte do incômodo que envolve a vida de uma pianista superstar Martha Argerich conseguiu resolver. Se não parou com as viagens e a obrigação de tocar em público, deixou de fazer recitais solo. Em 1981, anunciou que não subiria mais sozinha ao palco. “Não quero ser uma máquina de tocar piano”, declarou ao jornal argentino La Nación, durante uma visita a Buenos Aires. “Um solista mora sozinho, toca sozinho, come sozinho. É muito pouco para mim.”
Em 1983 ela gravou seu último disco solo, dedicado a Schumann, talvez seu compositor favorito entre os favoritos. É dele a peça que ela utilizou por anos para se aquecer antes dos concertos, a dificílima Toccata op.7. “Não mais”, ela contou numa entrevista ao Washington Post em 2016. “Agora não me aqueço. Apenas começo.” Seu repertório é centrado na música dos séculos XIX e XX, de estética romântica e moderna. Beethoven, Schumann, Chopin, Rachmaninov, Prokofiev e Ravel destacam-se nele, embora, numa carreira tão longa e pontuada por muitas dezenas de discos, praticamente quase todo grande autor desde Bach tenha sido abordado por ela.
Martha fala desses compositores como se fossem pessoas de seu círculo. Prokofiev e Ravel são seus “melhores amigos”, enquanto Schumann a toca especialmente, frequentemente a levando às lágrimas. Já Beethoven é “um amor duradouro”, mais do que qualquer outro, declarou. Isso não significa, no entanto, que tenha tocado ou gravado todas as 32 sonatas do compositor, ou nem mesmo seus cinco concertos para piano e orquestra.
Martha se deixa levar por uma relação profundamente amorosa com os compositores e suas obras. Nunca tocou o Concerto n.4 de Beethoven em público e não sabe bem explicar o porquê, mas desconfia que seja excesso de amor à obra. Numa entrevista de 2008 à revista Gramophone, ela revelou: “Quando eu era menina, meu deus era Beethoven. Eu costumava colocar em cada partitura ‘O deus da música – Beethoven’. Bach era o pai, mas deus era Beethoven”.
Ela também não sabe explicar de onde vêm suas preferências musicais, mas desconfia que têm a ver com o temperamento de cada compositor, refletido em suas obras. Crê que tem um temperamento juvenil quando toca e isso explicaria, por exemplo, por que quase nunca a ouvimos interpretar Brahms.
No livro Dictionnaire amoureux du piano, o jornalista Olivier Bellamy, que escreveu uma biografia em francês sobre Argerich, procura resumir as características que fazem dela uma pianista singular: “A elasticidade dos dedos, o poder colossal das oitavas, a imaginação do fraseado, a imaterialidade dos pianíssimos, a riqueza das vozes intermediárias e de um som imediatamente reconhecível são qualidades que encontramos em seu pianismo”. Para Bellamy, a arte de Argerich é “bruxaria e grande estilo” e, uma vez que ela desenvolve uma relação única, íntima e misteriosa com cada obra, não faria sentido optar por tocar todas as sonatas de Beethoven ou gravar todos os estudos de Chopin.
De fato, como talvez estejamos mais acostumados a admitir no caso de artistas populares – não só da música como artistas plásticos ou poetas – Martha é uma artista intuitiva. A compreensão que tem do estilo de cada compositor não passa pela análise técnica das obras ou por pesquisas musicológicas. Mas, uma vez que ela estuda uma composição que lhe atrai, é como se ela a entendesse – e a traduzisse para nós – não apenas com os dedos e o cérebro, mas com todos os poros de seu corpo.
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No ano 2000, Martha Argerich deu um recital solo concorridíssimo no Carnegie Hall. Era a primeira vez, em quase 20 anos, que ela contrariava a decisão de não estar só no palco. Foi um evento beneficente para o Instituto de Câncer John Wayne em Santa Mônica, Califórnia. No início dos anos 1990, ela fora diagnosticada com um melanoma. Foi um momento difícil: no ano anterior, sua mãe havia morrido de câncer. E, no dia em que descobriu a doença, uma de suas melhores amigas faleceu de um outro tipo de câncer. Martha foi operada duas vezes na Europa, e aparentemente as coisas tinham corrido bem. Mas, em 1996, ela descobriu que o melanoma havia se espalhado por seus gânglios linfáticos e pulmões. A condição agora era fatal.
Foto: Daniel Bockwoldt/DPA /DPA Picture-alliance via AFP
Por meio de amigos, ela soube de um oncologista cirúrgico, diretor de um instituto em Santa Mônica, que fazia tratamento com uma vacina experimental. Além disso, teve que se submeter a uma cirurgia para remover tecido canceroso dos pulmões, o que aconteceu em maio de 1997. A cirurgia atingiria músculos dos braços e costas importantes para tocar piano e a equipe teve que atuar com extrema acuidade. A recuperação foi exaustiva, mas o tratamento foi um sucesso. O recital, portanto, foi sua forma de agradecimento.
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Martha Argerich é conhecida por raramente dar entrevistas, e só as concede se forem ao vivo. Durante mais de 20 anos, o francês Georges Gachot tentou entrevistá-la como parte de um projeto de documentário. Gachot é um diretor experiente que já tinha no currículo uma série de filmes sobre música clássica para a TV. (É também um apaixonado por música brasileira, que desde 2005 tem feito registros dedicados a Maria Bethânia e João Gilberto, entre outros.) Apenas em 2001 ela concordou em participar, com a condição de lhe dar uma única entrevista. Essa conversa, filmada em uma noite entre um ensaio e uma apresentação do Concerto para piano de Schumann com a Orquestra de Câmara de Württemberg em Heilbronn, Alemanha, resultou no documentário Conversa noturna (Evening talks).
