Portfólio

Dias & Riedweg

Uma engrenagem criativa movida pelos encontros

TEXTO Bárbara Buril

01 de Abril de 2021

Frame do vídeo 'Funk Staden' (2007)

Frame do vídeo 'Funk Staden' (2007)

Imagem ATELIÊ DIAS & RIEDWEG/CORTESIA GALERIA VERMELHO

[conteúdo na íntegra | ed. 244 | abril de 2021]

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A arte, território atravessado por uma série de perguntas não completamente respondidas e respondíveis, como “em que consiste?”, “quem faz?” e “para que serve?”, revela-se nos trabalhos da dupla de artistas Dias & Riedweg como um lugar de encontro, criado de maneira compartilhada, com o serviço de questionar o centro do mundo a partir de suas bordas. Se as perguntas que atravessam a arte podem ser respondidas de muitos modos, inclusive sob o risco sempre à espreita de que as respostas se contradigam (e isso acontece muitas vezes), é porque a arte se expandiu para além dos terrenos confinados das “Belas-Artes”, do autor como “proprietário da obra” e da obra como “objeto a ser fruído” pelo espectador. Essa espécie de “virada relacional” que atravessa a arte contemporânea se materializa de maneira emblemática na obra dos artistas Maurício Dias e Walter Riedweg, que há 27 anos trabalham juntos a partir de seus encontros com outras pessoas.

Antes de se encontrarem com elas, no entanto, Maurício, que é carioca, se encontrou com Walter, nascido em Lucerna. Ambos se conheceram na Basileia, na Suíça, onde moravam. Maurício, na época, fazia mestrado na Escola de Arte de Basileia, após uma temporada de um ano de viagens pela Europa, quando colheu azeitonas em Creta, uvas na França, laranjas na Itália, tomates na Turquia e tulipas na Holanda. “Até chegar à Suíça, corri vários países de mochila, pedindo carona. Ninguém mais dá carona hoje em dia, mas, na época, era normal. Foi assim que eu acabei indo parar na Basileia, mas lá era um dos piores lugares para pedir carona, então acabei ‘empacando’ por lá”, conta-me Maurício, em uma entrevista pelo Zoom

A emigração para a Europa aconteceu após a conclusão de seu bacharelado em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em Basel, conheceu, por um acaso, um diretor da Escola de Belas-Artes, enquanto pintava as paredes do apartamento dele. “Ele viu algumas das minhas pinturas e sugeriu que eu me candidatasse para estudar lá. Foi assim que voltei para as artes”, lembra. Enquanto Maurício tinha uma formação mais voltada às artes visuais, Walter estudou Pedagogia, na Escola de Pedagogia de Lucerna; Música, na Academia de Música de Lucerna; Teatro, na Academia de Teatro Dimitri, em Verscio, Suíça e, finalmente, Performance, no Departamento de Estudos da Performance da Universidade de Nova York.


Devotionalia (1994), durante exibição no MAM do Rio de Janeiro. Imagem:  Ateliê Dias & Riedweg/Cortesia Galeria Vermelho

Quando se encontraram na Suíça, em 1990, ambos haviam migrado: Maurício do Rio para a Basileia e Walter de lá para Nova York. No ano 2000, fixaram residência no Rio de Janeiro. A parceria artística só começaria aproximadamente três anos depois do primeiro encontro, em 1993. Maurício passa a interferir visualmente nas peças de Walter, que gradualmente saem do território do teatro para ocupar o lugar da performance, e Walter faz improvisações para piano em exposições das pinturas de Maurício. A dupla acabou se encontrando, de fato, na linguagem audiovisual, onde som e performance, que interessavam a Walter, se uniam à imagem em movimento, tema ao qual se dedicava o então pintor Maurício. 

