TEXTO JOÃO RÊGO
03 de Maio de 2021
O fotógrafo capturou a rotina dos trabalhadores da indústria do gesso, em Araripina
Foto Léo Caldas
[conteúdo na íntegra | ed. 245 | maio de 2021]
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Em meados da década passada, o fotógrafo Léo Caldas partiu em direção ao polo gesseiro, em Araripina, em busca de um Brasil suspenso no tempo. Encontrou homens cobertos por poeira branca, com seus corpos desgastados e surrados pelo sol. Ao se deparar com os registros 10 anos depois, eles permanecem como um espectro na sua memória. São imagens que datam do passado ou do presente?
Na época em que esteve na região, a pauta traçada pelo fotojornalista era capturar a rotina dos trabalhadores do APL do gesso, localizado no Sertão do Araripe. O território, situado no extremo oeste de Pernambuco, possui as maiores reservas de gipsitas nacionais, sendo responsável por mais de 90% do gesso consumido no país. Ao todo, cerca de 2,5 mil funcionários, além de outros 10 mil indiretamente, trabalham nas mais de 100 fábricas da região.
O fotógrafo encontrou homens expostos ao sol escaldante, utilizando seus próprios corpos como ferramentas de trabalho
Para entender melhor as dinâmicas da indústria, Caldas se hospedou durante quatro dias em Araripina, percorrendo os municípios de Trindade e Ipubi. No processo de apuração, compreendeu que a produção era dividida entre empresas de grande, médio e pequeno porte. Seu acesso a esses locais só foi possível em espaços onde a resistência para registrar as atividades laborais eram menores ou inexistentes. Consequentemente, ele circulou por ambientes que apresentavam os cenários menos providos de maquinários e equipamentos adequados para o serviço.
Foi com esse teor documental e investigativo que o fotógrafo encontrou homens expostos ao sol escaldante, operando máquinas sem equipamentos de proteção, ou utilizando seus próprios corpos e mãos como ferramentas de trabalho. Segundo Caldas, os personagens se mostravam inquietos e descontentes, não pela sua presença, mas pela situação degradante a que estavam expostos.
Sem concepções prévias, o método de Léo Caldas consistiu na sua capacidade de observar o espaço
O fotógrafo buscou nos contrastes espaciais formas de narrar visualmente esse contexto sensível. Em capturas de planos abertos, os raios solares ganham contornos dramáticos, enquanto os close-ups enquadram os rostos franzidos e pintados pelo branco do gesso. As composições estabelecem relações diretas e simbióticas entre o homem, seu ofício e a natureza árida do entorno.
Formado pela prática adaptativa do fotojornalismo, Caldas conta que não houve ideações prévias. Seu método intuitivo consistiu em observar e capturar. Apenas o preto e branco foi adicionado posteriormente no tratamento das fotografias. É ele quem potencializa a expressividade pictórica dos enquadramentos em um jogo de luz e sombras nos planos gerais.
O fotográfo só teve acesso a locais onde a resistência para registrar as atividades laborais eram menores ou inexistentes
Em relação aos retratos, a ideia era traduzir nas feições dos trabalhadores uma certa claustrofobia imanente às atividades. Os homens posam e encaram de perto as lentes da câmera. Mais que um caráter denunciatório, seus olhares revelam uma cisão profunda na ideia de progresso histórico do Brasil. Foi diante desse limbo temporal que as fotos não envelheceram na visão de quem as tirou, mesmo tendo se passado uma década.
Durante esse período, por exemplo, projetos importantes como o Neve no sertão: a experiência do MPT na (re)configuração do ambiente do trabalho do maior polo gesseiro do mundo propuseram iniciativas dialógicas na busca de melhorias para a região. Em 2020, a crise do coronavírus fez com que 80% das vendas do polo caíssem, segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco.
Os retratos buscam traduzir nas feições dos trabalhadores uma certa claustrofobia imanente às atividades
A paralisação do setor da construção civil diminuiu o mercado consumidor do produto, impulsionando um elevado número de demissões. De acordo com o Sindicato das Indústrias de Gesso, a estimativa foi de corte de 50% na força de trabalho, com menos de 10% das fábricas mantendo seu funcionamento. Para conter os impactos, empresas desenvolveram planos de contingência e o governo estadual injetou recursos em uma tentativa de retomada nos períodos de flexibilização das atividades.
No período em que foram feitas, as fotografias de Léo Caldas não necessariamente retratam as nuances dos processos políticos e econômicos que seguiram ocorrendo no Araripe. Elas propõem um olhar crítico a partir dos principais impactados por essas movimentações. Nas próprias palavras do fotógrafo, foi justamente a “força humanitária da fotografia em nos ajudar a entender o lado humano” que norteou o seu trabalho na época e o fez retornar aos registros na atualidade.
As composições estabelecem relações diretas e simbióticas entre o homem, seu ofício e a natureza árida do entorno
As imagens continuarem pertinentes durante a pandemia – que expôs, entre tantas contradições, a situação precária dos entregadores de plataformas de delivery – só reforça seu caráter amarguradamente atemporal. Seja na metrópole ou no sertão, o homem, seu ofício, as tecnologias ou a falta delas permanecem sendo mediadas por relações precárias e injustas.
Observar as fotografias de Léo Caldas não é esbarrar em um registro estático, específico ou preso no passado distante, mas se defrontar com um presente em curso. Um convite para questionar o permanente ciclo de condições voláteis ao qual os trabalhadores vêm sendo submetidos ao longo dos anos. Em outras palavras, um acerto de contas com a ideia de desenvolvimento e prosperidade na periferia do capitalismo.
LÉO CALDAS, fotojornalista e documentarista.
JOÃO RÊGO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.