Relato

Minha história de luta, esperança e fé

Líder jovem conta sobre sua origem, religião e a criação do Movimento Negro Evangélico de Pernambuco

TEXTO Jackson Augusto

03 de Maio de 2021

Jackson Augusto fundou o canal 'Afrocrente' e fala de política, religião e questões raciais

Jackson Augusto fundou o canal 'Afrocrente' e fala de política, religião e questões raciais

Foto Débora Oliveira/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 245 | maio de 2021] 

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Nascia, no dia 25 de março de 1995, uma criança negra moradora da favela dos Coelhos, um dos lugares mais violentos da cidade, mas também um dos lugares mais potentes e acolhedores que você pode conhecer. Gosto de falar do território que eu piso, pois é dele que nasce quem eu sou, as ruas que caminhei são fontes da minha fé. Costumo dizer que, para quem nasce na favela, ter fé é uma questão de esperança e não de otimismo. A esperança surge da teimosia, da coragem, da luta por um mundo melhor. Ser esperançoso é desejar o fim do medo e da angústia.

Hoje me conhecem como o cara do canal Afrocrente, aquele que fala de política, religião e questões raciais nas redes sociais, mas aqui neste texto queria dizer quem de fato eu sou, meu nome é Jackson Augusto, sou filho de Dona Sueli e Seu Jackson. Neto de duas mulheres de fé, duas mulheres que foram as matriarcas de suas famílias, cresci em uma família em que as mulheres me salvaram da fome e da violência, e lutaram pelo meu acesso à educação e às outras possibilidades.

Fiquei nos Coelhos até meus cinco anos e depois fui parar na periferia de Olinda, mas as férias e finais de semana ainda eram lá nos becos e vielas da favela em que nasci e na qual a maioria da minha família vive até hoje. Cresci entrando nas palafitas para encontrar amigos, ainda na adolescência vivenciei alguns tiroteios, vi operações policiais com homens fardados de preto, com fuzis nas mãos, sem identificação e totalmente mascarados; me lembro de que um dia os tiros começaram do nada enquanto brincava, e tive que entrar em qualquer lugar, qualquer porta, qualquer refúgio.

Agora, imagina ser criado nesse ambiente, com cenas de pessoas correndo, o seu coração disparando, onde a presença do carro da polícia significava corpos mortos, medo e gritaria? Nessa relação dialética com o território em que nasci, eu me lembro dos meus amiguinhos, a gente esperava o final de semana para brincar pelas ruas, eu me sentia em casa, gostava de ir na venda da esquina comprar confeitos e brinquedos, sentia que estava entre os meus, pessoas que me entendiam, que me constituíam.

Eu sempre estudei em escola particular de turmas majoritariamente brancas, cresci na defensiva recebendo os piores apelidos que você pode imaginar, mas também sempre escutei da minha avó que eu tinha que ser melhor do que eles, precisava ser o mais inteligente, o mais estudioso, o mais comportado. Foi assim que entendi a importância dos territórios e espaços que minha trajetória ocupou, a favela era um lugar de acolhida e pertencimento, mas atravessado por muita morte e violência. A escola era o lugar estrangeiro, onde “tiravam onda” comigo, me animalizavam, onde eu tinha que ser extremamente educado e popular para jamais ser violentado e excluído.


Encontro do Movimento Negro Evangélico de Pernambuco. Foto: Lucas Vieira/ Divulgação