Esse encontro no vídeo só foi possível, na época, porque ambos integravam o coletivo VIA – Video Audio Kunst, na Basileia, um grupo alternativo que fazia experimentos com vídeo antes que esta linguagem fosse, de fato, incorporada às gamas de possibilidades criativas das artes visuais. “Para ter câmeras e um computador que editasse, você precisaria integrar um grupo bem- organizado. Além disso, era um grupo muito bom e muito importante na história da arte suíça recente”, explica Walter.

O primeiro trabalho criado pela dupla foi Devotionalia, desenvolvido ao longo de 1994 e realizado nas ruas do Rio de Janeiro durante o ano de 1995. “De lá pra cá, todos os trabalhos já tinham uma forma que não era minha, nem dele, mas nossa, e começamos, desde esse trabalho, a incluir outras pessoas na nossa parceria”, conta Maurício. Devotionalia teve início como um ateliê para crianças e jovens que viviam nas ruas da Lapa, no Rio de Janeiro. Nesse espaço, a partir da metáfora do ex-voto – objeto criado para pedir um desejo, mas também para agradecer uma graça divina alcançada –, cada participante fez uma cópia do próprio pé ou da própria mão, na qual um sonho ou desejo pessoal estava nela inscrito. Os ex-votos produzidos foram exibidos no MAM do Rio de Janeiro, juntamente com os vídeos que documentavam o processo de criação deles.
 


Produção dos ex-votos, por crianças e jovens no Rio de Janeiro, como parte da obra Devotionalia. Imagens: Ateliê Dias & Riedweg/Cortesia Galeria Vermelho

É preciso ressaltar que o encontro na forma vídeo foi apenas uma dimensão do encontro entre Dias e Riedweg. A outra dimensão, e esta talvez mais significativa, aconteceu nas Fremdsprachen Klassen, ou seja, nas aulas para estrangeiros que não falavam a língua alemã, ministradas por Walter e Maurício na escola pública suíça. Em meados dos anos 1990, ocorreu um boom de estrangeiros na Suíça devido à Guerra Civil Iugoslava, que levou à sua desintegração e à imigração para a Suíça de cidadãos de regiões que hoje conhecemos como Kosovo, Bósnia, Croácia e Eslovênia, por exemplo. Na época, o sistema de educação suíço precisava dar conta da alta demanda de crianças imigrantes e Maurício, junto com Walter, que já ensinava em escolas por causa de sua formação em Pedagogia, leciona para crianças estrangeiras. 

“Quando nos perguntam quais são as nossas maiores influências, podemos citar uma série de artistas importantes, mas, de fato, o que mais marcou o início de na nossa trajetória artística foram as Fremdsprachen Klassen. Nós nos deparamos com classes de cerca de 15 alunos de backgrounds muito diferentes. Eles eram islâmicos, cristãos, ortodoxos, judeus e, além disso, ninguém falava uma língua em comum. A única coisa em comum entre eles é que eram todos recém-chegados e que ninguém falava alemão”, lembra Walter. Para lidar com esse desafio, os artistas, que, naquele contexto escolar, eram apenas professores, trabalhavam no território da percepção, a partir de cheiros, exercícios tácteis e sons. “Nós conseguíamos gerar várias discussões a partir da diversidade da percepção de cada pessoa e, assim, construímos o nosso repertório de trabalho. Foi assim que começamos a falar sobre como o outro percebe o mundo de maneira única e como somente essa diferença basta para validar a percepção e a existência desse outro”, conta Maurício. 

***

O encontro com o outro, que é diferente de nós, mas que, não por isso, é menos importante do que quem somos, permeia os trabalhos em vídeo da dupla. Os primeiros trabalhos da dupla dedicados a refletir sobre o outro, depois de Devotionalia, foram Question marks, de 1996, e Inside & outside the tube, de 1998.  No primeiro, o outro com quem a dupla se encontrou foi uma população de adultos e jovens encarcerados – estes, em um centro de detenção para menores infratores em Atlanta; aqueles, na Penitenciária Federal de Atlanta. No segundo, foram imigrantes na Suíça que aguardavam respostas a pedidos de asilo. 






