CONTINENTE E sobre sua decisão de permanecer morando em Fortaleza, embora desenvolva também trabalhos no Sudeste?
SILVERO PEREIRA Acho que hoje, por exemplo, trabalho muito mais no Sudeste do que na minha própria região. Mas a geração que vem antes da minha falava que, para ser artista, era preciso se mudar daqui, que era preciso morar no eixo Rio-São Paulo, se quisesse ser um artista conhecido, de renome. Acho que a minha geração já prova o contrário, já vem para dizer que é possível continuar morando no seu lugar, no lugar que você gosta, que tem prazer, onde construiu os seus laços e suas amizades, onde você se consolidou. E você pode continuar trabalhando fora também. Eu posso continuar indo fazer trabalhos no Rio e em São Paulo, mas a minha casa vai ser aqui. Primeiro, por esse lugar de afetividade, de amizades que eu tenho; segundo, por um lugar de condição de vida também. O custo de vida para o lado de cá é muito inferior ao do Sudeste. É muito mais tranquilo viver no Nordeste que no Sudeste, onde você é engolido por uma máquina de capitalismo e consumismo muito forte. Acho que tanto eu quanto outras figuras, como o próprio Irandhir (Santos, ator pernambucano), Titina (Medeiros, atriz potiguar), tanta gente massa e maravilhosa ainda hoje continua morando nas suas cidades. A gente prova a essa outra geração que é possível continuar trabalhando e vivendo onde quiser estar, no seu lugar.
CONTINENTE Se você fosse escolher uma música para ser a sua, qual seria?
SILVERO PEREIRA Deixa eu ver. Eu acho que talvez O mundo é um moinho (1976), do Cartola. Primeiro, por essa coisa de ele ter escrito para a filha, em uma situação que ela queria viver. Acho que isso me remete muito à minha história também, de como a minha mãe teve que lidar com a minha decisão de sair de casa. Como o mundo gira, o mundo capota, o mundo é uma bola... O mundo é esse moinho e as coisas podem dar certo, como também podem dar errado, mas existe um carinho gigantesco ali naquela canção. E acho que aquilo me remete muito à minha mãe.
CONTINENTE Por falar em música, no espetáculo BR Trans, existe uma configuração da música como dramaturgia e não como pano de fundo da peça. Fale um pouco sobre isso.
SILVERO PEREIRA A música sempre esteve presente na minha vida. Meu pai foi uma figura muito ligada à música. Na nossa família, lembro que a música foi introduzida pelo meu pai. Ele foi a pessoa que preferiu comprar um som, uns discos, para que a gente ouvisse coisas dentro de casa. Toda referência musical que tenho, toda a lembrança musical, vem de meu pai. As músicas que tocavam na minha infância eram emblemáticas. Falavam de coisas importantes. Então, levei isso para o teatro também. Quando estudei, principalmente a partir do teatro de Brecht, onde a música é dramaturgia para a cena, não é pano de fundo só para criar atmosfera, é para continuar falando sobre o assunto, resolvi que BR Trans seria um ponto específico nisso. É a primeira peça em que resolvi utilizar a música como dramaturgia e, principalmente, porque, além da música como dramaturgia, foi a minha primeira experiência como cantor, quando decidi me dedicar também ao estudo da música para além de atuar, mas também para cantar. Desde esse processo, que é de 2012 para cá, venho pesquisando mais sobre o Silvero cantor.
CONTINENTE A partir de uma bolsa do Ministério da Cultura e da Funarte, você foi ao Rio Grande do Sul e lá, chegou a dar aulas de teatro no Presídio Central de Porto Alegre (RS) para travestis, transexuais e seus companheiros. Como foi essa vivência? E de que maneira ela atravessa o seu trabalho?
