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Desde criança, as peripécias do agente secreto nada discreto me entretêm, e, pelo menos, desde que me dei conta de que é possível narrar o mundo e as mídias com outras linguagens e ângulos, por tê-los enxergado através de lentes feministas, venho lidando com o conflito de gostar do intrépido machista e sua série de filmes em que foi inventada uma das profissões mais simbolicamente letais, no cinema, para mulheres: a de Bond Girl.
São 11 mortas nos seis filmes com o ator Sean Connery, o Bond-essência dos anos 1960, cuja imagem sedimentou o personagem no imaginário popular. Nos sete filmes das cafonas décadas de 1970/80 estrelados por Roger Moore, em que Bond mais parece um vovô assanhado do que o jet-setter internacional que a série gosta de projetar, foram nove mortas. Nos dois filmes de Timothy Dalton, que representou um James Bond típico do final dos anos 1980, acompanhado de cartéis, cocaína e monomotores sobrevoando a Flórida, houve duas baixas. Pierce Brosnan, o mais suave e elegante dos Bond, encarna o espírito dos anos 1990 estrelando quatro filmes, nos quais o mesmo número de Bond Girls retornou à massa de origem.
Até agora, seis já vieram a óbito nos filmes protagonizados por Daniel Craig – que, por sinal, muito citam a própria série, e aqui destaco a cena do primeiro 007 – Contra o satânico Dr. No, de 1962, e sua Bond Girl. Neste papel inaugural, Ursula Andress aparece em cena saindo do mar com uma faca atrelada ao famoso biquíni branco, que ela mesma confeccionou. Em Casino Royale (2006), vemos sair do mar um Craig de sunga azul, beleza robusta, corpo e sotaque trabalhados para a criação de um Bond não exatamente chique, que nos dá a impressão de estar sendo sexualmente objetificado. Possivelmente para que o vejamos como mais vulnerável, uma tendência por masculinidades acessíveis propulsionada pela franquia nos anos 2000.
Tanto o personagem como a franquia, no entanto, são constituídos pela desigualdade de gênero e, nesse mesmo filme, é o corpo de uma mulher que padece para salvar o de Bond. Vesper Lynd, cuja história interessante e complexa é abrilhantada pela atuação da hipnotizante Eva Green, se mata para proteger um agente sempre marcado pela morte, mas nunca atingido por ela.
Ao longo de todos estes anos em que 007 existe como ícone cultural, a mídia também tem mais ratificado diferenças de gênero do que questionado ou rompido com elas, ao reportar a violência misógina, o que quase sempre compõe os discursos da e sobre a série. Em 1981, o extinto tabloide britânico News of the World publicou a infame manchete James Bond girl was a boy (A garota Bond era um garoto), típica das confluências entre ignorância e violência contra pessoas trans que não parece cessar.
Retomando o rol de finadas Bond Girls, não esqueci de Tracy Bond, morta no único filme estrelado por George Lazenby, o ex-modelo australiano que antecipou situações que só veríamos com Daniel Craig, tais como a boa atuação para a luta e para aflições não relacionadas a avalanches iminentes ou tubarões famintos, mas para a dor do amor. É ele quem interpreta o outro relacionamento significativo de Bond, fora o já mencionado com Vesper Lynd. Tracy, a única Bond Girl a ocupar o papel de esposa, é morta a tiros por criminosos da Spectre em 007 – A serviço secreto de sua majestade (1969) ainda vestida de noiva.
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Ao lado das Bond Girls, uma das personagens mais conhecidas da franquia é Pussy Galore, vilã interpretada por Honor Blackman em 007 – Contra Goldfinger, de 1964, que acaba mudando de lado, depois de ter um caso com o agente secreto. Seu nome – como o de outras Bond Girls – carrega duplo sentido explícito. Xenia Onatopp, Plenty O’Toole e Dr. Holly Goodhead evidenciam que, na saga James Bond, além de misoginia, tem objetificação sexual galore. A criação das vilãs não é muito melhor que isso. Rosa Klebb (Lotte Lenya, em Da Rússia com amor, 1963) segue o estereótipo da mulher feia e brava comumente associado à enfermeira Ratched de Um estranho no ninho (1962), e a Elektra King de Sophie Marceau, em 007 – O mundo não é o bastante, de 1999, é uma raridade na saga, por continuar a ser a antagonista, mesmo depois de transar com James Bond – embora aí a personagem escorregue para a narrativa comum da mulher má, que seduz para trair. May Day, interpretada pela maravilhosa Grace Jones, é a mortal amante e guarda-costas de um dos arqui-inimigos de Bond, Max Zorin, e é descrita como hipersexual e agressiva, em contraste com a bela, recatada, do lar Stacey Suttons, encarnada por uma loiríssima Tanya Roberts, em 007 – Na mira dos assassinos, de 1985.