É uma produção que aborda principalmente a carreira profissional da pianista, recheada com imagens de arquivo de algumas de suas apresentações marcantes. Martha também fala um pouco de seus sentimentos em relação à carreira. Lembra, por exemplo, a solidão que experimentou na adolescência depois de vencer os concursos de Genebra e Bolzano. Também relembra o primeiro de seus cancelamentos – ela é famosa por desistir de compromissos em cima da hora, deixando os promotores em saia justa. Aos 17 anos, tinha um concerto marcado em Florença, mas decidiu que não queria tocar. Mandou um telegrama dizendo que havia machucado o dedo. Ficou apreensiva que pudessem descobrir a mentira, pegou uma faca e cortou de fato o dedo. A ferida foi mais grave do que ela gostaria e acabou a impedindo de fazer um outro concerto na semana seguinte.
Suas crises de ansiedade são frequentes e explicam por que, em geral, ela caminha para o meio do palco com pressa, senta no piano e mergulha imediatamente na música. Um momento como esse é captado em Bloody daughter (sem lançamento no Brasil, mas que pode ser assistido no YouTube), de 2012, outro documentário feito sobre a artista, dessa vez por sua filha mais nova.
Desde menina, Stéphanie Argerich se habituou a registrar o cotidiano da família numa câmera VHS comprada por Martha numa de suas turnês ao Japão, na década de 1980. Sua narrativa parte de um ponto de vista privilegiado e abre aos admiradores da artista uma possibilidade única de explorar aspectos de sua intimidade e personalidade. Enquanto mostra o nervosismo da mãe aguardando para entrar no palco – “Eu não quero tocar”, ela repete algumas vezes, sob os olhares tensos da equipe de backstage –, Stéphanie conta que passou boa parte da vida acompanhando esses momentos. No começo, ficava aflita e extremamente preocupada. Da coxia do teatro acompanhava com apreensão o concerto, torcendo para que tudo desse certo. Quando a apresentação terminava, ela respirava aliviada e exausta de preocupação. Martha, por outro lado, saía do palco radiante e 10 anos rejuvenescida.
De forma implacável e amorosa, Stéphanie mostra os altos e baixos de ter como mãe alguém que é quase uma lenda, ou uma “semideusa”, como ela mesma define em determinado ponto do filme – enquanto as imagens mostram Martha saindo do teatro após mais um concerto e sendo rodeada por fãs ávidos em trocar uma palavra, tirar uma foto ou pegar um autógrafo.
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Desde que abandonou a performance solo, o foco de Martha Argerich são os concertos com orquestra e a música de câmara. Se, na música orquestral, podemos observar como essa artista excepcional parece não ter perdido nada de sua força e técnica apurada, na música de câmara, o que salta aos olhos é seu prazer em tocar com amigos de uma vida toda.
Martha fundou três festivais de câmara: o Beppu, no Japão, em 1995, o de Buenos Aires, em 1999, e o Progetto Martha Argerich, em Lugano, em 2002. Apenas o festival japonês ainda existe, embora a edição deste ano tenha sido cancelada por conta da pandemia. Mesmo assim, sua atuação como camerista é intensa. Em muitos vídeos disponíveis na internet, podemos vê-la em ação ao lado de seus grandes amigos: o pianista brasileiro Nelson Freire, o violoncelista Mischa Maisky ou o violinista Gidon Kremer, ambos letãos. Não fosse a pandemia, o público brasileiro poderia ter tido o prazer de vê-la ao vivo em 2020, quando seria solista junto à orquestra do programa Neojiba, na Bahia, criado e dirigido por outro grande amigo brasileiro, o pianista Ricardo Castro. Este, aliás, pode ser visto bem jovem em Bloody daughter, tocando piano e cantando Garota de Ipanema numa das reuniões na casa da pianista.
Filarmônica de Mannheimer com Martha Argerich, em dezembro de 2019. Imagem: Almschi123/Wikicommons.
A este círculo, soma-se uma série de jovens músicos talentosos aos quais Martha dá uma tremenda oportunidade ao integrá-los a seus concertos. Falando sobre tocar com a amiga, Mischa Maisky declarou: “Trabalhar com Martha é como a própria vida. Não é fácil – pode ser bastante imprevisível e muito irritante. Mas é a coisa mais maravilhosa que existe. Ela é incrivelmente talentosa – de uma forma quase deprimente.”
Na mesma entrevista de 2016 ao Washington Post, Martha Argerich afirmou que a velhice “é um período muito estranho”: “Envelhecer é muito estranho. É como se você já tivesse tido tantas vidas diferentes. Acho que preciso de um pouco mais de tempo para entender, para sentir o que realmente quero fazer ao longo do tempo que me resta”.
No dia 4 deste mês, pela Deutsche Grammophon, mesmo selo que lançou seu primeiro disco há mais de 60 anos, Martha é a estrela de um álbum dedicado a obras de Debussy junto a outro grande amigo, Daniel Barenboim, que conhece desde que eram, ambos, crianças prodígio na Argentina, sete décadas atrás. Se ela vai iniciar algum novo caminho em sua vida, não se pode saber. O que parece é que dará continuidade a uma das mais vitoriosas carreiras de um músico clássico do século XX – e também do XXI.
CAMILA FRESCA, jornalista e pesquisadora. Doutora em Musicologia pela ECA–USP, colabora com veículos como Revista Concerto e Folha de S.Paulo.