Comentário

Pensamentos de felicidade durante uma aula no Zoom

A poeta e pesquisadora Ana Luiza Rigueto reflete sobre as presenças e ausências no ambiente virtual a partir dos pensamentos de Audre Lorde e da obra de Rachel Cusk

TEXTO Ana Luiza Rigueto

03 de Maio de 2021

ILUSTRAÇÃO Rafael Olinto

[conteúdo na íntegra | ed. 245 | setembro de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Na semana passada, e também na anterior, encontros online de todo tipo aconteceram dentro desta casa. Agora mesmo participo de mais um encontro sobre literatura. É uma experiência esquisita, ligar um computador e ficar imóvel, ouvindo e vendo quadrados em miniatura. Por vezes, acontecem quedas de conexão ou falhas na transmissão da voz das pessoas. Agora alguém faz a mediação de um debate, ou uma aula, não entendo bem. A mesma voz diz há uns 15 minutos alguma coisa que não distingo mais. O papel do silêncio? A importância da construção coletiva para um lugar impossível? Deleuze? Seja o que for, minha coluna dói, preciso fazer o jantar e há esse livro bonito em cima da minha mesa, cuja imagem da capa é uma concha espetada na areia. Pensemos no que podemos fazer para criar o único abrigo eficiente contra holofotes sobre o frizz e essas digressões todas. Desligo a câmera. 

É um grupo até comum. Pesquisadores, artistas, estudantes, professores estão um pouco mais ou um pouco menos atentos e implicados. Um ou outro fala. E esse que é mediador e professor, talvez palestrante, não entendi bem, geralmente fala por nós. Então, nossa parte é ouvir, ou ficar ali. Como seguir acreditando que esse é um espaço para criar ideias eficazes? Mas, para criar ideias eficazes, temos que saber dispará-las. Temos de colocá-las em ação. Não haverá intervalo e o professor-mediador-palestrante subitamente faz silêncio. Diz que está cansado de falar, que vai beber uma água e ver o que nós pensamos a respeito, se gostamos, se não gostamos, gostaria que falássemos algo agora. Alguém cuja expressão foi ficando cada vez mais amargurada liga o microfone pra dizer “não sei quem o senhor é, mas é um péssimo professor”, e deixa a chamada.

Começo a pensar nesse livro na minha mesa, Esboço, da Rachel Cusk. A personagem é uma professora e está em viagem para ministrar uma oficina de escrita criativa em Atenas. Demora até chegar o momento da aula. Antes, ela encontra alguns conhecidos e sai umas duas vezes para andar de barco com o homem que conheceu no avião. A uma certa altura, em um desses passeios, ele tenta beijá-la. Ela fica completamente imóvel antes de recuar, dizer que não, não está interessada em homem nenhum, que talvez nunca mais se interesse e que mais valoriza a amizade agora.

Quando conta o ocorrido a uma amiga durante o jantar, a amiga pergunta se ela gosta do homem do barco. “Eu disse que tinha ficado tão desacostumada a pensar nas coisas em termos de se gostava delas ou não, que não conseguia responder àquela pergunta.” O que sente por aquele homem, que não a atrai, é uma “ambivalência absoluta”. Esse é um dos poucos momentos em que se coloca numa fala direta e expressa o que pensa – e também uma ocasião rara em que lhe perguntam sobre como se sente. Quem geralmente dá informação detalhada da própria vida são os interlocutores com quem cruza. Um deles, aliás, deixa um indício que nos serve como uma chave para a narrativa de Esboço, ao mencionar que a palavra elipse pode ser literalmente traduzida do grego como “esconder-se atrás do silêncio”. 

Enfim, chega o primeiro dia da oficina de escrita criativa. A narradora-personagem faz a mediação silenciosa e os participantes se revezam em preencher as lacunas. Uma mulher deixa a sua sala dizendo que ela é uma péssima professora. Toda essa história de silêncio e oficina de escrita criativa me lembrou essa entrevista que a Audre Lorde deu à Adrienne Rich, de poeta para poeta, em agosto de 1979. Destaco o seguinte trecho: 

Adrienne: Você está falando de quando era criança? 

Audre: Estou falando de toda a minha vida. Eu evitava sentir. Eu resistia. E num nível tão obscuro, que eu não sabia como falar. Eu me ocupava sondando outras formas de dar e receber informações e o que mais eu pudesse, porque falar não funcionava. As pessoas ao meu redor falavam o tempo todo – e não necessariamente dando ou recebendo algo que fosse útil para elas ou para mim.