SILVERO PEREIRA Foi muito engrandecedora, porque fui para lá não sabendo de absolutamente nada. Eu não conhecia a Região Sul, nunca tinha pisado em Porto Alegre. Fui acolhido por duas instituições, uma delas é a Somos, do Sandro Ka, e ele me apresentou à Igualdade, outra instituição muito importante lá, da Marcelly Malta. Foi ela quem me fez o convite. Marcelly tem esse projeto de levar ações para dentro do presídio e ela me falou sobre as ações que estava realizando e se eu gostaria de contribuir. Como eu estava na cidade estudando, trabalhando e pesquisando sobre esses assuntos, achei que poderia ser mais uma oportunidade de entender melhor sobre esse universo. Acho que me atravessou de diferentes formas. Primeiro, pelo lugar do afeto mesmo, de corrente, de poder doar alguma coisa que você tem e que acha importante. E o teatro é muito importante para mim. O mais importante e mais interessante nessa relação era poder chegar lá e oferecer para aquelas pessoas o que o teatro me deu, que foi o lugar do carinho, do amor, do profissionalismo, de me sentir uma pessoa maior. Não uma pessoa melhor, mas uma pessoa maior, o que foi me dado depois que comecei a fazer teatro. Isso me atravessou nessa perspectiva de querer oferecer às pessoas aquilo que me faz bem, foi para isso que fui para dentro do presídio, para conhecer essas meninas e esses rapazes e passar um pouco para eles desse bem que o teatro me faz.
CONTINENTE A construção textual de BR Trans também passa por essa vivência?
SILVERO PEREIRA Tem a ver com vários aspectos. BR Trans é uma peça sobre como o Silvero foi atravessado durante 10 anos por esse universo. Comecei a produzi-la, em 2012, mas, até 2002, eu não tinha nenhum contato com questões de militância, não sabia absolutamente nada sobre lutas em defesa da comunidade LGBTQIA+. Eu já era artista e assumidamente LGBT, mas não fazia parte de nenhum movimento. Quando comecei a fazer trabalhos nessa linha, fui levado para dentro da militância pelas próprias instituições aqui do Ceará, no caso o Grab (Grupo de Resistência Asa Branca) e a Atrac (Associação das Travestis do Ceará). Essas duas instituições me acolheram, começaram a fazer seminários e projetos em que eu estivesse dentro. Fiquei 10 anos no movimento, trabalhando a arte em função disso. Então, o BR Trans, na verdade, é uma releitura dessa década do Silvero sendo atravessado pelo lugar de militância, do artista e militante. É uma peça que fala sobre como o Silvero mudou a perspectiva dele de visão de vida e de comunidade nos últimos 10 anos.
Silvero Pereira na peça BR Trans. Imagem: Divulgação
CONTINENTE Como teve início o Coletivo As Travestidas?
SILVERO PEREIRA O coletivo surgiu por volta de 2000, quando tenho contato com uma obra do Caio Fernando Abreu, que é Dragões não conhecem o paraíso (1988). Dessa obra, conheci o conto Dama da noite, que transformei na peça Uma flor de dama. Essa peça é muito mais para criticar a classe artística cearense, que criticava as pessoas que quisessem fazer papéis femininos no teatro. A classe artística meio que demonizava isso e colocava essas pessoas para fora do teatro, dizia que ali não era o lugar delas, que não estavam ali para fazer teatro, o que estavam fazendo era esconder suas identidades, usando a arte para isso. Muitas dessas meninas abandonaram o teatro por causa disso. Montei a peça para criticar essa relação da classe artística com o universo LGBTQIA+, principalmente com o universo drag, transformista. Entrei na universidade, onde conheci pessoas que tinham o pensamento parecido com o meu. E a gente foi se juntando e criou o Coletivo Artístico As Travestidas. As Travestidas se configura em 2008. Uma flor de dama é de 2002, mas, em 2008, me reúno com essas pessoas e a gente vira o Coletivo Artístico As Travestidas. Fizemos esse movimento até hoje com espetáculos que questionam não só a classe artística, porque acho que hoje ela já mudou bastante, mas principalmente a sociedade, sobre os lugares de preconceito em que a gente vive. O coletivo deixou de ser um grupo de teatro para ser um coletivo artístico, porque a gente acabou virando peça de teatro, show, música, festa, bloco de carnaval… Hoje, somos o maior bloco de carnaval, em Fortaleza, que é o Bloco das Travestidas, que leva mais de 20 mil pessoas para a praia, para curtir as nossas músicas. Com músicas que fazem discussões políticas, que travam questões a serem levantadas mesmo em uma festa popular. No repertório, só tem músicas de autorxs a favor do movimento LGBTQIA+. Acho que o coletivo serve para isso, para a gente se divertir, questionar e provocar também.
CONTINENTE Em BR Trans, você diz: “Gisele nasce como uma personagem, só que com o passar do tempo vai se apropriando da minha vida de uma forma para além do palco”. Comente esse processo.
