João Paulo Cuenca tem uma trajetória original dentro da literatura brasileira. Antes mesmo do primeiro livro, já fazia barulho e chamava a atenção com os escritos que publicava no extinto blog Mundo Bizarro. Depois, criou um blog que mostrava os bastidores daquele que seria o seu primeiro livro, Corpo presente, publicado pela Companhia das Letras em 2003. Em 2007, ano em que publicou O dia Mastroianni (editora Agir), foi nomeado pelo Hay Festival e pelos organizadores da Unesco World Book Capital como um dos mais 39 mais notáveis escritores com idade inferior a 39 anos. Além disso, foi um dos selecionados para integrar a edição especial da revista Granta, dedicada a escritores brasileiros, em 2012.
Seus outros trabalhos incluem O único final feliz para uma história de amor é um acidente (Companhia das Letras, 2010), A última madrugada (Leya, 2011) e Descobri que estava morto (Tusquets, 2016), que serviu como matéria-prima do seu primeiro longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, também de 2016.
Pôster do longa-metragem dirigido e roteirizado por João Paulo Cuenca. Imagem: Divulgação
A internet sempre foi uma ferramenta importante para ele. Nela, começou e abriu caminho para escrever para portais como o da Folha de S.Paulo, Intercept e Deutsche Welle, site alemão em que protagonizou uma polêmica após publicar um tuíte em que, parafraseando o padre francês do século XVIII Jean Meslier, escreveu: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.
O comentário gerou a ira dos conservadores, que o acusam juridicamente de disseminar discurso de ódio. Acusação que Cuenca nega veementemente: “O que aconteceu foi uma difamação”, explica à Continente. “Foram atores políticos que, eles, sim, surfam no discurso de ódio há décadas, tanto a igreja quanto os funcionários, acusando-me de um crime que eu não cometi e que eles cometem constantemente.” O comentário repercutiu mal e o escritor acabou por ser desligado do site. Uma postura que considera “covarde e, acima de tudo, desonesta” e que gerou uma onda de mais de 100 processos judiciais contra ele, ao que tudo indica, movidos por pastores e líderes da Igreja Universal.
Trabalhando atualmente em um livro novo, João Paulo Cuenca continua a utilizar a internet para compartilhar ideias, mas acredita que estamos vivendo em um período de saturação das redes sociais e que os usuários deixaram de explorar todas as potencialidades da rede: “A impressão que tenho é de que ainda estamos engatinhando e que essa internet onde nós apenas entramos em quatro ou cinco sites por dia é profundamente limitada”. O que resta, neste caso, é um longo caminho a ser percorrido.
CONTINENTE Quero começar lhe perguntando sobre a sua vida nesse período tão conturbado de pandemia. Qual o maior impacto até o momento e como você está lidando com toda essa situação?
JOÃO PAULO CUENCA Eu acho que o impacto maior é comum a todos. É um momento de profunda preocupação. Uma preocupação com a saúde das pessoas que você ama e tudo mais meio que fica em segundo plano. Dois mil e vinte foi um ano em que essa perspectiva ou essa possibilidade da morte mais iminente fez muita gente colocar as coisas na balança, eu acho. Mas, na parte prática da vida, para mim, pouca coisa mudou, porque eu meio que vivo trancado durante o dia. Estou acostumado a fazer quarentena. Tudo bem que eu saía às vezes e tal. Mas, para o tipo de vida que eu levo, não foi um impacto tão grande ficar trancado, sabe? Isso para mim não foi o que pegou. Não foi a coisa mais complicada. Minha ansiedade não tinha a ver com a quarentena em si, mas, sim, com o que vem junto com ela.
CONTINENTE Falando sobre o Nada é mais antigo que o passado recente, livro que está em andamento, você sempre faz alguns experimentos no seu trabalho. O que o inspirou a planejar o novo livro dessa maneira? Como surgiu a ideia?