Question marks (1996), projeto de comunicação e arte entre grupos de prisioneiro nos Estados Unidos. Imagens: Ateliê Dias & Riedweg/Cortesia Galeria Vermelho

Embora as criações sejam bastante diferentes entre si, tanto no aspecto da forma, como no impacto político, em ambas a dupla realizou diariamente workshops de sensibilização com esses “outros” marginalizados. A partir de exercícios e jogos de associação do olfato, do tato, da audição e da visão, os artistas trabalharam, em conjunção com essas pessoas, sobre a memória de cada uma delas e as suas capacidades de imaginação individual e coletiva. Esse método de aproximação, como vimos, chega à dupla a partir de exercícios pedagógicos elaborados em salas de aula de escolas públicas na Suíça.

Após esses trabalhos iniciais, Dias & Riedweg criam outros importantes trabalhos de imersão, como é o caso de Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos, realizado, em 1998, para a 24ª Bienal de São Paulo, sob curadoria de Paulo Herkenhoff. Nesse trabalho em vídeo, os artistas entrevistam 33 porteiros de edifícios em São Paulo, todos eles com os nomes de Raimundo, Severino ou Francisco e todos eles imigrantes oriundos de alguma cidade do Nordeste do Brasil. A proposta é simplesmente conhecer a visão de mundo deles: como se sentem enquanto imigrantes, como é ser porteiro, o que lhes falta. Através de relatos em primeira pessoa, trazidos por esses homens imigrantes, nós, espectadores, nos encontramos com uma série de questões que atravessam o Brasil, como as relações de poder entre empregadores e empregados, os limites frágeis entre público e privado e a exploração do campo pela cidade. 

Como acontece em outros trabalhos da dupla, aqui também se apresentam vários tipos de encontros. O encontro de um dos artistas consigo mesmo, quando ele se depara com uma ideia de trabalho. O encontro entre os artistas, quando a ideia passa a ser compartilhada. O encontro dos artistas com outras pessoas, porque muitos trabalhos da dupla se fazem a partir do encontro deles com o outro. O encontro dos entrevistados com as suas memórias e emoções. O encontro do espectador e dos artistas com as memórias e emoções dos entrevistados. Além de vários outros encontros mais sutis que não nomearei para não ser abstrata demais. 

De todo modo, o que mais importa aqui é compreendermos que a engrenagem criativa de Dias & Riedweg se move a partir de encontros. Contudo, eles nem sempre são pacíficos. Não é verdade que uma dupla vira uma dupla porque uma pessoa encontrou uma outra que pensa, sente e se expressa da mesma forma, nem é verdade que uma dupla é formada por duas pessoas que concordam. “O processo tem que cultivar o conflito, e não exterminar aquilo que está dando problema. Na verdade, a nossa ideia é exatamente cuidar daquilo que está dando problema”, explica Maurício. Ele também compartilha que o que acontece é que a dupla, na verdade, convive com o conflito quase diariamente, mas essa é uma escolha de ambos em nome da arte. 

Como processo criativo, um pensa um pedaço e o outro pensa outro pedaço. “É assim que se faz política, é assim que se faz cinema, por que não é assim que se faz arte? É assim que fazemos, e toda vez que vamos passando adiante as nossas ideias, vamos criando uma ressonância em outras pessoas”, justifica Walter.

A partir do encontro com outras pessoas, diferentes de quem são, mas nem tanto assim, Dias & Riedweg problematizam questões políticas importantes, como imigrações, globalismo, pobreza, exclusão social, declínio da democracia e gênero. As margens surgem em seus trabalhos de maneira dialética, porque, quando as margens surgem, o que vemos não é simplesmente as margens, mas o centro que as produziu. Isso significa que as margens aparecem não como um desenvolvimento errado de uma sociedade cujas promessas de felicidade são realizáveis para todos, mas como um desenvolvimento correto de uma sociedade cujas promessas de felicidade só são realizáveis para alguns porque são irrealizáveis para outros. Através de seus trabalhos,  encontramo-nos com o conteúdo de exploração subjacente aos pactos de igualdade social que sustentam todas as nações do mundo – ou ao menos a maior parte delas.