Com isso, penso em duas coisas: a primeira é que Audre adotava na vida uma estratégia parecida com a da narradora de Esboço, escondia-se atrás do silêncio; a segunda é que, numa conversa, só é possível dizer algo em relação ao e com o outro. Porque o monólogo é um bloco de texto, e o destinatário é qualquer um que pare para ouvir ou só fique ali. Minha câmera segue desligada, ouço algumas palavras sobre “o conceito de poder em Foucault se aplica a” e logo os meus fones de ouvido estão descansando sobre a mesa. Apanho Esboço para folhear. Avanço para quase o fim do livro, leio: 

“Assim que algo era resumido, tornava-se para todos os efeitos morto, uma coisa inerte, e ela não conseguia mais lhe dar continuidade. Por que se dar ao trabalho de escrever uma longa peça sobre o ciúme, quando a palavra ‘ciúme’ praticamente a resumia?” 

Fala-se agora de Anne, uma dramaturga que também ministrará uma oficina de escrita, com quem a narradora se encontra pouco antes de deixar o quarto em Atenas, no último dia de estadia. Anne está com um problema, que ela chama de “resumir”. “E não eram só os livros, tampouco, isso estava começando a acontecer com pessoas – noutra noite ela estava bebendo alguma coisa com uma amiga, olhou para o outro lado da mesa e pensou, amiga, e consequentemente teve a forte desconfiança de que a sua amizade havia acabado.” 

Resumir, para Anne, é como dizer “eu já conheço e não há mais o que pensar sobre isso”. É claro que a capacidade de síntese e resumo é muito útil. Mas a redução que ela começa a fazer de tudo não é exatamente a expressão de seu conhecimento, mas sua limitação. Como um caminho inverso do processo de aprendizagem. Na aprendizagem, é preciso que as coisas sejam decompostas primeiro, antes da síntese. 

Por exemplo, uma maçã. Em algum momento, eu mordi isso que me disseram uma fruta, entendi que a casca é uma resistência para a polpa arenosa, que no centro há sementes e um cabo, e que o gosto das sementes é um pouco amargo, e talvez o amargo justifique o aviso de “comer essas sementes faz mal”. Comi uma maçã, mastiguei e digeri. Posso dizer que eu pensei a maçã. Com o meu corpo. E agora eu mais ou menos tenho uma ideia de maçãs, apesar de que variam de sabor, textura etc. A maçã era uma espécie de conceito-fruta a ser decomposta para que a complexidade viesse à tona. Enfim, chega de maçã. 

Outro exemplo empírico. O Tito é o filho da minha melhor amiga de infância, a Jamille, e tem cinco anos. Como ele não está frequentando a escola por conta da pandemia, Jamille começou a inserir, em casa, o aprendizado de matemática. Me contou que ele vai ganhar bichinhos de estimação e, pra cuidar deles, vai usar o dinheiro do cofrinho: 

“Nessa atividade, tem muitas coisas que vou introduzindo – soma, multiplicação, conservação, divisão, fração. Fiz um esquema de ábaco com caixa de ovo, sementes de feijão, milho e macarrão. E um ábaco desenhado no quadro branco. Também recortei 10 barrinhas de papel cartão e vou encomendar material pedagógico (material dourado, barras de cuisenaire, tangram etc). A ideia é ir contando os valores, perceber que duas moedas de cinco equivalem a uma moeda de 10, 10 moedas de cinco têm o mesmo valor que uma moeda de 50 e duas de 50, um real. Compreender que cabem 100 centavos em um real. Daí trabalho unidade, centena e dezena, conforme ele for utilizando as sementes e entendendo que cada semente aumenta um número em alguma das três casas. Deu para entender? No mais, passo o dia fazendo perguntas sobre ordem, tamanhos, espessura, localização, formas e algumas perguntas pra estimular o pensamento lógico. Mais ou menos isso. Só está faltando mais ritmo e rotina; mas, para uma mãe na quarentena, venho me saindo bem.” 

Com isso, quero mostrar que Jamille não “resumiu” o aprendizado. Ela o decompôs até a unidade das coisas, antes de ir direto ao conceito, ao apresentar-lhe esquemas prontos e resumos. 

Gostaria de retomar a entrevista de Audre Lorde, a parte em que ela menciona quando deu sua primeira oficina de poesia, na década de 1970, em Tougaloo, uma universidade tradicionalmente frequentada por negros no Mississipi. Transcrevo alguns trechos: 

Adrienne: Como escrever está ligado a ensinar para você? 

Audre: Sei que ensinar é uma técnica de sobrevivência. É para mim, e acho que é assim de modo geral; é a única maneira através da qual o verdadeiro aprendizado acontece. Eu mesma estava aprendendo algo de que eu precisava para continuar vivendo. Eu investigava e ensinava ao mesmo tempo em que também aprendia. Eu me ensinava em voz alta. E isso começou em uma oficina de poesia em Tougaloo. 