SILVERO PEREIRA Na verdade, Gisele é uma figura que, para mim, se concretiza durante esse processo do Uma flor de dama, e de formação desse coletivo. Mas acho que sempre existiu na minha personalidade desde pequeno, porque lembro que, quando eu era criança, tinha muita dificuldade de me identificar com o homem que as pessoas diziam que eu tinha que ser, como a sociedade dizia: “Você precisa ser homem. Homem se comporta assim, homem age assim”. Eu não me identificava com essas imagens, essas regras masculinas que a sociedade diz que a gente tem que ter. Desde pequenininho, eu era assim. Quando tenho a possibilidade de fazer o meu trabalho artístico, a partir de Uma flor de dama, a partir d’As Travestidas, consigo colocar Gisele para fora. Gisele passa a ser, para mim, uma personificação daquilo que eu já era desde pequeno, mas isso é uma identidade artística. Gisele não é uma identidade de gênero do Silvero. Não sou travesti, não sou transexual. A Gisele é uma personalidade artística drag queen, que faz parte do Silvero, assim como o Carlito do Charlie Chaplin. É muito mais nessa perspectiva.
CONTINENTE Como você percebe as reivindicações de artistas travestis e transexuais por mais representatividade nos palcos e em outros espaços artísticos e midiáticos, como o cinema e a televisão?
SILVERO PEREIRA Acho superválido. Acho muito coerente, principalmente pelo fato de que, se nós não tomarmos a decisão de que precisamos abrir mão desses espaços, elas nunca serão contratadas. Eu mesmo tenho entrado no processo de reeducação sobre isso. Ao longo da minha história, fui realizando projetos que hoje vejo que não tenho mais porque estar dentro deles, principalmente porque me reeduquei e compreendo mais. Ainda não compreendo tudo, quero deixar isso bem claro. Não compreendo tudo, ainda cometo uma série de erros com relação a isso, mas, pelo menos, tenho me aberto a essas questões. Tenho compreendido o meu papel também em dizer não. E que esses “nãos” que eu digo são fundamentais para ser um aliado nessa luta.
CONTINENTE Como era a sua vida em Mombaça? Imagino que seja muito importante para o artista que você é.
SILVERO PEREIRA Eu tive uma vida muito difícil. Fui uma criança de uma família pobre de Jó, com um pai pedreiro e uma mãe lavadeira; um pai analfabeto e uma mãe semianalfabeta e os quatro filhos. Tive que começar a trabalhar aos nove anos para ajudar na renda da família, assim como os meus irmãos, que também tiveram que passar por esse processo de trabalho infantil, até eu entender que a minha mãe e meu pai abdicaram de muitos dos sonhos que eles poderiam ter realizado para que os filhos tivessem condições de realizar outros sonhos. Então, supercompreendo o lugar da minha família de permitir que eu estudasse para que chegasse em um lugar melhor dentro daquela estrutura. Acho que foi o que aconteceu. Até os meus 13 anos, vivi na minha cidade, dentro de uma situação paupérrima, sem ter o que comer, sem ter o que beber. Sou da década de 1980, então, peguei a seca do Nordeste muito cruel. Uma seca que nos fazia andar 10 km e entrar em uma cacimba para pegar água potável. Eu vi isso acontecer, sou dessas crianças que carregam o pau nas costas com dois baldes, o famoso “galão”, como a gente chama balde de água nas costas. Fui uma criança que passou por todas essas histórias. Foi uma vida muito sofrida, mas essa adversidade toda não me impediu de chegar aos lugares que estou hoje, principalmente, por reconhecer os esforços da minha família. Esforços do meu pai e da minha mãe para me fazerem estudar.
CONTINENTE Seus familiares ainda vivem na sua cidade? E como é a recepção dos moradores de Mombaça quando você chega por lá, agora sendo bastante conhecido?
SILVERO PEREIRA Minha família mora toda lá. Dois sobrinhos meus moram em Fortaleza, onde fazem faculdade. Mas o restante todo ainda mora na cidade, na mesma rua em que eu nasci. Desmistifico muito esse lugar do famoso para a cidade. Acho que ter esse lugar em uma cidade como Mombaça, que é uma cidade de 40 mil habitantes, cujo centro tem 25 mil habitantes, poderia distanciar as pessoas de quem realmente é o Silvero. O que mais me interessa criar na cabeça das crianças que moram na minha rua, que é uma rua também muito pobre, é permitir a elas olharem para mim com a perspectiva de: “Caramba, esse garoto saiu daqui, de uma situação completamente negacionista para ele, nada poderia dar certo e olha o lugar a que ele chegou”. Quero construir sempre essa imagem de representatividade para essas crianças, de que é possível, sim, vencer na vida, fazer os corres e as lutas para conseguir coisas importantes. Sento na esquina do churrasquinho, as pessoas podem entrar na minha casa a hora que quiserem e falar comigo. Vou para a rua e falo com as pessoas, não crio uma imagem intocável e inacessível. Isso, no momento em que a gente ainda podia andar, né? Porque agora ninguém pode mais.
