Resenha

A luta entre Malcolm & Marie

Longa-metragem traz à cena um casal numa noite de discussão e o debate sobre relações amorosas tóxicas, disputas do ego e motivações à criação artística

TEXTO Jocê Rodrigues

01 de Junho de 2021

Muito além do que uma discussão entre casal, o filme traz um debate sobre a arte

Muito além do que uma discussão entre casal, o filme traz um debate sobre a arte

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra ed. 246 | junho de 2021]

contribua com o jornalismo de qualidade

As relações afetivas podem ser complicadas. Não é todo mundo que tem a disposição, a paciência e a dedicação necessárias para a manutenção de um bom relacionamento amoroso. Às vezes são as ideias, os comportamentos ou as visões de mundo que vão se distanciando daquilo que era inicialmente esperado. No entanto, existem fatores que podem ser ainda mais problemáticos, para não dizer fatais. 

A violência, seja ela física ou psicológica, é um fantasma que constantemente assombra e ameaça a vida principalmente de mulheres no mundo inteiro. Os casos de feminicídio e as acusações de abusos são recorrentes e, mesmo assim, o assunto ainda é tratado com certo desdém não só pelas autoridades, mas até mesmo por pessoas próximas das vítimas. Um cenário que certamente inspira medo e preocupação.

Contudo, existem relações que ultrapassam a lógica da violência direta e previsível. Pessoas que se deslocam do eixo convencional e acabam por desenvolver laços que desafiam a compreensão do senso comum. No livro Do bom uso erótico da cólera (Zahar, 1996), o psicanalista francês Gérard Pommier relata situações nas quais os indivíduos envolvidos sentem real prazer na provocação e nas brigas. “Que há de mais desopilante que a briga de dois amantes, quando se encerra num desencadeamento de paixão?”, pergunta Pommier. “Quanto mais violenta a discussão, mais sensual parece seu epílogo. Mesmo quando dois amantes observam que se entregam descontroladamente a seus pendores belicosos, que se concluem de maneira tão libidinal, nada é capaz de fazê-los largar esse divertido hábito!”

Esse tipo de relação segue por caminhos completamente distintos daqueles que qualquer relação dita “saudável” costuma trilhar. É outro registro, outra experiência. Uma que ladeia os limites do convencional e que por isso mesmo é tida como estranha, como condenável sob muitos aspectos. O cinema é uma manifestação artística que disseca bem essas idiossincrasias. Ao longo do tempo, vimos surgir grandes obras que desafiam a nossa compreensão do que é normal e do que não é; do que é aceitável e do que extrapola as barreiras da tolerância socialmente imposta. 

Malcolm & Marie traz essa discussão à baila. O filme da Netflix tem chamado a atenção do público e da crítica, que o avaliam quase unicamente sob o viés da relação tóxica que envolve os seus personagens. Entretanto, essa unicidade pode ser um tanto quanto problemática, já que acaba por excluir outras questões que são tocadas ali. Na trama, dirigida por Sam Levinson, somos colocados como espectadores de um embate entre o casal interpretado por Zendaya e John David Washington. A briga dura apenas uma noite, mas vale por duas vidas inteiras. 

INTERPRETAÇÃO
Malcolm é mostrado como um diretor de cinema que, após algumas incursões não tão bem- sucedidas no ramo cinematográfico, encontra o sucesso de público e crítica pelo qual tanto esperava com um filme que narra a vida de uma jovem em luta para se livrar de seu vício em drogas. Em vários momentos, Malcolm questiona o modo como uma crítica interpreta sua obra pelo viés político e racial, pelo fato de ser um artista negro e de seu filme também ser protagonizado por uma mulher negra.

Na década de 1960, o filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932-2016) foi um dos defensores dos poderes do intérprete, do leitor, principalmente com a publicação do livro Obra aberta. Pouco tempo depois, ao perceber a grande confusão que haviam feito com alguns de seus conceitos, ele volta atrás e defende a importância das intenções originais do autor. Segundo Eco, superinterpretar é basicamente o ato de dar maior valor a algo ou a algum detalhe específico, independentemente da intenção original do autor da obra. 

Para Malcolm, é exatamente isso que a crítica faz ao relacionar o resultado do seu trabalho apenas à sua cor. Diante dessa interpretação, todas as suas intenções de mostrar uma condição atrelada a uma pessoa específica foram reduzidas ao viés político e social que a intérprete escolheu como recorte. Atitude que o deixa irritado e que diz muito sobre o momento atual, quando as superinterpretações tornaram-se regra e não exceção. 


Zendaya e John David Washington interpretam o casal. Foto: Divulgação

Enquanto isso, Marie, sua companheira, se vê às voltas com um sentimento íntimo de ingratidão de Malcolm. Ela acredita que teve sua vida retratada no filme e não recebeu o reconhecimento que merecia. As tensões se instalam logo no início, quando Marie demonstra descontentamento com a noite de estreia do filme, justamente em que se passa toda a história. A partir daí, tempestade e calmaria se alternam em diálogos e cenas que prendem pela intensidade e pela contundência de cada gesto e de cada palavra.

Cada movimento parece ser milimetricamente pensado. Todo movimento, expressão e palavra parecem anunciar uma bomba prestes a cair dos céus para devastar a aconchegante casa afastada onde os dois se refugiam depois da noite de estreia. Mesmo tendo apenas dois atores em cena durante mais de uma hora e meia, temos a impressão de que algo grande está prestes a acontecer, algo que a qualquer momento pode mudar o rumo de tudo.