Essa espécie de nó perverso que une centro e periferia se expressa em outros trabalhos importantes na trajetória da dupla, como Funk Staden, de 2007, em que a histórica criação deturpada de um outro selvagem, expressa no célebre livro escrito e ilustrado pelo aventureiro e mercenário alemão Hans Staden, se enlaça com imagens recentes de funkeiros das favelas do Rio de Janeiro. Nesse entrecruzamento simbólico, vemos como a antiga produção de um outro marginal, como se costuma chamar no debate acadêmico e político de othering, encontra ressonância nas imagens atuais desses funkeiros, eles mesmos encarnações do outro que habita as margens de nossa sociedade.

Na videoinstalação Do universo do baile, de 2008, também nos encontramos com uma reflexão política sobre os nós que amarram centro e periferia, ou, mais apropriadamente, sobre como o centro amarra a periferia a si mesmo para que, assim, ele não deixe de ser centro. Em um dos três vídeos que compõem a instalação, intitulado Primeiras leituras, vemos a drag queen Craudia Pantera, que, nos anos 2000, atuava em boates e sobretudo na rua, lendo trechos da Constituição do Brasil de 1988. Ela lê: “Nós, representantes do povo brasileiro… Reunido em Assembleia Nacional Constituinte… Para instituir um Estado Democrático… Destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais, individual…”. Como vemos, a própria dificuldade enfrentada por essa mulher para apenas ler o texto da Constituição já mostra como as promessas trazidas pela Carta Magna não encontram realização prática. A crítica a um Brasil sustentado em promessas não cumpridas se expressa, de maneira simples, mas potente, em um outro vídeo da mesma obra, intitulado Bandeira. Nele, vê-se uma bandeira do Brasil de ponta-cabeça. Sobre ela, um ventilador de teto gira, como se simplesmente levasse para o ar o lema “Ordem e Progresso”. 

É impossível aqui falar de todos os trabalhos ou, sequer, da maior parte das obras da dupla Dias & Riedweg; afinal são quase 30 anos de uma parceria artística extremamente prolífica. O que vemos no canal Vimeo da dupla é apenas a ponta do iceberg. No entanto, é importante ressaltar que o último trabalho deles tem uma relação bastante direta com os seus primeiros trabalhos. Seguindo os temas de Question marks e Inside & outside the tube, Dias & Riedweg dedicam-se atualmente, em Life lines, a uma pesquisa processual sobre as biografias de um grupo de jovens que emigrou para a Suíça recentemente e que hoje frequenta a escola por lá. 




Projeto de pesquisa e arte Life lines, ainda em processo. Imagem: Ateliê Dias & Riedweg/Cortesia Galeria Vermelho

“Estamos fazendo, com esses jovens imigrantes, um trabalho sobre as suas vidas através de linhas. Nós projetamos os mapas de suas regiões e eles vão, através de linhas de costura, ligando as cidades pelas quais passaram até chegarem na Suíça. Depois, nós tiramos o mapa e ficam apenas as linhas”, detalha Walter. Nesse grupo de jovens também há um rapaz do Afeganistão que sabe ler as linhas das mãos. Ele aparece em um dos vídeos desse trabalho, “em cartaz” na galeria online do museu Johann Jacobs Museum, de Zurique. Devido à pandemia, a pesquisa, que era para resultar em exposição física, acabou assumindo um caráter processual e virtual (ela pode ser acessada aqui). Em Life lines, os variados encontros acontecem, pela primeira vez, ora virtualmente, ora com máscaras.

BÁRBARA BURIL, jornalista, doutoranda em Filosofia na UFSC.

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