CONTINENTE Das memórias de quando morava na Rua Paes de Andrade, em Mombaça, o que você leva para os palcos e sets de filmagem?
SILVERO PEREIRA Acho que o que mais levo é o prazer da brincadeira. Fui uma criança durante muito pouco tempo da minha vida; até meus nove anos, eu fui criança; dos meus nove aos 25 anos, tive que ser adulto. Muito adulto, para poder alcançar os lugares que conquistei. Então, quando tenho oportunidade de realizar os meus trabalhos no palco, eu me permito voltar a ser criança de novo. Acho que o mais bonito da minha profissão hoje é me permitir imaginar, sonhar, criar, que é uma coisa que tive que bloquear muito cedo na minha vida.
CONTINENTE Recentemente, A força do querer foi reprisada na Rede Globo. Essa é a sua primeira novela. Como é, a partir do teatro, fazer novela?
SILVERO PEREIRA Na verdade, essa não é a minha primeira novela, é a minha novela. Só fiz essa. Sempre dizem: “Vi a sua primeira novela”. Como ultimamente apareço muito na televisão, as pessoas acham que já fiz milhões de coisas, mas não, fiz uma novela e tenho trabalhado bastante no streaming agora. E quem me levou para a novela foi o teatro. Eu estava em cartaz com a minha peça BR Trans e a Glória Perez resolveu ir assistir por conta própria, por iniciativa dela. Ela assistiu e não sabia o que teria para mim, mas me disse: “Caramba, você é um ator incrível, quero escrever para você, quero você na novela. Não sei o que vai ser, mas quero escrever para você”. Ela escreveu Nonato/Elis para mim. Não existia o personagem. Ela já tinha escrito 18 capítulos da novela, tanto que só entro no 18º. Ela escreveu com muito carinho, começou a escrever o Nonato com muito cuidado, sabendo que era a minha primeira experiência, até que o personagem foi caindo nas graças do povo. As pessoas foram curtindo e ela começou a dar mais corda, criando mais cenas. E o personagem ficou entre os mais queridos, tanto que agora, na reprise, é um dos que tiveram pouquíssimas cenas cortadas. Hoje, a sensação que tenho é de que gravei mais do que gravei naquela época, porque como a novela foi resumida e praticamente nenhuma das minhas cenas foram cortadas, apareci mais do que na época em que a novela estava no ar.
Em cena, ao lado do ator Humberto Martins, na novela A força do querer (2017), da TV Globo. Imagem: Reprodução
CONTINENTE Muitos nomes ligados às artes foram assistir a BR Trans. Qual a importância da recepção da cena artística para o teatro brasileiro?
SILVERO PEREIRA Acho que, principalmente para o teatro do Nordeste, essa validação foi muito significante para mim. Fui para o Rio de Janeiro, para entrar em temporada por conta própria, era a primeira vez que eu entrava no Rio de Janeiro com uma peça, furando uma bolha gigantesca. De repente, quando pessoas aqui no Nordeste começaram a ver Marieta Severo, Renata Sorrah, Marco Nanini, Camila Pitanga, Bruna Marquezine indo assistir ao meu espetáculo, começaram a olhar assim: “Caramba, o Silvero está fazendo sucesso lá no Rio de Janeiro. Olha que bacana, as pessoas estão indo assistir a ele. Pessoas de peso, pessoas importantes, estão indo”. Não só o Rio de Janeiro, onde virou um grande boom, todo mundo “se estapeava” para conseguir ingresso, mas aqui no Nordeste passou a ser muito importante também. A gente fala de teatro brasileiro, teatro brasileiro não é o que se produz no Rio e São Paulo. Isso é uma crítica realmente, porque para que as peças estejam em grandes prêmios do teatro brasileiro, elas precisam entrar em cartaz no Rio e em São Paulo. É como se nós, que produzimos no Nordeste, não estivéssemos dentro do teatro brasileiro. Se a gente pegar todas as listas das premiações, você só está dentro delas se entrou em cartaz nessas cidades. Não interessa se você ficou cinco, 10, 15 anos em cartaz em Fortaleza, São Luís e no Recife… É como se você não fizesse parte disso. Então, é importante, porque essas pessoas foram lá e validaram o projeto de um artista nordestino.