(...) 

Adrienne: Você estava com medo em Tougaloo, de ensinar, de encarar sua primeira oficina? 

Audre: Sim, mas era uma atmosfera muito enriquecedora. (...) Como eu estava vulnerável em Tougaloo... Comecei a aprender sobre coragem, comecei a aprender a falar, era um grupo pequeno e nos tornamos muito próximos. Aprendi muito ouvindo as pessoas. Tudo o que eu podia era ser honesta e estar aberta. Por mais apavorada que eu estivesse (...). 

Audre: (...) Era a primeira vez que eu falava sobre escrever; antes disso eu tinha sido apenas ouvinte – parte do meu ser inarticulado, inescrutável; eu não compreendia as coisas no plano verbal, e, mesmo se compreendesse, estava sempre apavorada demais para falar. 

Relembro o que Audre Lorde menciona antes, sobre não estar acostumada a vocalizar e articular os seus pensamentos. Até que teve de aprender a falar sobre o que considerava realmente importante e, para isso, deixou de se esconder atrás do silêncio. Seu ponto de partida foi o de não saber o que dar. Quer dizer, partiu de se colocar presente e em relação com os alunos, como alguém que também aprende. 

Audre: Quando eu fui para Tougaloo, eu não sabia o que tinha para dar e não sabia de onde viria o que eu tinha para dar. Eu sabia que não podia oferecer o que oferecem os professores de poesia comuns, nem queria isso, porque nunca me serviu. Eu não podia oferecer o que professores de inglês oferecem. A única coisa que eu tinha para dar era eu mesma. Me envolvi tanto com aqueles jovens – eu realmente os amava. Eu conhecia a vida emocional de todos aqueles alunos porque fazíamos essas reuniões e isso se tornou inseparável da poesia deles. (...) Mesmo que o contrário tenha-lhes sido ensinado. 

Quando fui embora de Tougaloo, eu sabia que precisava me dedicar ao ensino (...). 

Os três modos de presença que tento recolher em Esboço, enquanto leio, são, em resumo, a presença anônima e muda (da narradora), a monológica e discursiva (dos interlocutores) e a presença redutivista e conceitualista (de Anne). Em comum a esses três modos de presença – ou de retirada – está a elipse, nos termos definidos pelo livro, se esconder atrás do silêncio. Penso que se ocultar ou manter o outro oculto, ou até reduzir as maneiras como se enuncia o mundo a resumos ou conceitos, silenciando o que pode haver de desdobrável e novo é comum, inclusive, aos ambientes que pretendem se dedicar ao pensamento e às técnicas de ensino. 

Finalmente, o encontro no Zoom em que me meti se encaminha para o fim. Sigo anônima e muda e, se fosse resumi-lo, diria pleonasmo. Agora eu já recoloquei os meus fones, religuei a câmera e plasmo minha cara na tela. 

Tento puxar pela memória como é estar entre amigos e rir. Saber os seus nomes e os seus climas, saber deles o que eles são – pelo que são, e não pelo que dizem. Mesmo na memória, cada um desses pensamentos era muito mais positivo, revivificante, curativo e criador. Pensava então que as “técnicas” de ensino deveriam passar, portanto, por dar acesso aos sentimentos criadores. Um jeito para fazer isso, pensei, seria saber pensar e fazer pensar sem conceitos, nas coisas em si, por meio do erro, da surpresa, da fragilidade, abrindo a energia pelo centro, sem resumir ou anular desdobramentos. Pensar fazendo felicidade, que difícil. Mas, só assim.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Esboço é um romance escrito pela canadense Rachel Cusk, publicado no Brasil pela Editora Todavia em 2014. Os trechos da entrevista com Audre Lorde aqui transcritos foram retirados do capítulo Uma entrevista: Audre Lorde e Adrienne Rich, presente no livro Irmã outsider, publicado pela Editora Autêntica em 2019. As citações em itálico avulsas no texto foram retiradas do ensaio Pensamentos de paz durante um ataque aéreo, da super Virgínia Woolf, presente no livro Mulheres e ficção, publicado pelo selo Penguin Classics da Companhia das Letras, em 2019. 

ANA LUIZA RIGUETO, poeta, jornalista e pesquisadora. Especializou-se em Literatura Brasileira na Uerj e, atualmente no mestrado, pesquisa os usos do erótico na poesia contemporânea, em especial nas de Adília Lopes e Natasha Felix. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

veja também

“O inconsciente é o meu terreno, meu território”

Homens do Gesso

Nordeste ficção