O lugar da fé não entra na minha vida, ele constitui a minha existência, sou de uma família que é evangélica há três gerações, uma outra parte da família é católica e alguns não são de nenhuma religião, mas todos são pessoas de fé. Pessoas que precisam continuar acreditando em um mundo que não é definido pelo poder vigente. O lugar da igreja se torna um lugar que constitui quem eu sou, se constrói como o lugar onde eu tenho acesso a outras possibilidades, outras formas de existir e outros mundos. Enquanto na escola eu sou um “quase humano”, dentro da igreja eu fui estimulado a aprender a ler para praticar minha fé, tive iniciação musical muito cedo, porque fazia parte de um coro infantil, vi amigos passarem no vestibular, tive acesso a pessoas com outras classes sociais e origens diversas, fui incentivado a praticar minha oralidade diante do público, aprendi a organizar eventos grandes para muitas pessoas. Percebam que o espaço da igreja contribuiu de forma crucial na minha caminhada como ativista na luta antirracista; afinal, é fundamental saber falar em público, organizar atos e eventos, lidar com pessoas diversas em um mesmo espaço. O meu ativismo e a minha fé nunca foram inimigos, porém o racismo está presente na igreja nas suas mais diversas esferas. Essa contradição dos espaços e territórios que habitamos costumo chamar de “não lugar”, pois nunca existiu um lugar em que eu me sentisse completo, em que a minha humanidade existisse de maneira plena.

Lutar contra as injustiças e ir ao culto nunca foi uma questão dentro da minha casa, sou filho de uma mulher que ficou viúva muito cedo, minha mãe – uma funcionária pública – sempre lutou pelos seus direitos, sempre foi muito ativa dentro do seu trabalho, sempre foi às assembleias do sindicato e costumava me levar tanto para a greve quanto para o culto, a nossa oração era por uma vida melhor, com mais direitos, com mais dignidade, e isso em nenhum momento me distanciava da minha fé, pelo contrário, a minha fé sempre me motivou a ter posições de justiça em favor dos oprimidos.

A fé que não se preocupa com os conflitos sociais é uma fé que silencia o sofrimento dos mais fracos, é a fé que não tem respostas para a fome, a violência doméstica, o racismo, a brutalidade policial. A minha espiritualidade é forjada dentro da minha experiência negra, pobre e nordestina, todas as orações que eu tenho surgem da aflição do meu povo diante do sistema que se levanta contra cada um de nós. Esse sistema faz com que as contas não sejam pagas, as brigas aconteçam, a comida não chegue na mesa, as crianças tenham que trabalhar desde cedo, o presídio e o IML sejam nosso destino.

Nesse contexto, percebi que minhas perguntas e respostas dentro da religião seguiram outros caminhos, que confrontavam a branquitude e seu modo de se organizar dentro da lógica evangélica. Meus posicionamentos políticos e de vida não se encaixavam dentro da lógica hegemônica da igreja, mas eu nunca tive medo de expressar as minhas opiniões.

Agora, imagina um menino negro em uma igreja de classe média, querendo falar sobre justiça social e racismo. Imagina um menino negro em uma igreja, pastoreada por oito homens brancos, querendo falar sobre supremacia branca. Todos sabiam que não daria muito certo, mas eu sou teimoso e comecei a estudar sobre a questão racial no Brasil; lembro que todo 20 de novembro meu antigo pastor postava nas suas redes frases como “não precisamos de um dia da consciência negra, precisamos de 365 dias de consciência humana”, ouvi várias vezes no púlpito um sermão pesado contra as cotas raciais, com direito à citação de Martin Luther King e tudo.

Nunca me calei diante de diversos assuntos, já tinha um envolvimento muito intenso com grupos que pensavam a cidade, a demanda urbana, a fome, a forma de fazer política social a partir da própria comunidade. Lembro que, entre 2013 e 2016, participei de diversas campanhas contra violência doméstica, fizemos diversos fóruns sobre a questão da saúde mental e a depressão, organizamos algumas manifestações contra o abuso e o trabalho infantil. Enquanto isso tudo acontecia, eu também dedicava esse tempo aos estudos sobre o processo de eugenia no Brasil, história do movimento negro brasileiro, conceito de racismo e raça.

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A partir de 2017, surgiram outros desafios, eu comecei a me perguntar: o que a minha religião, a minha fé e a Bíblia tinham a ver com a luta antirracista? Quais as respostas que elas poderiam dar para a experiência negra? Na tentativa de responder a essas perguntas, eu comecei a pesquisar sobre referências negras na fé evangélica e acabei encontrando várias: uma delas foi o grande Agostinho José Pereira, que liderava a Igreja da Divino Mestre no Recife, em 1841, considerada por alguns teólogos negros como a primeira igreja evangélica brasileira. Esse pastor negro, um homem livre e filho de uma ex-escravizada africana, tinha uma comunidade de fé com mais de 300 negros, descobri que o pastor, conhecido como o “Lutero Negro” falava que Jesus, Moisés e Adão eram negros; inspirava-se fortemente na revolução haitiana e fazia um trabalho relevante na alfabetização da comunidade negra na época, até que em 1846 ele foi preso pelo governo e desaparece da história.