Numa nota paralela, foi pura brodagem terem escalado Duran Duran para o tema desse filme quando nele está Grace Jones. Estou segura de que, ao invés da canção datada que os new romantics ofereceram, a diva jamaicana teria composto um tema maior do que minhas favoritas Nobody does it better (Carly Simon, em O espião que me amava, 1977), Goldfinger (Shirley Bassey, em 007 – Contra Goldfinger, 1964), Skyfall (Adelle, para Operação Skyfall, 2012, premiado com Oscar de Melhor Canção em 2013), GoldenEye (Tina Turner, em 007 – Contra GoldenEye,1995), e, agora, No time to die (Billie Eilish, a mais jovem artista a gravar um tema de filme do 007, indicada ao Grammy de Melhor Canção para Mídia Visual neste ano).
Por falar em juventude, voltemos às Bond Girls. O personagem de Bond nos livros de Ian Fleming é descrito como um homem caucasiano, atlético, viril e sedutor, com idade estimada entre 33 e 40 anos, e a maioria dos atores encarnaram James depois dos seus 40 – e para muito além deles. Já as Bond Girls – salvo tão raras exceções que só consigo lembrar da Lucia Sciarra de Monica Belucci (que é lindamente Monica Belucci em qualquer idade) de 007 – Contra Spectre, 2015 – estão na casa dos 20 anos. Gemma Arterton, que tinha 21 anos quando interpretou a agente Strawberry Fields em 007 Quantum of Solace, de 2008, foi Bond Girl de um Daniel Craig 18 anos mais velho do que ela. Em entrevista recente, ela declarou ter interpretado o papel apenas pelo dinheiro, de que muito precisava para pagar dívidas com a universidade, e que pensa que a personagem era muito jovem, deveria ter dito não para o sexo com Bond… e usado sapatos baixos, afinal ela é uma espiã. Sua morte, uma das mais rápidas da saga, como tende a acontecer nos filmes de Craig, se assemelha a uma outra da série: a de Jill Masterson (Goldfinger). Na onda tipicamente Bond de capturar o espírito do tempo, a personagem de Shirley Eaton morre sufocada por ouro em 1964, e a de Arterton, na mesmíssima posição, é sufocada por óleo nos anos 2000.
Nestas campanhas, Pierce Brosnan, Daniel Craig e as suas Bond Girls.
Imagens: Reprodução
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Que James Bond seja um produto do imaginário patriarcal, não é preciso nem argumentar. Mas, apesar de estar esperando em alegre ansiedade por sua versão temperada pela acidez e franqueza de Waller-Bridge, tampouco vou usar confetes em celebração ao Grande Avanço FeministaTM que foi Craig – dono e proprietário do posto de James Bond no cinema desde Casino Royale, de 2006 – ter sugerido a atriz e dramaturga para integrar a equipe da série.
Primeiro, porque penso que a ideia veio da atriz Rachel Weisz, de quem Craig é marido. No meu imaginário, os dois figuram em um home-theatre aconchegante assistindo Fleabag – a série que deu à autora a quatro Emmys em 2019 e a elegeu à lista das 100 pessoas mais influentes de 2020 da revista Time – questionando, entre risos e goles de Bollinger, o que a dona de talentos tão peculiares faria com um roteiro do anti-herói para quem o mundo não é o bastante. Segundo, porque esta filmografia sempre se adapta aos tempos, e sempre com atraso.
É apenas em Operação Skyfall (2012), repleto de acenos para a audiência sobre atualizações na franquia, que Ben Wishaw assenta o adeus da série às engenhocas impossíveis. Em um divertido diálogo – que ocorre não em uma sala secreta embaixo do Tâmisa, mas num encontro furtivo em frente a um magnífico quadro de Turner na National Gallery em Londres –, o chefe da “Divisão Q” entrega a Bond uma arma e um aparelho de rádio, fazendo chacota de sua reação, ao sugerir ser ridículo que ele esperasse pelas canetas explosivas, que já achamos intragáveis em 1995, em 007 – Contra GoldenEye.
Aliás, foi só nesse filme que Judi Dench passou a representar a chefe de Bond, M., papel fundamental até então interpretado apenas por homens (Bernard Lee 1962–1979; John Huston 1967; David Niven 1967; Edward Fox 1983; Robert Brown 1983–1989). Foi também com certo atraso que Live and let die, de Paul McCartney, tornou-se tema de abertura para 007 – Viva e deixe morrer, em 1973. O rock e uma mulher durona no poder, afinal, aconteceram como fatos na terra de Bond décadas, centenas de anos antes da aparição dessas duas narrativas nos dois longas.