JOÃO PAULO CUENCA Eu fiquei, depois do Descobri que estava morto, quase quatro anos sem escrever ficção. E voltei a escrever ficção em forma de diário em junho de 2019. Cheguei à Europa com uma mala de cinco dias e fiquei quase seis meses. Essa escrita diarística entrou em 2020 e entrou quarentena adentro. Quando esta surge, eu já tenho essa trilha de diários e já estava começando a montar um livro em cima deles. O que resolvi fazer durante a quarentena, até por uma necessidade de comunicação com gente mesmo, com o mundo, foi publicar parte da parte correspondente desse livro, desses diários, nessa época. Primeiro, eu publiquei pela Quatro Cinco Um e, depois, no meu site (jpcuenca.com). Nesse meio do caminho também, no meio da quarentena, teve toda aquela história do meu tuíte, da Igreja Universal e tal e eu decidi não disputar a atenção das pessoas em portais de notícias e jornais, não mais.
Abri um site para que as pessoas interessadas em mim e no que eu escrevo fossem lá. Lá não tem contagem de nada, não tem comentário, não tem nem esse negócio de contar visitas. Ou, se tem, não me interessa saber. Depois desse processo, eu abri uma lista de transmissão. As pessoas que se interessam podem assinar a lista e pagar um valor simbólico e elas entram em uma lista de transmissão via Whatsapp ou Telegram com textos inéditos, referências, livros que eu estou lendo, fotos, vídeos, músicas, tudo que tenha a ver com esse processo criativo. No final do processo, elas ganham o livro autografado, enfim. Tem sido uma maneira de mudar um pouco a minha relação com as coisas que eu escrevo, das pessoas com o que escrevo. Talvez seja algo mais direto e também tirar um pouco a coisa da rede social.
Eu criei microrredes sociais com essa lista de Telegram e Whatsapp. Na verdade, é uma lista de envios. Eu crio uma lista e envio coisas e as pessoas só recebem. Elas não se veem, elas só recebem o conteúdo direto de mim. Talvez seja uma tentativa de ressignificar a tecnologia e de usá-la a favor de uma experiência artística.
CONTINENTE Você não mais escreve colunas para sites e jornais. O que aconteceu?
JOÃO PAULO CUENCA Não acho que eu não escrevo mais colunas para sites e jornais, mas eu senti vontade de colocar os meus textos de uma outra forma no mundo. Dentro de um site próprio, com blog próprio dentro, sem passar por nenhum tipo de filtro de edição ou de hierarquização dentro de uma estrutura corporativa neste momento. Especialmente, depois do que aconteceu com aquele episódio lamentável da Deutsche Welle. Como eu falei, não é um “nunca mais vou escrever para jornal” e tal. Mas eu quis, neste momento, exercitar outro tipo de lugar. Fora um pouco das lógicas das redes sociais; fora um pouco das lógicas dos portais de notícia. Como se fosse um lugar mais privado, não sei. É como sair de uma galeria. Aqui em São Paulo tem a SP Arte. Eles pegam aquele prédio enorme da Bienal e botam um monte de galerias de arte uma do lado da outra e cada galeria, que é uma espécie de estande, tem vários artistas completamente diferentes e fica aquele zum-zum-zum, aquela bagunça, aquela confusão – como um shopping mesmo. E a internet é isso, ela virou um shopping. Os meios viraram isso, na verdade. E eu quis sair um pouco disso e chamar o leitor para um lugar que é uma sala fora dessa galeria, fora dessa lógica.
CONTINENTE Sobre a polêmica do tuíte, como você recebeu o anúncio da sua demissão da DW? Você já esperava algum tipo de retaliação da ala conservadora ou algo parecido?
JOÃO PAULO CUENCA Essa reação de trolls, do gabinete do ódio, enfim, isso não é a primeira vez que acontece, nem comigo nem com ninguém. O surpreendente na história foi realmente a postura da Deutsche Welle. Postura covarde e, acima de tudo, desonesta, porque engrossou uma campanha difamatória feita contra mim, de que a frase era um discurso de ódio, quando na verdade ela não é. Antes do assédio processual todo, que foi consequência dessa decisão da Deutsche Welle, o que aconteceu foi uma difamação. Foram atores políticos que, eles, sim, surfam no discurso de ódio há décadas, tanto a igreja quanto os funcionários, acusando-me de um crime que eu não cometi e que eles cometem constantemente. E a Deutsche Welle subscreveu isso pressionada pelo Ministério das Relações Exteriores alemão, pressionado pelo governo brasileiro. Isso foi muito surpreendente. Não só para mim, mas para todos os outros escritores, jornalistas, editores com quem eu conversei e que me deram apoio naquele momento. Ninguém esperava que eles fossem ter uma postura tão covarde, mas, acima de tudo, tão desonesta. Tão vagabunda.