INSPIRAÇÃO
Muito além do que uma discussão entre casal, o filme traz um debate sobre a arte e sobre como as fontes de uma criação artística podem estar intrinsecamente ligadas à vida de seu criador. Quando Marie questiona Malcolm sobre a inspiração para a personagem Imani, protagonista do filme que alçou o diretor ao sucesso, ela toca num ponto central.

A ideia de que um artista cria algo a partir do nada está ultrapassada. Segundo o crítico literário George Steiner (1929-2020): “O problema da criação divina ex nihilo foi debatido em todas as grandes teologias e em todas as grandes narrações mitológicas do mistério do início (incipt). Mesmo o maior escritor entra na casa de uma linguagem já existente. Ele pode, dentro de limites muito estreitos, criar neologismos, como Pascoli, pode tentar insuflar vida nova a palavras, ‘inspiração’, até mesmo em línguas mortas. Mas ele não cria sua poesia, sua peça ou seu romance a partir do nada”.

A visão de Steiner está em consonância com a do já citado Umberto Eco e a do crítico e semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980), que também defendiam que a obra é indissociável dos diversos acidentes e eventos que aconteceram durante a vida de quem a criou. Porém, é preciso levar em consideração a diferença entre inspirar-se na história de alguém e a tomar para si. A personagem Marie acredita que teve sua vida roubada a partir do momento em que foi contada por outra pessoa que não ela mesma. E ela vai além.

De maneira lúcida, e em certo sentido até bem-humorada, ela leva Malcolm a refletir sobre os mecanismos que fazem a indústria cinematográfica girar, comparando-o a uma garota de programa. Um debate que abrange toda a indústria cultural e que remete a pensadores como Theodor Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973) e Walter Benjamin (1892-1940), que se dedicaram a discutir os problemas e armadilhas da indústria cultural. 

A cada minuto, essas discussões vão cavando mais fundo na psique dos dois e trazem à tona memórias e ressentimentos que resvalam em outros aspectos da realidade. Em determinado momento, cultura, interpretação, ficção e realidade parecem se entrelaçar num desfile temático. Não existem conclusões, apenas bombas lançadas. Rompantes de terrorismo psicológico que não fazem distinção entre as vítimas e que atingem também quem os inicia. 

As mágoas de Malcolm e Marie se retroalimentam. As ações de um reverberam no outro e logo suscitam uma reação ainda mais abrasada. É um jogo de exposição perigoso ao qual os dois vão se entregando aos poucos e, quando menos esperam, encontram-se presos na teia de intrigas e verdades dolorosas que ambos teceram juntos.

Ao fazer uso do choque entre visões íntimas e pessoais de cada personagem, Levinson resgata uma tradição que remete a diretores como Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Ingmar Bergman (1918-2007), entre outros que usavam da vida afetiva cotidiana como pano de fundo para indagações que vão além do convívio, dos abusos e dos valores dos protagonistas em cena. 

Filmes como Cenas de um casamento (1973) e Sonata de outono (1978), ambos do diretor sueco, apresentam um ethos diferente do que estamos acostumados nos dias de hoje. Seus desenvolvimentos lentos não dizem respeito à geração da hipervelocidade, insensível aos detalhes mínimos.

Nesse quesito, Malcolm & Marie consegue dar um passo à frente. Apesar de contar apenas com duas pessoas em cena (medida pensada para os tempos do novo coronavírus), os embates são armados quase que vertiginosamente. Uma vez que se iniciam, não é possível parar. As pausas, os breves momentos de paz, são utilizados como artifícios para que outros ataques emocionais sejam preparados. 

INGRATIDÃO
O desgosto de Marie, para além de todos os outros problemas que recaem na relação com Malcolm, parece ter base firme no fato de ele não ter agradecido ou se mostrado grato por tudo o que ela fez por ele e por seu trabalho criativo. Ao esquecer de agradecer a ela em seu discurso na noite de estreia, Malcolm ignorou parte importante da própria vida para cair no erro de tentar apresentar-se como criador autossuficiente.A sua ingratidão, ou sua gratidão não expressa, foi, na verdade, a faca que desferiu o primeiro golpe. Foi o soco que iniciou a pior briga da sua vida. 

Durante todo o filme, o tema da gratidão (no sentido amplo do termo) aparece de maneira pontual, mas se torna imperioso nos momentos finais, quando ela, por fim, desfere os últimos golpes que levam o orgulhoso parceiro ao nocaute. Afinal, nada mais difícil para muitas pessoas do que admitir seus débitos com aqueles que o ajudaram. Com ele não é diferente, sua relutância em reconhecer os esforços da sua parceira ao longo da jornada dos dois é situação corriqueira em muitos relacionamentos.

A ideia egoísta de que toda criação artística é ato solitário e independente ainda persiste na mentalidade geral. O endeusamento do artista como entidade separada do resto da humanidade cria figuras que direcionam seus agradecimentos não a outras pessoas, mas a situações que ele foi capaz de superar “sozinho”, graças à força da sua vontade inabalável. Foi preciso todo um escarcéu para que Malcolm pudesse olhar para si mesmo despido de suas certezas e convicções, construídas em cima de fatos distorcidos e manipulados pelo ego. 

No fim das contas, ao observar os aspectos trazidos pela relação conturbada entre duas pessoas, Malcolm & Marie não é sobre quem vence ou quem perde um violento bate-boca. Trata, antes, sobre a complexidade, as miríades das paisagens interiores que se mesclam e se confundem dentro de uma relação afetiva. 

JOCÊ RODRIGUES, jornalista, colabora com publicações culturais brasileiras.

Publicidade

veja também

As facetas de 65 pernambucanos

Vidas em transição

“Nunca me adaptei aos estereótipos de um intelectual”