As formas antiquadas com que os filmes do 007 capturam o espírito do tempo é sinalizada já em seus créditos de abertura, emblemáticos da marca James Bond e matriz inspiracional na indústria, como confirmam os créditos de Charlie’s Angels (As Panteras, 1976) e Mad Men (Inventando verdades, 2007), ou toda a série de desenhos adultos Archer, que segue desde 2009. São icônicas as sequências do cano da arma e a indefectível repetição profusa da figura feminina, presentes desde a estreia em 1962. A sequência do cano de arma dos créditos de abertura é tão significativa para compor a mitologia Bond porque coloca em primeiro plano o motif do olhar, fundamental para o gênero de espionagem, conforme o historiador britânico James Chapman.
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O olhar é também um tema recorrente nos estudos feministas sobre a produção de imagens e, talvez, a mais conhecida articulação teórica nesse domínio, seja a da britânica Laura Mulvey – que declaradamente emprega a psicanálise como ferramenta para uma crítica feminista de cinema, e cunhou o termo male gaze para capturar o ato da criação da representação de mulheres e do mundo nas artes visuais que ideologicamente manifesta perspectivas masculinas e heterossexistas.
O termo é de difícil adaptação ao português pois, literalmente, significa “olhar macho” e tende a ser traduzido como “olhar masculino”, embora nem uma nem outra soe adequada para o conceito. Para nosso entendimento, importa compreender que, no enquadramento balizado por isso que se chama de male gaze, o feminino figura sempre e antes de tudo como objeto; na maior parte das vezes de desejo, em contraste com o protagonismo e subjetividade conferidos aos personagens masculinos.
A abundância de imagens femininas nos créditos – assim como a de Bond Girls nos filmes, vivas ou mortas – é fornecida para a audiência primordialmente como significante da prolífica heterossexualidade do herói. Não existe outro papel como o de Bond Girl, e o objetivo aqui não é analisá-las – este trabalho foi magistralmente realizado por Anna Swanson e Meg Shields e publicado no blog de cinema Film school rejects em julho de 2020, gerando uma hilária leitura que recomendo mesmo para feministas que nunca assistiram a um filme de James Bond na vida.
O que não pode passar despercebido é que essa personagem glamourosa e muito desejada, tanto pelo olhar da sociedade quanto por excelentes atrizes de todas as eras, tende a acabar morta. A taxa de mortalidade da personagem Bond Girl me faz pensar que a criação da femme fatale – esta mulher-delírio do cinema noir – é perversa perto da criação de James, ele sim um homme fatal – e o pior é que esta é mesmo a narrativa mais assemelhada à realidade num mundo onde a cada hora seis mulheres são mortas pelas mãos de homens, a maioria deles parceiro ou familiares, segundo dados recentes do World Economic Forum.
Eu adoro um filminho do Bond, mas é necessário reconhecer e registrar o quanto seu universo despreza e desdenha a vida das mulheres. Ser uma Bond Girl, como ser uma mulher no mundo patriarcal, é perigoso e – para varrer o male gaze das narrativas – importa perceber que se o nome do protagonista é Bond, James Bond, Jinx Johnson, Fiona Volpe, Tiffany Case são lembrados apenas por aficionados, pois essas personagens acabam por figurar no nosso imaginário como conjunto, como amálgama de corpos jovens, magros e belos; como Girls, Bond Girls.
A personagem de Shirley Eaton morre sufocada por ouro em 007 – Contra Goldfinger, 1964. Imagem: Reprodução
Antes de Phoebe Waller-Bridge houve apenas outra escritora mulher na franquia: a irlandesa Johanna Harwood, que havia sido secretária de Harry Saltzman, produtor dos dois primeiros filmes de Bond com Albert Broccoli, nos quais ela colaborou como roteirista. Não faço ideia de quais foram suas contribuições. Minha opinião como audiência é que o segundo filme é uma tentativa apressada de replicar um sucesso de bilheteria que acabou com um roteiro desorientado, composto pelos aspectos mais caricatos do anterior. Penso, no entanto, não ser coincidência que Judi Dench tenha sido escalada para representar M. assim que Barbara, filha de Albert Broccoli, assumiu a produção da franquia.
Das poucas revoluções genuinamente feministas do universo Bond, talvez a única de interesse real até hoje seja a de Moneypenny, funcionária do MI6. Foi dolorido observar o papel interpretado por Lois Maxwell (com atriz e personagem envelhecendo ao mesmo passo que Sean Connery e James Bond) passar a ser roteirizado cada vez menos como um flerte platônico cocota entre a burocrata e o espião, e cada vez mais como devaneios de uma solteira iludida presa a um escritório visitado ocasionalmente por um homem requintado e sedutor.