CONTINENTE E quais as últimas atualizações que você tem desses processos? Em que pé anda toda a situação e qual você acredita que será a resolução dela?
JOÃO PAULO CUENCA Agora que eu acertei com os advogados para me defender, eu estou olhando menos isso. Mas acredito que eles vão… Não posso falar muito sobre estratégia, mas o que eu posso falar é que eu gostaria que esse caso pudesse se transformar numa espécie de jurisprudência contra assédio processual e litigância de má-fé, porque isso está completamente normalizado pela sociedade e pelo sistema jurídico brasileiro. Não é a primeira vez que acontece e eu acho uma ameaça permanente à liberdade de expressão no país. Realmente, a única coisa que me anima nessa história toda é tentar criar um fato novo jurídico. Vamos ver se é possível.
CONTINENTE Voltando ao livro. Quais as principais diferenças que você está sentindo entre essa experiência que está realizando agora e aquela no Blogspot, que contava sobre o processo de criação de Corpo presente?
JOÃO PAULO CUENCA Eu considero que é bem diferente, porque estou montando um livro baseado nos diários que comecei a alimentar em Berlim, no ano passado. E, na verdade, o que eu fiz na quarentena foi simplesmente adiantar trechos desse livro. Alguns trechos falam sobre o processo do livro, são mais autorreflexivos. Mas eu também estou adiantando trechos inéditos. Nos últimos tempos, eu até dei uma segurada. Não estou publicando tudo o que estou escrevendo, justamente para segurar alguma coisa para o livro publicado. Enfim, isso vai mudar bastante, mas, nesse caso, pelo menos durante a pandemia, o que eu fiz foi, de um jeito bem simples, adiantar largos trechos de um livro em progresso. No blog do Corpo presente era diferente. Era mais um diário sobre editar um livro. Era um diário sobre a publicação, eu não estava adiantando trechos. Uma outra coisa desse diário sobre o processo de publicação acabou entrando no livro. Mas o foco do blog não era adiantar trechos do romance.
Algumas das obras de Cuenca: Corpo presente foi o primeiro lançado
(2003), depois veio O dia Mastroianni (2007). O único final feliz... é de
2010 e Descobri que estava morto, de 2016. Imagens: Reprodução
CONTINENTE Alguns autores ainda veem com muita desconfiança a relação entre tecnologia e a criação de obras artísticas e literárias. Como você enxerga o papel dela no campo das artes de maneira geral?
JOÃO PAULO CUENCA Acho que a relação das artes com a tecnologia varia muito de acordo com o campo. Se, na fotografia e no cinema, a tecnologia é um componente central do processo de criação – essas inovações transformam as obras esteticamente –, na literatura isso não se coloca dessa forma. Inclusive, talvez a inovação tecnológica que tenha sido mais útil para um escritor não seja nem a máquina de escrever e nem o computador, mas, sim, o gravador. De qualquer maneira, eu não acredito que no fazer literário a inovação técnica da ferramenta faça muita diferença. A sociedade inteira faz. Tanto faz se você está escrevendo em um pergaminho ou num computador, eu não acho que nos últimos milênios isso tenha mudado muito. Os procedimentos são os mesmos. Mas eu estou falando de criação. Obviamente, a tecnologia foi e é muito importante para disseminar as obras e eu me beneficiei disso. Eu comecei publicando online em 2000 e devo muito da minha aplicação em papel posterior a esse começo online. Mas, de novo, eu não acredito que essas ferramentas mudem substancialmente o fazer literário.
CONTINENTE E sobre as inteligências artificiais que criam obras de arte e obras literárias? Você acha que no futuro isso poderá ter alguma relevância e que a máquina vai poder criar algo tão original quanto um ser humano?
JOÃO PAULO CUENCA Acho que poderá até criar, mas para outras máquinas lerem.
CONTINENTE Tem gente que faz uso da inteligência artificial “apenas” como assistente para editar e criar artigos e até livros inteiros. Isso pode ser considerado uma trapaça?