Comecei a refletir sobre a história de Agostinho, como ele tinha se posicionado diante do sistema escravista, como ele foi visto como um perigo para a branquitude por conta da transformação que a produção religiosa dele estava propondo para sua época. Imagina você ensinar 300 pessoas negras livres ou libertas a ler e escrever na língua do colonizador? Imagina você usar da religião para emancipar pessoas negras? Imagina você dizer que o Deus adorado pelos brancos encarnou em um corpo negro? Imagina você na condição de escravizado ou oprimido saber que os colonizadores se dobravam diante de um homem negro? Isso é perigoso demais, pois desafia o poder do império e a sua estrutura colonial.


Jackson Augusto também é um dos fundadores do Movimento Negro Evangélico (MNE) em Pernambuco. Foto: Débora Oliveira/ Divulgação

A coragem da experiência negra para usar a religião como instrumento de libertação me mostrou que a leitura dos negros em relação à Bíblia parte de outro lugar da história. Por isso, naquele mesmo ano, na tentativa de aprofundar a incidência sobre o assunto na igreja, eu comecei a tentar dialogar com os pastores da minha antiga igreja, mas escutei que estava doente, porque eu falava muito sobre racismo e precisava de cura para deixar o meu ressentimento de lado. Fui chamado no gabinete pastoral, depois de sofrer racismo de um dos membros da igreja e ter denunciado isso nas redes sociais. Após o episódio, ainda ameaçaram tirar todos os meus cargos na igreja.

Quando eu decidi falar sobre racismo dentro do ambiente eclesiástico, comecei a sofrer sérias perseguições, vi pastores que me acompanhavam desde a adolescência abrirem a Bíblia e defender a escravidão, reconheci ali uma hermenêutica branca de um livro negro, que nada tem a ver com a Europa. Foi quando me juntei a uma irmã de caminhada. Vanessa Barboza era uma jovem batista na época e acreditamos na formação de um espaço coletivo feito por pessoas negras evangélicas de igrejas diferentes, um lugar que a branquitude não pudesse controlar, um refúgio de construção para os negros que são silenciados em suas igrejas. E foi assim que surgiu o núcleo do Movimento Negro Evangélico (MNE) em Pernambuco, o núcleo mais antigo do país.

Começamos com cerca de 10 pessoas, nunca tínhamos pensado em movimento social, nunca tínhamos discutido sobre a questão racial diretamente ligada ao ambiente da igreja evangélica brasileira, percebemos que o desafio era grande, faltavam referências, livros, recursos, suporte e estrutura. Porém, as boas notícias sobre nossa existência se espalharam pela cidade do Recife, muitas pessoas passaram pelo MNE. Depois de muito trabalho, caminhada e diálogo com os movimentos e as igrejas, em 2019, fizemos o nosso fórum anual Fé, Igreja e Racismo, no qual juntamos cerca de 120 pessoas, no Museu da Abolição da cidade. Confesso que fiquei emocionado de ver tanta gente ali para ouvir e trocar ideias sobre algo importante dentro da fé cristã, que é a luta por justiça, que é a identidade da busca pela libertação das opressões, da salvação da morte imputada pelos homens e seus ciclos de violência e desumanização.

O Movimento Negro Evangélico me fez encontrar novos caminhos e narrativas. Me encorajou a falar sobre uma religiosidade que liberta e emancipa pessoas negras, porém, como Agostinho, também seremos perseguidos e presos pelos que têm medo da nossa liberdade, da fé que nos empodera, que nos traz vida, que nos faz caminhar em direção a um lugar em que de fato nós vamos existir por completo. Apesar da experiência hegemônica evangélica no Brasil, posso afirmar que nem todo evangélico é reacionário, conservador e preconceituoso. Existiram muitos evangélicos negros na história que se levantaram e foram cruciais dentro da luta antirracista, como Nelson Mandela, Desmond Tutu, Rosa Parks, João Cândido, Benedita da Silva e tantos outros que a partir de sua fé construíram a luta pela libertação do povo negro.

