Curtas

Florim

A poeta e traficante Dita nomeia a protagonista do primeiro romance da escritora baiana Luciany Aparecida, que assina como Ruth Ducaso

TEXTO Taynã Olimpia

01 de Junho de 2021

Ruth Ducaso, assinatura poética da escritora baiana Luciany Aparecida

Ruth Ducaso, assinatura poética da escritora baiana Luciany Aparecida

Foto Ana Reis/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 246 | junho de 2021]

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“Que ou aquela que foi objeto de maldição; amaldiçoada, condenada” é a definição da palavra maldita, que aparece numa busca rápida no Google. Ao fragmentar esse léxico e seu significado, Ruth Ducaso – uma das assinaturas poéticas da escritora baiana Luciany Aparecida – nomeia a personagem do seu primeiro romance, Florim (2021). Dita é uma mulher ficcional inspirada em vivências reais, cujo corpo singular contém inúmeras vertentes. Sem sobrenome, periférica, mãe e traficante de drogas, a sua complexidade não é construída apenas por suas características sociais, mas também por seus desejos e anseios. Ela é uma traficante que sonha em ser reconhecida como poeta. “Sabia que dentro de si viviam várias”, como pontua a voz narradora no primeiro capítulo da história.

Os textos assinados por Ducaso são sempre pesados, violentos e incômodos ao escancarar feridas coloniais. De forma contundente e longe de didatismos, em Florim, encaramos os conflitos internos e externos de Dita. Como se lesse seu diário, escutasse seus pensamentos ou a seguisse pelas ruas, o leitor é guiado por essa mulher que tenta conciliar suas duas faces: a da criminosa durona, que não mostra fraqueza, e o seu lado poeta, sensível, que se permite verter sentimentos para o papel. Intercalando uma escrita em primeira e terceira pessoa e fragmentos de produção poética, num jogo de prosa-poesia, a obra é densamente construída em 72 páginas e anuncia, logo no prólogo: “Leitura é coragem e permissão”.

Da compreensão desse combo é que precisamos para adentrar a “vidinha dessa mulher-poeta” que “gozava quando escrevia. A poesia a excitava tanto, que bastava o vaivém para o gosto”. Sobre o enredo do livro, Luciany Aparecida explica à Continente: “Esse livro tem zonas de explosão. Uma das zonas de explosão é ter uma personagem que está num campo que socialmente é lido como não literário, que é uma mulher que está na rua vendendo droga, que está presa ou que está saindo da prisão... Eu queria falar desses assuntos todos e pensei que o jeito de escrever o livro poderia me ajudar nessa explosão. Por isso pensei num livro curto, porque eu mesma, como escritora, não daria conta de escrever um texto mais expandido com tanto sofrimento, falando de tantas mortes, violência, assassinato”.

A narrativa breve apresenta uma segunda intenção: aproximar-se do modelo dos textos teatrais. Para tal, conta com uma série de rubricas entre parênteses, que são interferências, muitas vezes irônicas, da autora Ruth Ducaso – sugerindo uma leitura coletiva entre a criadora e o leitor. Essas intervenções aparecem principalmente após as falas daqueles que julgam ou comentam a vida da protagonista, como em “É muito atrevida essa mulher negra! (Desajuste de gênero-raça)” ou em “Sangra não que já limparam o chão do de agorinha. (Stand up).”

A partir desses comentários à narrativa central sabemos que Dita é uma mulher preta, que carrega a dita cor. Interessante perceber que, assim como no livro de contos Um Exu em Nova York (2019), da escritora mineira Cidinha da Silva, quem indica (ou acusa) a cor da pele das personagens é o modo como a sociedade as trata ou dialoga com elas. Uma escolha literária trazida das vivências reais das pessoas negras que (sobre)vivem a esse contexto social racista e inquisitório. Vida e literatura refletindo o poema da afroperuana Victoria Santa Cruz, Me gritaron negra (Me gritaram negra, em tradução direta), recitado por ela décadas atrás: “De repente umas vozes na rua/ me gritaram Negra!/ Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!/ ‘Por acaso sou negra?’ – me disse SIM! / ‘Que coisa é ser negra?’ Negra!/ E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia”.

Victoria usou seus versos como bandeira da luta antirracista, e tem sua voz reverberada até hoje. Em Florim, Dita usa sua escrita como uma forma de transcender a sua realidade e, quem sabe, viver até idade avançada, como os poetas anotados em trecho do seu diário: “Um dia, vi na TV que um poeta teve previsão de morte e não morreu. Pensei nos meninos que velhos estão chegando à juventude. (Pausa fúnebre)”. Dados sobre expectativa de vida, violência e morte envolvendo a população negra não são aleatórios, são fonte de uma pesquisa feita por Luciany Aparecida em manchetes de jornais e institutos de pesquisa, além da coleta de relatos de pessoas que vivenciaram alguns dos elementos presentes no livro, como a cena marcante da chacina de jovens negros, referência a um acontecimento na cidade de Salvador.

“Algo que me incomoda, como leitora do texto literário brasileiro, é mulheres ou homens negros aparecerem de modo muito linear: ou só sofrem, ou só trabalham, ou só são para o prazer. Eu queria construir uma personagem que tivesse um campo de complexidade maior nesse sentido. E o lugar de força dessa personagem é o fato de ela ser uma escritora que aciona lugares de prazer”, pontua Luciany, que além de escritora é doutora em Letras e professora de Teoria e Crítica Literária. Logo, ainda que majoritariamente castigada, a narrativa de Dita abre espaço para relatos de prazer, mostrando um corpo que, mesmo sofrido, goza.

A construção de narrativas que inserem experiências de pessoas negras tem sido partilhada por autores brasileiros afrodescendentes. Em Pernambuco, a escritora e poeta Odailta Alves nos presenteou, em 2020, com o livro Pretos prazeres, no qual reúne contos eróticos sobre amores afrocentrados. No mesmo ano, o carioca Jeferson Tenório trouxe o personagem Pedro, no livro O avesso da pele, um homem em processo de resgate do seu passado. Nesse contexto, vale também lembrar a obra de Conceição Evaristo e sua escrevivência, centrada numa escrita literária construída a partir de sua vivência como mulher negra na sociedade brasileira.

Em Florim, o próprio título do livro aponta para a riqueza de abordagens nas narrativas negras, pois carrega dois significados: um tipo de moeda utilizada na compra-venda de pessoas escravizadas durante o período de colonização e o nome da adaga carregada por Iansã. Essa orixá é muitas vezes referenciada na obra, sendo seu arquétipo da guerreira forte, apaixonada e implacável registrado na mitologia africana.

Algumas passagens do livro podem se mostrar confusas ou desconexas e dificultar o entendimento, em uma primeira leitura. Porém, isso decorre da experiência de um livro que se propõe à aproximação ao texto audiovisual ou teatral. É como se fôssemos espectadores dos acontecimentos e lêssemos diálogos que margeiam a cena central. A ideia é despertar, através do incômodo, críticas sobre quem conta as narrativas, quem tem a autonomia de interferir em vidas alheias. Ao tirar o leitor da passividade, a inquietude provocada por Florim se torna ferramenta de ação contra o conformismo.  

TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.

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