A narrativa breve apresenta uma segunda intenção: aproximar-se do modelo dos textos teatrais. Para tal, conta com uma série de rubricas entre parênteses, que são interferências, muitas vezes irônicas, da autora Ruth Ducaso – sugerindo uma leitura coletiva entre a criadora e o leitor. Essas intervenções aparecem principalmente após as falas daqueles que julgam ou comentam a vida da protagonista, como em “É muito atrevida essa mulher negra! (Desajuste de gênero-raça)” ou em “Sangra não que já limparam o chão do de agorinha. (Stand up).”
A partir desses comentários à narrativa central sabemos que Dita é uma mulher preta, que carrega a dita cor. Interessante perceber que, assim como no livro de contos Um Exu em Nova York (2019), da escritora mineira Cidinha da Silva, quem indica (ou acusa) a cor da pele das personagens é o modo como a sociedade as trata ou dialoga com elas. Uma escolha literária trazida das vivências reais das pessoas negras que (sobre)vivem a esse contexto social racista e inquisitório. Vida e literatura refletindo o poema da afroperuana Victoria Santa Cruz, Me gritaron negra (Me gritaram negra, em tradução direta), recitado por ela décadas atrás: “De repente umas vozes na rua/ me gritaram Negra!/ Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!/ ‘Por acaso sou negra?’ – me disse SIM! / ‘Que coisa é ser negra?’ Negra!/ E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia”.
Victoria usou seus versos como bandeira da luta antirracista, e tem sua voz reverberada até hoje. Em Florim, Dita usa sua escrita como uma forma de transcender a sua realidade e, quem sabe, viver até idade avançada, como os poetas anotados em trecho do seu diário: “Um dia, vi na TV que um poeta teve previsão de morte e não morreu. Pensei nos meninos que velhos estão chegando à juventude. (Pausa fúnebre)”. Dados sobre expectativa de vida, violência e morte envolvendo a população negra não são aleatórios, são fonte de uma pesquisa feita por Luciany Aparecida em manchetes de jornais e institutos de pesquisa, além da coleta de relatos de pessoas que vivenciaram alguns dos elementos presentes no livro, como a cena marcante da chacina de jovens negros, referência a um acontecimento na cidade de Salvador.
“Algo que me incomoda, como leitora do texto literário brasileiro, é mulheres ou homens negros aparecerem de modo muito linear: ou só sofrem, ou só trabalham, ou só são para o prazer. Eu queria construir uma personagem que tivesse um campo de complexidade maior nesse sentido. E o lugar de força dessa personagem é o fato de ela ser uma escritora que aciona lugares de prazer”, pontua Luciany, que além de escritora é doutora em Letras e professora de Teoria e Crítica Literária. Logo, ainda que majoritariamente castigada, a narrativa de Dita abre espaço para relatos de prazer, mostrando um corpo que, mesmo sofrido, goza.
A construção de narrativas que inserem experiências de pessoas negras tem sido partilhada por autores brasileiros afrodescendentes. Em Pernambuco, a escritora e poeta Odailta Alves nos presenteou, em 2020, com o livro Pretos prazeres, no qual reúne contos eróticos sobre amores afrocentrados. No mesmo ano, o carioca Jeferson Tenório trouxe o personagem Pedro, no livro O avesso da pele, um homem em processo de resgate do seu passado. Nesse contexto, vale também lembrar a obra de Conceição Evaristo e sua escrevivência, centrada numa escrita literária construída a partir de sua vivência como mulher negra na sociedade brasileira.
Em Florim, o próprio título do livro aponta para a riqueza de abordagens nas narrativas negras, pois carrega dois significados: um tipo de moeda utilizada na compra-venda de pessoas escravizadas durante o período de colonização e o nome da adaga carregada por Iansã. Essa orixá é muitas vezes referenciada na obra, sendo seu arquétipo da guerreira forte, apaixonada e implacável registrado na mitologia africana.
Algumas passagens do livro podem se mostrar confusas ou desconexas e dificultar o entendimento, em uma primeira leitura. Porém, isso decorre da experiência de um livro que se propõe à aproximação ao texto audiovisual ou teatral. É como se fôssemos espectadores dos acontecimentos e lêssemos diálogos que margeiam a cena central. A ideia é despertar, através do incômodo, críticas sobre quem conta as narrativas, quem tem a autonomia de interferir em vidas alheias. Ao tirar o leitor da passividade, a inquietude provocada por Florim se torna ferramenta de ação contra o conformismo.
TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.