CONTINENTE O que a sua mãe, dona Rita Invenção, significa para você, Silvero? Você sempre se refere a ela de maneira especial. Ela deve ter um orgulho danado de você.
SILVERO PEREIRA Ah, tem sim (abre um sorriso). Minha mãe é talvez uma das figuras que mais me dão forças, porque ela é uma grande guerreira. É essa mulher semianalfabeta, que estudou até o terceiro ano do ensino básico, que se viu grávida, apaixonada e resolveu largar tudo para cuidar de uma família. E, mesmo cuidando dessa família, é uma mulher extremamente inteligente, extremamente lúcida sobre tudo o que diz. Essa lucidez fez com que ela tomasse a decisão de que faria absolutamente tudo para que os filhos conseguissem estudar. Mesmo com todas as dificuldades que a gente tinha, ela não abria mão dos estudos para nós. Ela sempre disse: “É assim que a nossa vida é. É assim que a gente caminha, mas espero que vocês tenham um resultado maior do que eu e o seu pai tivemos”. Isso sempre foi muito claro. Me sinto muito em dívida com essa mulher, por ela ter aberto mão da vida dela para que os filhos pudessem ter uma vida melhor. A pessoa para quem mais significa lutar pelos sonhos e esses sonhos não necessariamente são os seus sonhos, mas a realização dos sonhos dos outros que também passam por você. Acho que isso é bonito nela também.
CONTINENTE E sobre o filme Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, comente sobre a construção de Lunga, personagem que encanta tanta gente.
SILVERO PEREIRA Ah, Lunga foi um grande presente. Sempre quis trabalhar com Kleber. Ele e Juliano vieram conversar comigo, tinham esse personagem. Eu quase não fiz o filme por outras decisões, mas acabou que fiz o teste. Aparentemente, o teste não tinha dado certo, mas depois a gente – ele, Juliano, Emilie (Lesclaux, produtora) e eu – teve a oportunidade de conversar em São Paulo (SP) durante um jantar. Nessa conversa, consegui convencê-los do tipo de personagem que queria criar e isso deu supercerto. Uma coisa muito engraçada com relação à minha formação como ator é que nunca passei em teste nenhum. Nunca fui aprovado em nenhum teste de elenco para nada, sempre fui chamado porque tive oportunidade de conversar com os diretores e falar a minha percepção de como acho que os personagens teriam que ser. A criação de Lunga veio disso, essa personagem existe porque teve uma conversa prévia muito importante com os dois diretores e principalmente com a Rita Azevedo, figurinista, e a Tayce Vale, caracterizadora. A gente ficou um mês trocando imagens pelo Whatsapp, conversando sobre o que se passava na cabeça delas e o que se passava na minha cabeça para chegar a um denominador comum e ir para o set fazer Lunga.
CONTINENTE Em entrevistas, você comenta que não percebe Bacurau como uma alegoria especificamente deste tempo, do Brasil de agora, mas do Brasil de sempre. Qual seria esse “Brasil de sempre” que o filme alegoriza?
SILVERO PEREIRA Acho que é o Brasil de todas as cidades, porque, às vezes, a gente pensa no Brasil só no âmbito das capitais ou no âmbito federal. Mas, se a gente for pensar no Brasil de raiz, ainda hoje existe extremo coronelismo, nepotismo, clientelismo. Quanto menor a cidade for, mais esse lugar do poder que o político exerce sobre as pessoas vai ficar mais evidente. Se você não apoia o vereador, o prefeito, você vai amargar quatro anos fora dessa estrutura, porque não apoiou aquela pessoa, mesmo que ela esteja errada. Se você não a apoiou, vai amargar isso. Acho isso um absurdo. Esse sistema político e opressor existe demais no nosso país. Sou de uma estrutura assim. Na década de 1980, era exatamente isso que eu vivia na minha infância e adolescência. Acho que a minha cidade mudou bastante, mas ainda percebo isso, não só nela, como em outras que visito bastante, principalmente no interior. Esse poder que os políticos tentam exercer sobre as pessoas, de cabresto mesmo, de que são poderosos, os “donos da cidade”. Isso não é só ficção, é um Brasil que ainda existe.