JOÃO PAULO CUENCA Não. Talvez isso seja apenas a literatura tentando se apropriar de algo que as artes visuais, o cinema e a música fazem com muito mais propriedade há muito mais tempo: o uso de tecnologia para colagem, sampling, mistura etc. A questão é que, para mim, sempre vai precisar de uma pessoa operando a máquina. Eu mexo com música eletrônica, por hobby. É tudo processado dentro do computador e pode ser esticado, alterado, rearranjado. Mas o computador não se opera sozinho. E, no limite, se um computador é alimentado por um algoritmo que o faz “criar” algo, essa é uma cocriação dele com o “compositor” do algoritmo.
CONTINENTE E quando você começou a se interessar por essa relação? Quando você estava escrevendo o Corpo Presente os blogs ainda eram pouco explorados. Tinha você, o Joca Terron, o Pellizzari, se não me engano, e mais meia dúzia.
JOÃO PAULO CUENCA Eu mexo com computadores desde criança. Aprendi a programar Basic num MSX ligado à televisão com 8 anos de idade. Pouco depois, acessava BBS antes mesmo de existir internet discada no Brasil. Acho que foi natural usar essa ferramenta no início. Para mim, foi importante, principalmente porque aí comecei a entender a relação entre leitores e o texto de um ponto de vista inédito: o de um autor. Isso hoje parece banal, mas era uma coisa incrível na época: que algum desconhecido pudesse ler algo seu. Sem precisar passar pelo crivo de editoras ou jornais. Às vezes, é preciso voltar a essa sensação. E valorizar isso. Não importa que sejam milhares, centenas ou apenas uma pessoa. Tem alguém lendo e sendo tocado por aquilo, do outro lado da tela.
CONTINENTE Por falar em banalidade, você acredita que este espaço virtual está saturado ou ainda há muito para explorar ainda?
JOÃO PAULO CUENCA As duas coisas. Está totalmente saturado porque as pessoas deixaram de explorar as potencialidades da rede. Quando elas voltarem a fazer isso, abriremos espaço.
CONTINENTE Às quais potencialidades se refere? O que ainda falta ser explorado?
JOÃO PAULO CUENCA Tanta coisa. O hipertexto, por exemplo. É notável como há poucos experimentos de ficção usando essa ferramenta. Sem falar do uso de avatares em redes sociais. Há anos eu dou voltas ao redor da ideia de escrever uma peça de teatro (uma obra de cinema, uma performance online?) usando personagens de ficção em redes sociais e outros espaços. A ação se daria pela interação entre eles na rede e pelos solilóquios deles online. Enfim, a impressão que tenho é de que ainda estamos engatinhando e de que essa internet onde nós apenas entramos em quatro ou cinco sites por dia é profundamente limitada – como se nós apenas estivéssemos usando os primeiros andares de uma torre de babel infinita.
CONTINENTE São ideias inovadoras e que podem causar incômodo. Quanto tempo acha que vai levar até começarmos a explorar os outros andares?
JOÃO PAULO CUENCA Precisamos antes derrubar esses oligopólios que hoje controlam a rede. Tem uma bolha aí que precisa estourar. Talvez uma coisa esteja ligada a outra, talvez essa revolução seja também estética.
CONTINENTE E qual o primeiro passo para causar esse estouro? Quais iniciativas seriam necessárias para isso começar a acontecer?
JOÃO PAULO CUENCA Eu sonho com um detox coletivo. Uma espécie de revolução contra essa cracolândia das redes sociais, sabe? Não sei se esse movimento é organizado ou não; se é uma guerrilha. Mas, enfim, eu penso nessas coisas.
CONTINENTE Para finalizar, eu gostaria que você falasse sobre o que planeja para o futuro (dá para planejar um futuro?). Se o livro tem previsão de publicação e se tem outras ideias em andamento.
JOÃO PAULO CUENCA Gostaria de publicar o livro em 2021. E tenho dois projetos de cinema em andamento, ainda buscando recursos. De resto, acho que o único plano possível por agora é sobreviver, manter a sanidade mental, ter onde dormir oito horas por noite, almoçar e jantar todos os dias. No Brasil de hoje, isso já é muita coisa.
JOCÊ RODRIGUES, jornalista.