O Brasil é um país que está passando por uma transição religiosa, os evangélicos já são 31% da população (Datafolha 2019), mas é importante lembrar que os negros são 59% dos evangélicos brasileiros. Nesse contexto, inédito na história do Brasil, é preciso afirmar que é impossível falar de um país antirracista sem pensar os evangélicos negros, se queremos de fato chegar a todos os negros do país nas suas mais diversas formas de existir, precisamos conversar com a igreja negra brasileira.

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A partir dessa necessidade de apresentar a experiência negra dentro da fé evangélica, de comunicar para a juventude negra evangélica uma história que é apagada dentro das escolas bíblicas e seminários teológicos, nasce o projeto Afrocrente, que não é só um canal que produz conteúdo, mas é um espaço de troca de conhecimento, de conexão da Teologia Negra com a juventude dentro da igreja. Importante dizer que o Afrocrente surge da falta de conteúdos acessíveis sobre questões raciais dentro da linguagem evangélica.

 Em um contexto de crescente demanda da luta antirracista, muita gente dentro das igrejas começou a procurar por respostas, e uma das possibilidades mais potentes dentro da tradição cristã é a Teologia Negra, que nada mais é do que um conjuntos de contos, estórias, cantos e ditos feito pelo povo negro, a partir da sua leitura da Bíblia. A Teologia Negra, dentro do contexto evangélico, é a teologia da negritude, a teologia que se levanta para denunciar o racismo nas estruturas da igreja. Porém, ela é o lugar onde o negro pode ler a Bíblia a partir da sua condição existencial, é o território onde nós lutamos por nossa libertação.

O Movimento Negro Evangélico (MNE) de Pernambuco é o núcleo mais antigo do país. Foto: Lucas Vieira/ Divulgação

Foi a Teologia Negra que me apresentou uma religião negra dentro da tradição cristã, onde Jesus não é negro só na sua epiderme, mas na experiência. O corpo do Jesus crucificado pelo Estado, desumanizado pela religião e linchado pelo povo encontra-se com os corpos negros na história da humanidade. A cruz e o tronco se encontram na experiência da morte, do gosto do sangue, da injustiça sistêmica. Essa plataforma dentro das redes sociais tenta formar pessoas, construir referências, incentivar a publicação de livros dentro do campo teológico e religioso, pois é preciso educar as pessoas negras que estão dentro das igrejas, é preciso trilhar caminhos de coragem e libertação. O projeto é essa tentativa, não é um fim, mas é uma forma de fazer as pessoas se organizarem.

Achei importante falar da minha história para dizer que quem eu sou, a minha produção de conteúdo na internet, meus textos, eles surgem do chão da vida, do concreto, de práticas libertadoras e não de teorias ou filosofias descoladas da realidade do meu povo. O menino que foi perseguido dentro da igreja, que nasceu por falar sobre racismo e justiça social, hoje é livre, congrega em uma igreja batista que fica situada no Coque, uma igreja que tem uma pastora negra como vice-presidenta da instituição. Hoje, eu posso dizer que minha fé não foi abalada pelas estruturas racistas que querem nos engolir e silenciar todos os dias, e a minha missão é destruir todas as estruturas que silenciam e matam meu povo. Meu chamado e minha vocação são por justiça plena e abundante para todas as formas de existência no mundo com fé, esperança e amor. 

JACKSON AUGUSTO, ativista da Teologia Negra no Brasil, integrante da coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico, membro da rede Miqueias Jovem América Latina, da Coalizão Negra por Direitos e da Articulação Negra de Pernambuco. Ex-colunista do The Intercept Brasil. Atualmente é coordenador nacional da rede do PerifaConnection e criador de conteúdo no canal Afrocrente @afrocrente.

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