No longa Bacurau, interpretou o icônico personagem Lunga. Imagem: Reprodução
CONTINENTE Na premiação de Cannes, você levou o Ceará com você, vestindo designers do seu estado. Queria que você comentasse essa sua escolha, que uma é constante em suas aparições.
SILVERO PEREIRA Em termos de religião, por exemplo, sou filho de Xangô com Iansã, mas também carrego um Exu muito forte na minha história. Então, me considero uma figura muito de abertura de caminho. Carrego as pessoas comigo, quero que as pessoas que trabalham comigo também sejam vistas nas coisas que eu faço. Quando vou participar de qualquer projeto que seja de visibilidade, que seja grandioso, quero levar as pessoas em que acredito comigo. A decisão de ir para Cannes vestido de Ceará era como uma armadura do meu estado mesmo. Eu queria estar vestido da minha história, da minha regionalidade e provar para as pessoas que não sou só uma figura, sou uma região inteira. Sou um estado inteiro presente. Isso me deixa muito orgulhoso. O vestido criado por Lindemberg (Fernandes, estilista) acabou sendo um dos sete mais elogiados do festival, ao lado de Mariah Carey, Penélope Cruz, Juliane Moore. E foi muito gratificante.
CONTINENTE Em 2019, durante o prêmio Men of the year, da GQ, no seu discurso, você disse “O meu lado feminino empodera o meu lado masculino”. Qual é o lugar da masculinidade hoje, Silvero?
SILVERO PEREIRA Acho que o lugar da masculinidade hoje é o de dar espaço para o do feminino. Acho extremamente importante que os homens compreendam a força e a importância da mulher na história. Em todas as questões históricas, a gente vai sempre ver a mulher como uma figura extremamente importante para as mudanças que foram realizadas. E que os homens, na verdade, só absorveram essas histórias e colocaram seus nomes impressos em basicamente todas as contribuições que foram feitas. Eu, por exemplo, venho de uma história de uma mulher. Tenho pai, tenho mãe, mas foi uma mãe que segurou toda a onda. E, quando digo que meu lado feminino empodera o meu lado masculino, é porque a minha estrutura inteira está construída por mulheres fortes. A minha mãe, as minhas avós, as minhas irmãs são as figuras mais presentes. A quantidade de professoras que tive comparada ao número de professores. O número de mulheres foi muito mais significativo do que o número de homens. Socialmente, a estrutura em que a gente vive é muito mais formada por mulheres guerreiras e transformadoras do que por figuras masculinas. Mas os homens tendem sempre a utilizar o lado machista, patriarcal, como força da nossa sociedade.
CONTINENTE Desde o início da quarentena, o público pôde acompanhá-lo em várias performances nas suas redes sociais. Como acontece toda essa produção?
SILVERO PEREIRA Na verdade, como aprendi no teatro que eu tinha que entender tudo sobre o meu ofício, o teatro me ensinou a escrever, dirigir, atuar, vender ingresso, operar luz, operar som, criar figurino, criar cenário, tudo isso. Então, sou ator, me considero ator, mas meu professor de teatro me disse que eu tinha que aprender tudo, porque, caso precisasse, poderia lidar ao menos medianamente com essas coisas. Agora, dentro de casa, estou tendo oportunidade de fazer isso mais uma vez. Os meus vídeos são roteirizados, pensados, produzidos, dirigidos, encenados, editados por mim. Tudo aqui em casa, e são coisas muito rápidas, no máximo 20 minutos para fazer um vídeo. Quando vou fazer, já vou com tudo pensado na minha cabeça, já tenho a estrutura. E faço tudo pelo celular, não utilizo outra ferramenta. Geralmente, utilizo filtros de rede social, um aplicativo de edição e vou brincando com isso. Vou também driblando a utilização desses materiais. Às vezes, tenho que usar um filtro, mas preciso usar um fundo; aí, uso o fundo verde com o filtro da rede social, depois aplico no fundo verde chroma key à imagem que queria aplicar... Já vou para a produção, sabendo como vai ser a finalização. Por isso, se torna um pouco mais rápido.