Antes que Naomie Harris a incorporasse, em Operação Skyfall de 2012, a personagem já tinha sido tirada das garras deste male gaze nada gostoso, mas até ali nada nem ninguém deu conta de tornar Moneypenny memorável. E que refrescante foi literalmente terem colocado nas mãos dessa versão da personagem o simulacro de plot twist que revela para a audiência a consciência que o filme tem do próprio absurdismo, outro recurso característico da saga.
Esse absurdismo, muito bem-condensado no sorriso cínico do Bond de Connery, é também encontrado na escrita de Phoebe Waller-Bridge, sobretudo em Killing eve, série de espionagem que ela assina, em que a investigadora da inteligência britânica Eve Polastri, interpretada pela esplendorosa Sandra Oh, é encarregada de capturar a assassina psicopata Villanelle, numa atuação deliciosa e perfeita para Jodie Comer. A autora já revelou ter um certo fascínio abjeto pela fantasia em que vivem personagens como Bond e Villanelle, na qual se matam pessoas e se tomam drinks, tudo num mesmo dia. Há muita especulação sobre o que a trouxe para a produção do #Bond25. Fontes seguras de matérias apócrifas em tabloides ingleses contam que ela foi chamada para polir diálogos, para conectar o filme com a realidade de um mundo pós #MeToo, e até para facilitar o entendimento de um roteiro complicado sobre engenharia e guerra genéticas.
Em entrevistas, no entanto, Waller-Bridge avisa que sua entrada no filme não a torna dona dele, e insiste que a peça é dirigida e roteirizada por Cary Joji Fukunaga, não devendo ser interpretada como sinal de uma indelével ruptura de Bond com seu passado machista. Fukunaga, que é relativamente desconhecido – e muito gato – manteve os roteiristas Neal Purvis e Robert Wade, que lideram a escrita dos filmes de Bond desde 1999, com O mundo não é o bastante. E retornam Léa Seydoux, como Madeleine Swann; Ralph Fiennes, como M.; Ben Whishaw, como Q.; Naomi Harris, como Moneypenny; Jeffrey Wright, como o espião e amigo estadunidense de Bond, Felix Leiter; e o prolífico Rory Kinnear, como o muitíssimo britânico Bill Tanner.
A personagem criada por Ian Fleming – um militar inglês de família escocesa rica e vinculada à política, pupilo das escolas da ultraelite britânica Eton e Sandhurst – faz castelo de pedras no nosso highland imaginário como ícone de masculinidade, com suas interpretações e paródias, de certa maneira manifestando coerência com os tempos.
Ele é absurdo, e todos sabemos disso – ninguém aqui pode imaginar que imagino que alguém imagine que Bond representa um ideal verdadeiro, a ser conquistado. Mas ele sempre constitui e é constituído pelo ideário que a australiana RW Connell descreve como “masculinidade hegemônica”. Esse conceito existe para falar de uma masculinidade dominante, varia ao longo do tempo e das culturas, e pode ser definido como qualquer configuração de práticas que legitimam a dominância como posição de homens, ao mesmo tempo em que justifica a subordinação das mulheres e de outras formas marginalizadas de ser homem.
O anti-herói insolente e extremamente letal vem sendo protagonista de narrativas que capturam atenção em massa desde a metade do século XX, quando o mundo era outro. Mas o mundo de hoje continua amparado na naturalização da ampla distribuição de um ideal de sujeito ser homem cis, branco e exageradamente, marcadamente, extraordinariamente, heterossexual.
Enquanto escrevia este artigo, a descrição que constava no perfil de Instagram de Phoebe Waller-Bridge era: “As mulheres agora podem falar livremente sobre seus desejos sem serem queimadas na fogueira o que é bacana”. É verdade. O mundo, no entanto, não deixou de ser patriarcal, e se os acontecimentos políticos dos últimos anos servem de alerta, podemos esperar por mais recrudescimento desse estado de coisas.
Costumo definir o patriarcado como um sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis, sobretudo os brancos e os que defendem a heterossexualidade como discurso, ainda que não a pratiquem exclusivamente. Os assentos de poder das instituições mundo afora ainda são em sua maioria ocupados por homens. Social e historicamente, o poder sobre a política, a economia, o sexo, o dinheiro, as histórias, a produção de imagens e tanto mais tem pertencido a eles. E a narrativa do Bond contribui com a manutenção desse poder de muitas formas, uma delas é naturalizar o feminicídio.
Mal posso esperar para ver a influência da roteirista no filme. Que cada vez mais se ampliem as possibilidades para que mulheres que falam verdades tenham o poder de interpelar as narrativas dos homens que matam.
EXTRA: Assista ao clipe de Sheryl Crow da música-tema de Tomorrow never dies
JOANNA BURIGO, MSc (Master in Sciences) em Gênero, Mídia e Cultura, coordenadora do Emancipa Mulher e curadora do selo #CDMJ, da editora Zouk.