CONTINENTE No Show dos famosos, do Domingão do Faustão, você interpretou Edith Piaf, Wesley Safadão, Steven Tyler, Ney e outros artistas. Depois dessa participação, você viajou pelo interior do Ceará com esses personagens. Como foi essa experiência?
SILVERO PEREIRA Foi uma grande experiência como cantor, performer e ator também, porque o Show dos Famosos é isso. Foi um grande desafio. Entrei como a pessoa com menos experiência de música, tinha três anos que eu tinha começado a cantar. A segunda pessoa com menos experiência tinha 15 anos de musical. Eu estava ao lado de grandes cantores como Sandra de Sá, Mumuzinho, Tiago Abravanel, Alessandra Maestrini, Naiara Azevedo, Paulo Ricardo. Falei: “Caramba, não vou dar conta disso. Não tem perigo. Mas já estou aqui, sou uma bicha atrevida mesmo, então, vou segurar a onda e ir até o final!”. E ameacei ganhar o programa. Fui vice-campeão por dois décimos apenas, empatando na internet, empatando na plateia. Foi muito especial, porque sou uma figura muito dedicada ao meu trabalho. Não desisto fácil das coisas. E achei que essa experiência não deveria ficar só ali no programa, acabei juntando esses personagens e montando um show, que é o SilverShow, e passei a circular pelo interior. Botava tudo dentro do meu carro, com uma equipe muito pequena, de quatro, cinco pessoas e levava as apresentações para as cidades. Era muito legal, porque aquilo que as pessoas tinham visto na televisão elas estavam conseguindo ver a poucos metros.
CONTINENTE Embora seu repertório seja diverso, por seu ativismo e por muitos de seus trabalhos serem relacionados às lutas sociais, sobretudo às lutas contra a LGBTfobia, você acha que uma parcela do mercado tenta restringir suas interpretações a personagens LGBT?
SILVERO PEREIRA Acho que o mercado tende a fazer isso. Para mim, é importante entrar no mercado e causar essas implosões. Aceitar esses personagens é importante para mim, principalmente porque, aceitando esses projetos, esses personagens, consigo, dentro desses trabalhos, me impor e fazer os meus questionamentos. Em muitos trabalhos que têm chegado para mim, por exemplo, que me chamaram para fazer, recentemente, eu já falei assim para roteiristas e diretores: “Olha, até faria esse projeto, desde que vocês tirassem essa ou essa outra fala, porque essas falas vão contra o que penso sobre a importância de se falar para a comunidade hoje em dia, para a sociedade hoje em dia. Se vocês tirarem essas falas, aceito fazer o projeto com vocês”. Então, para mim, hoje é muito importante saber que sou um artista que, no início da carreira do audiovisual, só baixei a cabeça e entrei para fazer, e agora sei que tenho voz dentro desses projetos. Sou uma figura respeitada pela voz que tenho, de poder falar o que penso. E o que penso é importante, inclusive, para o resultado final dos projetos.
CONTINENTE E para 2021, o que você está preparando?
SILVERO PEREIRA Tem o filme que fiz no Maranhão, no final de 2019, que é o De repente drag. Deveria ter estreado, mas, por conta da pandemia, está ainda em processo. Deve estrear assim que a pandemia passar. Depois, eu fiz o meu primeiro filme no Ceará. Sempre falei: “Caramba, nunca produzi nada no audiovisual do meu estado”. Para mim, isso era muito problemático, ficava triste com isso. Mas consegui, finalmente, fazer um projeto com Halder Gomes, diretor de Cine Holliúdy (2013), que foi o Bem-vinda a Quixeramobim. A gente filmou em novembro de 2020, com Monique Alfradique, Max Petterson, Luis Miranda, uma galera muito bacana. Entre dezembro e janeiro, eu fui para o Rio. Foi a primeira vez que viajei nessa pandemia a trabalho, para fazer o Me tira da mira, que é o filme da Cleo, com um elenco estrelar. No elenco, acabei ganhando um grande amigo, o Kaysar (Dadour). A gente se conheceu durante as filmagens e nos tornamos grandes amigos. No elenco, tem Cleo, Fiuk, Viih Tube, os dois estão no Big Brother Brasil, Kaysar, Stênio Garcia, Cris Vianna, Valeska Popozuda, MC Rebecca, Gkay, um monte de gente maravilhosa.
ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.
EXTRA: Confira ensaio fotográfico de Jennifer Glass com Silvero Pereira.